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Suprema Corte Americana e Supremo Tribunal Federal, no Brasil | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 121

Supremo tribunal de pequenas causas

Enquanto a Suprema Corte dos EUA se atém à Carta Magna, o STF julga de furto de chiclete à redução do IPI

Cristyan Costa
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Em 1787, os pais fundadores dos Estados Unidos entenderam que, para ser eficaz, uma Constituição tinha de ser enxuta e objetiva. Dessa forma, redigiram o texto com apenas sete artigos. Em 235 anos, o documento recebeu 27 emendas e permanece praticamente o mesmo. Em vigor desde 1988, a Carta Magna brasileira possui 250 artigos e 111 emendas. Trata-se da sétima Constituição que o país tem desde o Império. A primeira havia sido outorgada por Dom Pedro I, em 1824.

Enquanto o texto norte-americano se debruça sobre questões estritamente constitucionais, como as liberdades públicas e a organização do Estado, a brasileira tenta resolver praticamente todos os problemas do país. A Constituição de 1988 abrange uma série de temas, que vão da “busca pela felicidade” a propostas para a educação e a economia, passando pelo “interesse social” de imóveis e pela reforma agrária. Tudo num texto só.

Essa diferença faz com que a Corte brasileira julgue casos como o de um homem que furtou dois xampus, no valor de R$ 10 cada um, em um supermercado de Barra Bonita, no interior de São Paulo. Em julho de 2020, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou uma liminar ao acusado. Na decisão, a magistrada lembrou que o bandido havia cometido outros delitos da mesma natureza.

Depois de quatro meses, contudo, a juíza do STF decidiu soltar o bandido e extinguir a ação por causa da repercussão na mídia. Um ano mais tarde, foi a vez de Nunes Marques julgar — e decidir manter presa — uma mulher que furtou barras de chocolates e uma caixa de chicletes em Boa Esperança (MG), em 2013. A Defensoria Pública informou que vai recorrer da decisão.

Sentenças dessa natureza estão longe de fazer parte do cotidiano da Suprema Corte dos EUA, que se dedica a analisar casos maiores — e de sua competência. No mês passado, o tribunal ampliou o acesso a armas de fogo. Seis dos nove juízes, equivalentes aos nossos ministros do STF, anularam uma lei de Nova Iorque que exigia das pessoas um comprovante de legítima defesa para usarem armas de fogo em público. A decisão impede ainda que outros Estados restrinjam o direito dos cidadãos de portarem armas nas ruas.

“A Constituição protege o direito de um indivíduo de portar uma arma de fogo para autodefesa fora de casa”, constatou o relator do caso, Clarence Thomas, ao citar a Segunda Emenda da Carta Magna. “Não sabemos de nenhum outro direito constitucional que possa ser exercido por um indivíduo apenas depois de demonstrar a autoridades do governo a existência de uma necessidade especial.”

Respeitando o federalismo previsto na Carta Magna, a Suprema Corte deu a Estados o poder de decisão sobre o aborto e provocou o Legislativo a se mexer. Nos EUA, proibir a interrupção da gravidez não era possível desde 1973, em razão de uma interpretação da Corte no caso conhecido como Roe vs Wade. Em junho, a maioria dos juízes argumentou que a “Constituição não faz referência ao aborto, e tal direito não é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional”. Portanto, a partir de agora, caso os norte-americanos queiram impedir a proibição do aborto em nível federal, precisam eleger parlamentares suficientes para aprovarem uma lei assim.

Caso Roe vs Wade | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock

Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Direito público administrativo pela FGV, explica que o Judiciário norte-americano é mais eficiente, em virtude do sistema jurídico simples do país: o chamado common law. Nesse modelo, as fontes do Direito são os costumes da sociedade e as decisões anteriores de outros juízes, que servem de referência, apoiados na lei e na Constituição.

“O Brasil optou por um modelo chamado civil law”, observou a especialista. Esse formato leva em conta mais as leis do que os costumes para dar uma sentença. Por exemplo: vamos supor que a Constituição dos EUA permitisse a condenação apenas depois do “trânsito em julgado”. É lógico você decidir que as pessoas precisam cumprir a pena depois de condenação em segunda instância, sem precisar seguir a letra fria da lei. “Além disso, o sistema permite uma série de recursos nos Tribunais Superiores para chegar à justiça plena, o que torna o Judiciário bastante lento.” Chemim disse ainda que, como a Constituição é ampla, os juízes brasileiros precisam se debruçar sobre vários temas. “Torna-se algo moroso.”

