Antonin Scalia foi juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos de 1986 até a sua morte, em 2016. Nomeado pelo presidente Ronald Reagan, Scalia foi descrito como a âncora intelectual do originalismo e do textualismo na interpretação da Constituição dos Estados Unidos. Eis aí alguém que os nossos “magistrados” do STF deveriam ler.
“Enquanto os juízes mexerem com a Constituição para ‘fazer o que as pessoas querem’, em vez do que o documento realmente comanda, os políticos que escolherem e confirmarem os novos juízes, naturalmente, quererão apenas aqueles que concordam com eles politicamente”, disse Scalia. O juiz constitucionalista, afinal, não está ali para “empurrar a história”, mas, sim, para proteger a Constituição.
“Se você for um juiz bom e fiel, você deve se resignar ao fato de que nem sempre vai gostar das conclusões a que você chega. Se você gosta delas o tempo todo, provavelmente está fazendo algo errado”, constatou Scalia. O juiz não está lá para impor a sua visão de mundo, mas, sim, para se ater ao que diz a lei.
Scalia foi o primeiro “justice” de origem italiana, e era um conservador originalista, ou seja, levava muito a sério a intenção dos “pais fundadores” ao legarem a Constituição como espinha dorsal da lei no país que criaram, em vez de considerar o documento um “organismo vivo” a ser moldado pelo modismo, ou pela “voz das ruas”. “As palavras têm significado. E o seu significado não muda”, dizia.
O juiz não está lá para impor a sua visão de mundo, mas, sim, para se ater ao que diz a lei
Católico, amante de ópera, dono de refinado bom humor e com uma postura de cavalheiro, Scalia foi casado por meio século com Maureen, com quem teve nove filhos. Scalia morreu aos 79 anos de idade, em 2016, num rancho no Texas, onde estava com outros membros de um grupo de caça. Um de seus filhos, Christopher, reuniu inúmeros discursos do pai, com a ajuda de um assessor, no livro Scalia Speaks, que engloba reflexões não só sobre o Direito legal, mas sobre a fé e uma vida bem vivida.
O prefácio foi escrito por Ruth Ginsburg, que também foi juíza da Suprema Corte e de inclinação “progressista”. As divergências ideológicas não impediram a amizade e o respeito mútuo entre ambos, algo que já serve como primeira lição para os tempos atuais, em que qualquer desacordo político já é pretexto para romper relacionamentos. Boas pessoas podem chegar a conclusões diferentes, e as instituições podem se beneficiar de tal pluralidade.
Além disso, o próprio Scalia gostava de desafiar crenças estabelecidas. Não por ser do contra, mas por entender que era fundamental inspirar nos outros a dúvida, o desejo de questionar suas premissas e de buscar a verdade. O processo de procurar a resposta, de pesquisar, é aquele que estimula a mente. Novas analogias ocorrem, novas avenidas se abrem, e os insights surgem por meio desse processo.
De origem italiana, Scalia também foi um grande patriota, e identificava os principais valores que representavam a América. Tinha humildade para reconhecer que os melhores de hoje, os mais bem-sucedidos, subiram em ombros de gigantes do passado. Ele entendia como é difícil criar uma grande sociedade, enquanto é muito fácil, por meio de intrigas bobas internas ou do fracasso de confrontar ameaças externas, perdê-la. A América merece ser preservada.
E quais seriam esses valores que fazem dela uma grande nação, e que os italianos teriam colaborado para alimentar? Em primeiro lugar, a capacidade de trabalhar duro; em segundo lugar, o amor pela família; em terceiro lugar, o amor pela igreja, ou a fé religiosa; e, por fim, como resultado dos demais, um amor pelos prazeres físicos simples da existência humana, como boa comida, música e, claro, vinho.
Scalia gostava de desafiar crenças estabelecidas. Não por ser do contra, mas por entender que era fundamental inspirar nos outros a dúvida
Com isso em mente, Scalia se sentia orgulhoso da herança cultural italiana, e mesmo assim se sentia 100% norte-americano. Imigrantes jamais deveriam ser ingratos com a América. Se trouxeram contribuições, também receberam muita coisa em troca. A começar pela tolerância para com essas diferenças, algo um tanto único nos Estados Unidos, um “caldeirão” cultural. E o que faz alguém norte-americano não é o sangue, o local de nascimento ou o nome, mas, sim, a crença nos princípios da liberdade e da igualdade de todos perante as leis.
