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Antonio Gelis Filho | Foto: Divulgação
Edição 104

“O fim da Guerra Fria foi uma oportunidade perdida”

Segundo o professor de geopolítica empresarial na Fundação Getulio Vargas, o Ocidente tentou impor um modo de vida progressista ao resto do mundo

Edilson Salgueiro
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A escalada militar no conflito entre Rússia e Ucrânia atingiu níveis sem precedentes. Depois de bombardear diversas cidades do país vizinho, causando a destruição de prédios residenciais e infraestruturas, Moscou está se mobilizando para intensificar seus ataques contra a capital, Kiev, a sede do governo ucraniano. Um comboio russo, de 65 quilômetros de extensão, aproxima-se lentamente da capital. A coluna é formada por veículos blindados e tanques, o que, em termos práticos, mostra a intenção russa de controlar as regiões mais importantes da Ucrânia.

Na esteira desse confronto, as discussões sobre geopolítica pautaram jornais, revistas e programas de televisão. Por que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, resolveu invadir um país soberano? Qual é o papel das potências ocidentais nesse conflito? A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) deveria socorrer os ucranianos? O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky deveria capitular e se render aos russos? E o Brasil, como está agindo diplomaticamente diante da guerra que assola o Leste Europeu?

Para responder a essas e outras perguntas, Oeste entrevistou Antonio Gelis Filho, doutor em administração de empresas e professor de geopolítica empresarial na Fundação Getulio Vargas. Segundo Gelis Filho, o conflito entre Rússia e Ucrânia deve alterar as estruturas globais de poder. “As mudanças serão enormes”, salientou. “O projeto ocidental iniciado em 1989, quando da queda do Muro de Berlim, de estabelecer um mundo unipolar já agonizava e agora parece morrer na Ucrânia.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Quais foram os motivos da invasão da Ucrânia pela Rússia?

A invasão foi o resultado do choque de dois projetos. O primeiro, o projeto ocidental de estabelecer sua hegemonia sobre o mundo após o fim da Guerra Fria. O segundo, o projeto de um grupo na Rússia de reconduzir o país à condição de potência após o fracasso das modificações dos anos 1990. A ascensão da Rússia foi sempre entendida como uma ameaça ao projeto ocidental. Em parte, por sua condição de grande produtora de commodities estratégicas e de energia. E também pela possibilidade de limitar militarmente a expansão ocidental. A Rússia acusa os batalhões ultranacionalistas da Ucrânia de cometerem atrocidades contra a população de fala russa. Além disso, afirma que Kiev dificulta o uso de idiomas que não o ucraniano. Outros países, como a Hungria, também protestaram nesse sentido. Por fim, Moscou alega que a Ucrânia está fabricando ou buscando armas de destruição em massa.

O Kremlin pretende anexar outros países do Leste Europeu?

Não acredito. A anexação é um projeto geopolítico do passado. Exceto quando regiões étnica e culturalmente próximas são anexadas, como no caso da Crimeia, região russa que foi incorporada à Ucrânia em 1954. A anexação gera muitos custos e a necessidade de gerenciar uma população insatisfeita e disposta a se revoltar. A União Soviética dissolveu-se, em parte, pela percepção de muitos em Moscou de que o controle das demais repúblicas soviéticas e dos satélites na Europa Oriental custava muito e retornava pouco, econômica, política e moralmente. Além disso, a Rússia não tem a intenção de provocar uma guerra contra a Otan. Não creio que Putin anexará grandes porções da Ucrânia. O Kremlin deve se limitar a áreas estratégicas.

O Itamaraty condenou o ato de invasão, mantém-se neutro em relação ao conflito e recusa-se a sancionar a Rússia. Essa posição, a meu ver, está correta

A Rússia pode escalar o conflito e usar armas nucleares?

Caso a Otan empregue sua capacidade convencional, invadindo a Ucrânia com força total, a Rússia ficará sem alternativas — salvo o uso de armas nucleares táticas. Essas são armas de potência e alcance menores. São utilizadas não para aniquilar um país, mas para destruir grandes concentrações de tropas e material militar. Não se engane, porém, com a potência “menor” delas. Uma única ogiva nuclear tática pode ter o poder de destruição de 50 bombas de Hiroshima. A Rússia não blefou até agora nesta guerra. Em seu início, pôs de prontidão suas forças estratégicas (nucleares), em resposta à então intenção europeia de fornecer aviões militares para a Ucrânia. Mentes mais sensatas — a meu ver, militares — acalmaram os políticos europeus e evitaram uma potencial tragédia nuclear.

