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Discos do The Beatles no Motala Motor Museum | Foto: Shutterstock/Jeppe Gustavo
Edição 119

Os vendedores de sonho

O que unia todos era a lei não escrita de que todos podiam ser como quisessem — e haveria espaço para todas as diferenças

Guilherme Fiuza
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Como todos sabem, o sonho acabou. Mas, para acabar, teria que começar. E isso de fato aconteceu. Há 60 anos, o sonho começou. Por algum motivo, o anúncio do seu fim ficou mais famoso que o sonho em si. Muita gente nem ficou sabendo direito que sonho foi esse — que fez tanto barulho ao terminar, com a lendária frase “The dream is over” fechando os míticos anos 60 como uma porta de aço que alguém baixa bruscamente no fim do expediente, sem maiores explicações. Fim de papo.

Foi um sonho belo. E vamos logo deixando claro que sonho não é fuga ou mera abstração. Sonho é coisa séria. Mesmo que não se realize conforme o seu desenho inconsciente ou até consciente. O sonho de consumo da alma move o mundo. E foi isso que começou a se materializar em 1962, com a chegada dos Beatles às paradas de sucesso da Inglaterra.

Os Beatles, em 1963 | Foto: Wikimedia Commons

A primeira música ranqueada se chamava Love Me Do, era simples demais e não chegou ao primeiro lugar. Mas ela continha uma gaita peculiar (Lennon) e, principalmente, trazia a recusa por parte do jovem grupo de seguir receitas propostas pela gravadora (EMI). O produtor George Martin, acostumado a gravar o gênio do humor Peter Sellers e outros artistas não convencionais, entendeu o sopro de originalidade e petulância dos Beatles e deu linha.

O resultado em quase uma década foi uma das maiores experiências de liberdade artística que o mundo já testemunhou. E não só artística. Foi feito um pacto não escrito em torno dos Beatles envolvendo uma espécie de licença para matar velhos costumes. Os filmes A Hard Day’s Night, Help e Yellow Submarine explodiram bilheterias ao redor do mundo com um jeito diferente de ser irreverente. Dos roteiros aos cabelos, tudo podia ser tentado. E tudo dava certo.

Dava certo por causa do tal pacto de liberdade. Em intervalos mínimos para qualquer história de evolução musical, rocks básicos foram se transformando em orquestrações sofisticadas — que ao mesmo tempo não perdiam o frescor pop. Os Beatles eram o primeiro grande fenômeno de conexão mundial pela mídia e transformaram isso num caldeirão de influências — do caminhoneiro norte-americano Elvis Presley ao místico indiano Havi Shankar. Esse era o sonho: juntar todo mundo.

Os Beatles, na Holanda, em 1964 | Foto: Poppe de Boer/Wikimedia Commons

O sonho iniciado 60 anos atrás pelos Beatles, ou personificado pelos Beatles, era na prática a concretização do romantismo. Tudo que já se havia escrito sobre harmonização estética, filosófica e comportamental das sociedades passara a ter uma experiência viva, concreta, sentida por todos. Não uma uniformização, muito menos uma padronização. Ao contrário: o que unia todos era a lei não escrita de que todos podiam ser como quisessem — e haveria espaço para todas as diferenças. Espaço, não: respeito, valorização, afirmação. Afirmação, não: o bom da coisa era que não carecia afirmar nada, declarar nada, estipular nada. Estava escrito, ou melhor, não estava, que a lei era respeitar tudo que fosse diferente, porque era dali que viria provavelmente a sua próxima inspiração — não a sua próxima desavença.

O que acabou foi o pacto de liberdade. A tentação de industrializar a liberdade foi mais forte

Foi um belo sonho. E ele foi real. Por que acabou? Porque John Lennon pronunciou “o sonho acabou” ao final dos Beatles, vocalizando o fim do romantismo? Não, não foi por isso. O que acabou foi o pacto de liberdade. A tentação de industrializar a liberdade foi mais forte. O espírito era tão bom, tão fértil que logo proliferaram os vendedores de sonho. O espírito livre vê florescer a diferença e se guia por ela, ou a ignora; o vendedor simula a diferença para tentar vendê-la pelos olhos da cara ou para patrulhar os não aderentes.

O sonho acabou porque tentaram adestrar a espontaneidade. Estão tentando até hoje. A experiência do amor ao próximo sem catequese, ou seja, a comunhão gratuita, a propensão ao exercício da irmandade pelo respeito/amor à diferença, é algo tão sublime que obviamente iriam aparecer os intermediários providenciais. Eles abrem suas pastinhas de produtos românticos e te oferecem uma ética humanitária novinha em folha — que te habilita instantaneamente a patrulhar o freguês ao lado que não adquiriu o mesmo serviço.

O sonho iniciado há 60 anos acabou. Tentar conhecê-lo não é nostalgia. É talvez um caminho para acabar com o pesadelo que ficou no lugar dele.