Guardiões das liberdades

Em junho, os juízes da Suprema Corte norte-americana limitaram o poder da Agência de Proteção Ambiental para reduzir os “gases de efeito estufa” na atmosfera, parte dos planos do presidente Joe Biden de “lutar contra as mudanças climáticas”. A Corte acolheu um processo de 19 governadores, que demonstraram preocupação com a possibilidade de seus setores de energia serem regulamentados, além de forçados a abandonar o carvão a um alto custo econômico. A maioria dos juízes escolheu a liberdade econômica e a sobrevivência das empresas do país.

O STF foi na contramão da prudência e derrubou uma portaria do Ministério do Trabalho que impedia a demissão por justa causa de não vacinados

Os juízes também já se manifestaram a favor da liberdade religiosa nos EUA. No fim de junho deste ano, a Corte decidiu que o Estado de Maine, governado por uma democrata, não poderia impedir que fundos públicos fossem usados por escolas que promovam ensino religioso. Segundo a opinião da maioria dos juízes, Maine discriminava os colégios religiosos, por seu ensino da fé. “A exigência de Maine viola a cláusula de livre exercício da Primeira Emenda (que reconhece a liberdade religiosa)”, escreveu o juiz John Roberts, na sentença.

Joe Biden anuncia o programa Vaccines.gov | Foto: Official White House/Adam Schultz

No âmbito da pandemia de covid-19, os magistrados optaram pela sensatez. Em defesa dos direitos individuais, a Suprema Corte barrou a tentativa de Biden de impor a vacinação contra o novo coronavírus em companhias privadas com mais de 100 funcionários. Os não vacinados teriam de apresentar exames negativos semanais e usar máscaras diariamente. Além disso, haveria multa para quem descumprisse a ordem. “Embora o Congresso, indiscutivelmente, tenha dado à OSHA (agência federal do trabalho) o poder de regular os riscos ocupacionais, não deu a essa agência o poder de regular a saúde pública de forma mais ampla”, sustentaram os magistrados, na decisão.

Aqui no Brasil, o STF foi na contramão da prudência e derrubou uma portaria do Ministério do Trabalho que impedia a demissão por justa causa de não vacinados. A pasta havia considerado “discriminatória” a prática de empregadores exigirem o chamado “passaporte sanitário” de seus funcionários. A medida do Palácio do Planalto foi contestada na Corte pela Rede Sustentabilidade, que conseguiu uma liminar do ministro Luís Roberto Barroso. O caso chegou ao plenário do tribunal, mas acabou suspenso. Portanto, enquanto a maioria não voltar a analisar o processo, prevalece a canetada de Barroso.

Ativismo judicial brasileiro

Se nos Estados Unidos a Suprema Corte se dedica à defesa das liberdades, sobretudo individuais, no Brasil, o STF se mete até na vacinação de crianças, prerrogativa do Ministério da Saúde. Em janeiro deste ano, o ministro Ricardo Lewandowski acolheu um pedido da Rede Sustentabilidade para obrigar a imunização infantil. O juiz do STF decidiu que os Ministérios Públicos e os Conselhos Tutelares têm de fiscalizar a vacinação de crianças e adolescentes. A sentença fez com que juízes de instâncias menores passassem a afirmar que os pais poderiam perder a guarda dos filhos, caso não os vacinassem contra a covid.

O STF se intrometeu ainda em um assunto de caráter econômico. Em maio, o ministro Alexandre de Moraes acolheu um pedido do Solidariedade e derrubou dois decretos do presidente Jair Bolsonaro que reduziam em 25% e 35% as alíquotas dos Produtos Industrializados (IPI), assunto que compete à União, como uma forma de estimular a economia. A Moraes, o partido de esquerda argumentou que as ordens do Executivo prejudicavam a Zona Franca de Manaus.

A política também está no menu dos ministros. Há dois anos, o plenário validou o inquérito das fake news, apesar de o próprio STF não ter o direito constitucional de fazer uma investigação criminal. Nesse inquérito, foram presos o jornalista Oswaldo Eustáquio, o ex-presidente do PTB Roberto Jefferson e o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ). Há dois meses, o parlamentar foi condenado a oito anos e nove meses de prisão por supostas fake news e atos antidemocráticos. Apenas Nunes Marques foi contrário. (Silveira acabou contemplado com uma graça concedida por Jair Bolsonaro.)