Se Donald Trump ainda fosse presidente dos EUA, a Ucrânia seria invadida?

“What if history” — a análise geopolítica do “e se…” — é sempre um jogo arriscado. Tendo dito isso, minha opinião é que a invasão não teria ocorrido. Quaisquer que sejam as críticas a Trump, no plano internacional ele representava, ainda que imperfeitamente, o pensamento não intervencionista dos Estados Unidos. Isso estará eternamente em choque com aqueles norte-americanos intervencionistas que acreditam ser responsabilidade, ou mesmo direito de seu país, intervir em todos os eventos geopolíticos do mundo. Trump, como não intervencionista, via com maus olhos a custosa presença militar norte-americana ao redor do mundo. Com sua linguagem peculiar, disse: “Alemanha e Japão são ricos, devem pagar por sua própria defesa”. Foi uma crítica à presença de milhares de soldados norte-americanos naqueles países. Disse, ainda, que a “Ucrânia é um problema da Europa”. Ele percebia os riscos envolvidos na questão. Sabia dos custos de uma crise ucraniana para os EUA.

Depois do conflito entre Rússia e Ucrânia, haverá alguma mudança na geopolítica?

As mudanças serão enormes, ainda que não imediatas. O projeto ocidental iniciado quando da queda do Muro de Berlim em 1989, de estabelecer um mundo unipolar, já agonizava e agora parece morrer na Ucrânia. Alguns analistas acreditavam que o governo da Rússia seria substituído, em razão das sanções e das hashtags russofóbicas, por um governo pró-Ocidente, naquilo que seria a maior de todas as “revoluções coloridas” ocidentalizantes. Duas semanas de guerra mostraram, porém, o alto custo interno das sanções para seus países. Houve o fechamento da Rússia, com a prisão ou fuga de seus elementos de oposição mais ativos, e o surgimento de milhões de refugiados em uma Europa incapaz de lidar com aqueles já existentes. Se houvesse lideranças ocidentais, esse seria o momento ideal para uma grande conferência internacional, da qual emergiria uma nova ordem geopolítica, mais estável, reconhecendo a existência de vários centros de poder geopolítico no mundo e dividindo a responsabilidade pela estabilidade global.

Em suma, a Guerra Fria não resolveu absolutamente nada?

O fim da Guerra Fria foi uma oportunidade perdida. O Ocidente, então visto como vencedor e hegemônico, decidiu declarar uma “Paz Quente” ao resto do mundo, imaginando-se capaz de intervir em todos os conflitos geopolíticos do planeta, em uma guerra de incontáveis fronts. Tentou impor o modo de vida de sua fração mais progressista ao resto do mundo, gerando resistências. Enquanto isso, transferia a fonte última de sua harmonia social e progresso — empregos industriais de alta remuneração — para o Oriente, especialmente para a China. O resultado, agora, é a necessidade do Ocidente de olhar para dentro e fazer seu dever de casa. É preciso restabelecer as bases reais de seu progresso antes que seja tarde demais.

Como o senhor avalia a posição diplomática do Brasil no conflito Rússia-Ucrânia?

O Itamaraty condenou o ato de invasão, mantém-se neutro em relação ao conflito e recusa-se a sancionar a Rússia. Essa posição, a meu ver, está correta. Apenas 47 dos 193 países-membros da ONU sancionam a Rússia neste momento, a despeito das pressões de norte-americanos e europeus. Sanções levam meses ou mesmo anos para surtir seus efeitos. Por essa razão, não têm o poder de evitar diretamente o sofrimento da população civil ucraniana, podendo mesmo piorar a situação. Um hipotético enfraquecimento do governo russo poderia levar a um aumento de intensidade de seus esforços militares, causando ainda mais destruição.

Quais foram as principais decisões tomadas pelo Itamaraty?

O governo brasileiro simplificou os procedimentos para concessão de visto a refugiados ucranianos — medida muito correta. Ademais, sanções são um ato de guerra, e o Brasil não tem conflitos com a Rússia. Muito pelo contrário. Trata-se de um parceiro estratégico em várias áreas: fertilizantes, minérios escassos, tecnologia espacial e militar. Tanto Rússia quanto Ucrânia são nações com as quais o Brasil mantém boas relações. A neutralidade é o posicionamento lógico. Sendo assim, considero correta a posição do Brasil, pois auxilia a minimizar o sofrimento da população civil da Ucrânia, colabora para a paz e defende nossos interesses estratégicos. Infelizmente, não será surpresa se o governo de Joe Biden, que parece um tanto perdido com sua baixa popularidade e com a guerra, lançar forte pressão sobre o governo brasileiro para tentar mudar sua posição.