Os Beatles, posando para foto do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado em 1967 | Foto: Divulgação

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24 comentários
  1. Henrique Hochleitner
    Henrique Hochleitner

    Para mim o sonho começou nos anos cinquenta, com as baladas do Elvis, Brasília, a copa do mundo de 58, o Sputnik,
    Éramos felizes e nem sabíamos!

  2. JHONATAN PAIVA SURDINI VIEIRA NOGUEIRA
    JHONATAN PAIVA SURDINI VIEIRA NOGUEIRA

    Fiuza manda sempre muito bem! ADMIRAÇÃO!

  3. ALEXANDRE ALLIPRANDINO MEDEIROS
    ALEXANDRE ALLIPRANDINO MEDEIROS

    Pois é, Fiuza e demais leitores: o sonho dos “círculos” fraternos foi substituído pelo pesadelo dos “quadrados”. Excelente artigo. Alexandre.

  4. José Eduardo Ferreira Prado de Carvalho
    José Eduardo Ferreira Prado de Carvalho

    Pra escrever sobre este assunto, viveu ou estudou a fundo a época. Cara você esteve lá, e ou, formou-se com louvor no estudo da época. Brilhante.

  5. Vania L M Marinelli
    Vania L M Marinelli

    Primoroso. Grande sacada.

  6. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Hoje vemos pessoas mal resolvidas com raiva de si mesmas descontando em terceiros.

  7. saulo de oliveira leao
    saulo de oliveira leao

    sem palavras!!!!!

  8. Roberto Fakir
    Roberto Fakir

    Boa Fiuza. O sonho foi curto demais. Agora o pesadelo quer copiar o sonho com “regras” inventadas por autointitulados “cientistas limpinhos, financistas limpinhos, artistas limpinhos, lacradores limpinhos, ecologistas limpinhos, ONGs limpinhas etc.” tudo limpinho. Uma hora vai dar m.

  9. Georgs Rozenfelds
    Georgs Rozenfelds

    Sensacional o texto. Tive o privilégio de viver toda essa época. O articulista demonstra rara sensibilidade e elegância!

    1. marise neves
      marise neves

      Hoje nada tem graça pq simplesmente acabaram com o humor.
      Não se é mais bisexual mas Queer, não se é mais gay mas LGBT+.
      Ser hetero hoje é ser um doente
      O mundo hoje está chato demais

  10. Andrea Vidal
    Andrea Vidal

    “O que acabou foi o pacto de liberdade. A tentação de industrializar a liberdade foi mais forte. O espírito era tão bom, tão fértil que logo proliferaram os vendedores de sonho. O espírito livre vê florescer a diferença e se guia por ela, ou a ignora; o vendedor simula a diferença para tentar vendê-la pelos olhos da cara”.
    Entendedores entenderão. Como não te amar, Fiuza.

  11. JOSE TADEU MOURA SERRA
    JOSE TADEU MOURA SERRA

    Eu sempre digo que um jardim é tão mais belo quanto´, as flores tem cores e formas diversas, isso é obra do DIVINO .
    PARABENS FIUZA .
    Costumo dizer que elogio é uma das mais eficazes formas de enganar, e satisfaz apenas uma parte enquanto o RECONHECIMENTO satisfaz as duas partes ,quem RECEBE e quem FAZ.

  12. Paulo Fernando Vogel
    Paulo Fernando Vogel

    Beatles forever!!!

  13. Eduardo Celso Poiano
    Eduardo Celso Poiano

    Os Beatles embalaram minha adolescência e ajudaram minha geração a suportar a caretice conservadora. Que bom seria que, na minha velhice, aparecesse gente tão criativa e libertária para me ajudar a suportar a caretice “progressista”.

  14. Paulo Ferreira
    Paulo Ferreira

    Bons tempos! A geração dos Beatles é vencedora, temos um mundo melhor hoje, mas é fato, o sonho acabou. Pesadelo? Sou otimista, não é tanto, genial Fiúza.

    1. Adair Nogueira Filho
      Adair Nogueira Filho

      Amigos, Guilherme Fiuza é um espírito que vive imerso e ao mesmo tempo planando a realidade. Ele dá espaço nas suas asas para nós voarmos também. Alma doce e generosa, daquele poeta que existe para nos dar conforto e alegria.

  15. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Fiuza, esse é o eufemismo da contundência

  16. Joao Batista Inacio Leao
    Joao Batista Inacio Leao

    Que belo texto ! para ficar na história da Oeste! Parabéns mestre Fiúza mais vez!

  17. clovis inacio bohrer filho
    clovis inacio bohrer filho

    Parabens!! perfeito!!

  18. Machado lson
    Machado lson

    Magnífico.

  19. Regis Tavares Da Silva
    Regis Tavares Da Silva

    Meu Deus! Que maravilha de insight! Inspirador e certeiro.

  20. Andreia Rodrigues Gomes
    Andreia Rodrigues Gomes

    Obrigada!!

  21. João Antonio Chiappa
    João Antonio Chiappa

    Esse artigo precisava ser escrito!

    E por ninguém mais apropriado.

    Obrigado.

  22. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante, Fiuza!

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