(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 8 de novembro de 2023)
O último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o mais importante teste para avaliação de conhecimento dos alunos brasileiros antes da universidade, não foi apenas mais uma vergonha. Também não foi só uma prova da desonestidade fundamental que os comissários do Ministério da Educação aplicam na formulação das perguntas — nem da aberta malversação de dinheiro público, uma vez mais, em favor de interesses ideológicos particulares. Mais do que tudo, o Enem deste ano deixa claro por que o Brasil continua tendo um dos piores sistemas de ensino público do mundo. Os donos do aparelho educacional não permitem que os estudantes aprendam a fazer conta, a escrever em português e a adquirir uma compreensão mínima de um texto escrito. Em vez disso, usam o Estado brasileiro e os seus recursos para obrigar os alunos a obedecerem a um catecismo político. Ou respondem às perguntas como os donos do Enem querem que elas sejam respondidas, ou não passam no exame.
Das 90 questões apresentadas este ano, pelo menos 40% se referiam aos temas da misoginia, diversidade, luta de classes, homofobia, pobreza e racismo — ou o orgulho de ser negro. E o restante do conhecimento humano? Foi apertado no espaço que sobrou. No balanço geral, metade das perguntas não mediam o que o aluno aprendeu em seus anos de educação básica. Faziam propaganda política e ideológica em estado bruto, sem disfarces, como no “horário gratuito” do período eleitoral. O agronegócio foi denunciado pelos autores da prova como uma atividade nociva ao Brasil e à natureza — ou aluno respondia que o setor mais avançado da economia do Brasil é ruim para o país, ou a sua resposta estava errada. O capitalismo é obviamente condenado; exige-se, nas alternativas “certas”, que o aluno aponte o sistema como um mal em si. As perguntas apresentam como fatos indiscutíveis o que são unicamente as crenças políticas dos professores. Fala-se nas “estruturas de opressão sócio e historicamente construídas”. Mais: além de uma fraude em termos de avaliação objetiva de conhecimentos, o Enem deste ano foi uma espetacular exibição de ignorância por parte dos que fizeram as perguntas.
Há questões redigidas com erros técnicos grosseiros; já não se trata, aí, de desvio de conduta, mas de pura incompetência. Há erros de português. Há perguntas impossíveis de se responder corretamente — ou todas as alternativas de resposta estão erradas ou todas estão certas, o que obriga o aluno a jogar na sorte. O compositor Caetano Veloso, por exemplo, não conseguiu responder à pergunta que foi feita sobre duas de suas próprias canções; depois de refletir com muita atenção sobre cada uma das alternativas, afirmou que todas estavam certas. Como é obrigatório cravar apenas uma opção das cinco apresentadas, a chance de errar é de 80%. É um dos pontos mais baixos a que já chegou o Enem.
Críticas | William Waack: o Enem e o atraso mental do Brasil
A ditadura ideológica imposta à educação brasileira é, além de uma violação aos direitos dos estudantes, o método mais eficaz de se concentrar renda que existe no Brasil. Os objetivos políticos dos encarregados de ensinar se opõem à aquisição de conhecimento real; isso cria um sistema que mantém a maioria dos alunos da escola pública em situação de ignorância perpétua. Não aprendem o que é indispensável para se ter mais oportunidades, obter remuneração melhor ou reduzir a sua desigualdade. É um sistema que condena milhões de jovens brasileiros a viverem fazendo os trabalhos mais pesados, recebendo os salários mais baixos e tendo as menores chances de conseguir uma existência mais cômoda. Os educadores brasileiros não estão interessados em ensinar matemática, ciências e outras disciplinas necessárias para alguém atender às exigências do mercado de trabalho e da sociedade de hoje. Querem fazer “pedagogia na esperança” — essa mesma que mantém o Brasil como um dos países mais ignorantes sobre a face da Terra.