Deputado Daniel Silveira
Deputado Daniel Silveira, no dia do julgamento | Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados

Decisões em favor de partidos e crimes menores, como furtos, passam longe da Suprema Corte norte-americana. Raramente um parlamentar vai ao tribunal pedir algo, como o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) faz sempre que discorda de uma decisão do governo e do Congresso Nacional. O jurista Dircêo Torrecillas Ramos diz que, apesar de ser permitido que um parlamentar vá à Suprema Corte, deve prevalecer o bom senso.

“Não se pode usar o STF dessa maneira”, disse o jurista. Segundo Torrecillas, os ministros também podem negar determinados casos imediatamente, se quiserem, visto que a pauta de prioridades é decidida pelos próprios magistrados, diferentemente dos EUA, onde a ordem cronológica prevalece. “Não havia necessidade de o STF abrir aquela CPI da Covid, por exemplo”, constatou. “Deveriam ter deixado o Parlamento resolver. Há tantas coisas mais importantes. Mesmo assim, ultrapassaram barreiras. O ativismo judicial tem de acabar no nosso país.”

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14 comentários
  1. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Seja um revendedor de perfumes (99)98103-9232

  2. Eduardo
    Eduardo

    É o tal do PODER MODERADOR que o Toffoli entregou de bandeja. Se os canalhas tomarem o poder o STF vai sumir do mapa.

  3. Luis Antonio Felipe
    Luis Antonio Felipe

    nossos ministros do stf é uma vergonha mundial

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Essas Constituição é pior do que o código de Hamurabi 1767 antes de Cristo é maís moderno. E essa justiça brasileira é uma piada, existe melhores condutas num baixo meritricio

  5. Eduardo Cunha Rocha
    Eduardo Cunha Rocha

    Só falta o STF determinar com que mão devemos limpar o que comemos mais cedo.

  6. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Por enquanto estou na linha da crítica publicável. SE continuar o STF agind odesta maneira, eu, eleitor e idoso, não criminoso, terei que utilizar palavrões.

  7. Helcio Jose Pinto Rodrigues
    Helcio Jose Pinto Rodrigues

    Eu residia em um prédio que, para surpresa de ninguém, sempre havia “bate boca” nas reuniões de Condomínio. Havia um vizinho gaiato que sempre dizia, em tom de gozação, que a nossa Assembleia iria parar no STF. Hoje isso é um risco real de assistirmos um Moraes se intrometendo em reunião de condomínio.

    1. Eduardo
      Eduardo

      Fica tranquilo, esses iluministros só se intrometem no governo Bolsonaro.

  8. Paulo Fernando Vogel
    Paulo Fernando Vogel

    Violação sistemática da Constituição por ministros do STF. Sim, mas… e daí?

  9. Gustavo G. Junior
    Gustavo G. Junior

    corte : Saiam de seus Ar Condicionais e candidatem-se a ‘Deputado’ pela sua cidade !!

    1. Gustavo G. Junior
      Gustavo G. Junior

      # Condicionados e …..

  10. João Cirilo
    João Cirilo

    A questão do xampu, como um exemplo de ninharia. Essa questão é constitucional? Claro que não.

    Só seria se por alguma razão o “devido processo legal” fosse atropelado. Como ao réu ser negado o direito de defesa, a sentença ser prolatada por um juiz absolutamente incompetente, entre outros fatores possíveis, mas raríssimos.

    Furtar é crime, e como tal está tipificado no Código Penal sujeitando seu autor às penas previstas. Como a lei não especifica um piso nem um teto para a ação do furtador, tanto faz se apropriar do alheio num real ou num milhão, que legalmente o autor é passível de prisão.

    Mas, aqui, não. Aqui há os recursos com as mais absurdas teses possíveis. E o mais interessante é que em havendo teses para todos os gostos, muitas teses realmente interessantes e que trazem prejuízos reais para o cidadão ou para coletividade não são conhecidas, porque “cachorro com muito dono morre de fome”, um adágio que pode, com as devidas cautelas, ser aplicado no ponto.

  11. Benjamin Gonzalez Martin
    Benjamin Gonzalez Martin

    STF vergonha nacional e internacional.

  12. Benjamin Gonzalez Martin
    Benjamin Gonzalez Martin

    STF vergonha nacional e internacional. Reforma já !!

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