Por qual razão a maioria da imprensa critica a atuação diplomática do Brasil?

Entendo que há três razões principais para essas críticas. A primeira é a compreensível reação da opinião pública ao sofrimento de civis, em geral acompanhada da inicial falta de compreensão sobre a ineficácia das sanções para interromper a guerra, bem como da complexidade da situação. À medida que a população se informa sobre o assunto, esse fator torna-se menos importante, porque os brasileiros passam a entender a postura do governo. A segunda razão é a polarização política em um ano eleitoral. Muitas críticas são feitas não pelo posicionamento do governo brasileiro em si, mas pelo fato de ser a posição do presidente Jair Bolsonaro. Finalmente, parte da imprensa e da intelectualidade brasileira segue de forma automática a posição de setores “progressistas” norte-americanos e europeus, abandonando qualquer intenção de pensar sobre qual seria o melhor posicionamento para conciliar os interesses dos civis ucranianos e do Brasil.

Quais serão os impactos econômicos, no Brasil, do conflito no Leste Europeu?

O mundo todo deve sofrer pela possível interrupção do fornecimento de produtos estratégicos pela Rússia e pela Ucrânia. As maiores consequências, porém, virão dos efeitos das sanções sobre a economia mundial e mesmo sobre a economia dos países que lançam as sanções. Um exemplo desse último fenômeno são os recordes registrados no preço da gasolina, nos Estados Unidos, e do gás natural, na Europa. Com isso, pode haver um aumento global no preço dos derivados de petróleo, o que causará impacto no Brasil. Além disso, a dependência de nossa economia em relação ao comércio com a China possivelmente aumentará. Por outro lado, os países que sancionam a Rússia podem precisar de novos fornecedores; por exemplo, de produtos agrícolas. Isso pode representar uma oportunidade para os exportadores brasileiros.

Quais lições esse conflito deixa para o Brasil?

Qualquer que seja o desenrolar desta crise, um aviso foi dado: precisamos trabalhar urgentemente em um projeto nacional de autossuficiência estratégica. É necessário estabelecer as cadeias produtivas prioritárias e os produtos e serviços críticos que devemos produzir em nosso país, para que o Brasil possa atravessar sem grandes sobressaltos as prováveis crises internacionais vindouras. O agronegócio, a produção de insumos para a saúde, a comunicação e a defesa são apenas alguns candidatos óbvios. Aí está, também, uma grande oportunidade para a indústria nacional e para a geração de empregos de qualidade.

Leia também “Diplomacia subestimada”

11 comentários
  1. Lucas Scatulin Bocca
    Lucas Scatulin Bocca

    Excelente entrevista. Uma das melhores que vi sobre a guerra e o posicionamento brasileiro (a JP também tem apresentado boas entrevistas). No mais, o entrevistado – que não conhecia – mostrou serenidade, inteligência e capacidade de análise muito superiores que a média dos “especialistas”. Parabéns à Oeste por “encontrar” especialistas que merecem tal título!

    1. Edilson Salgueiro

      Obrigado, Lucas!

      Abraço.

  2. Luiz Antonio Fraga
    Luiz Antonio Fraga

    Muito bom. Só lamento que Oeste opte por entrevistas tão curtas. Tanto o assunto como o entrevistado poderiam ter sido melhor explorados.

    1. Edilson Salgueiro

      Olá, Luiz! Obrigado pela sugestão.

      Abraço!

    2. Lucas Scatulin Bocca
      Lucas Scatulin Bocca

      Concordo.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente entrevista. Parabéns. O entrevistado mostrou um posicionamento coerente, realista sobre o conflito no Leste Europeu e ainda derrubou a falácia dos que criticam o posicionamento do Brasil.

    1. Erasmo Silvestre da Silva
      Erasmo Silvestre da Silva

      Está na hora de desenvolver a produção industrial no campo estratégico, usemos nossas riquezas

    2. Edilson Salgueiro

      Obrigado, Robson!

      Abraço.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Nada justifica a guerra, a atitude mais irracional que se possa imaginar

  5. Marcelo DANTON Silva
    Marcelo DANTON Silva

    FORA WOKE!!
    Chega do ocidente politicamente correto de verve FASCISTA!

  6. R.F. Nobre
    R.F. Nobre

    Na minha visão, após a leitura deste artigo, para que o nosso Brasil progrida, na próxima eleição, menos progressistas no senado e na câmara de deputados (ah! Paulo Guedes, ministro da economia em 2023).

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