Um dos pontos mais fortes da nação, para Scalia, é justamente o fato de pessoas com credos distintos, etnias diferentes, origens diversas, unirem-se em prol de ideais comuns e aprenderem não só a tolerar, mas a respeitar o outro. Mas nada disso pode ser tomado como garantido. Scalia lembrava que o progresso moral não segue o material, e que a Alemanha que produziu o nazismo foi a mesma que se destacava nas ciências, na filosofia, na música ou na educação pública. O fato de que o Holocausto ocorreu nesta nação deve servir sempre como alerta aos que confundem avanço científico ou material com valores morais ou espirituais.
Por mais que a América seja fruto do legado da Europa, Scalia também gostava de destacar as diferenças entre ambos, apontando valores que os norte-americanos tinham e estavam ausentes no continente europeu. A Constituição escrita pelos fundadores tinha como meta justamente impedir muitos dos equívocos que enxergaram no Velho Continente. A começar por um ceticismo bem maior em relação ao governo, buscando criar mecanismos de pesos e contrapesos para mitigar o potencial estrago causado pelo Estado.
Os meios para perseguir os fins é que variam bastante, e o diabo está sempre nos detalhes. Os norte-americanos demonstraram ao longo do tempo um apreço maior pela defesa das liberdades individuais, pela liberdade de expressão e religiosa, garantida na Primeira Emenda, pelo direito de ter armas, garantido na Segunda Emenda e que visava à proteção do povo contra o risco de tirania do governo.
O aspecto religioso também difere; enquanto a Europa se torna cada vez mais secular, os norte-americanos seguem conscientes daquilo que seus “pais fundadores” sabiam: que um povo livre precisa de um arcabouço moral, e que este depende da religião. John Adams, Benjamin Rush e George Washington enfatizaram inúmeras vezes a importância desse pilar para a sobrevivência da República.
Por fim, a importância vital do “rule of law”, um Estado de Direito em que todos devem responder às mesmas regras. Scalia citava em seus discursos um trecho de O Homem que Não Vendeu a Sua Alma, filme de Robert Bolt sobre Thomas More, em que o santo justifica o benefício legal até para o diabo. A passagem é memorável, pois More faz uma defesa incrível do império das leis dos homens, lembrando que não é Deus para julgar acima delas, e que atalhos ilegais para punir quem se sabe ser uma pessoa ruim colocam em risco o próprio arcabouço que protege os inocentes:
“Oh? E quando a última lei caísse, e o Diabo se virasse para você — onde você se esconderia, Roper, as leis estando todas abaixo? Este país está enraizado com leis de costa a costa — as leis do homem, não as de Deus — e, se você as derrubar — e você é o homem certo para isso —, você realmente acha que poderia ficar de pé contra os ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei, para minha própria segurança”.
Isso sim era um juiz de verdade! Scalia era um pilar do conservadorismo na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ele nunca teve a pretensão de saber mais do que as leis, e jamais misturou sua importante função de aplicá-las com aquela dos legisladores, que as criam. Tal humildade demonstrava enorme força, ao contrário da arrogância autoritária de alguns ministros supremos brasileiros, que expõe somente sua fraqueza moral.
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Mirem-se no exemplo!
Excelentes princípios democráticos tanto do Constantino como de Scalia.
Brilhante.
Consta, achar que “ler” os discursos do Scalia faria alguma diferença em nosso STF é tão inocente que irrita. Se fosse só esse o problema, bastaria o Alexandre de Moraes ler Alexandre de Moraes. O buraco é mais embaixo. A constituição brasileira foi feita para privilegiar a casta da burocracia e os donos dos partidos políticos e seus comparsas na iniciativa privada, no tal “capitalismo de compadrio”. Nos últimos anos a moralidade se degradou a tal ponto que o narcotráfico entrou na parceria dos donos do poder, escolhendo até mesmo ministros no supremo que empurram sua causa pra frente.
Exemplo incrível de juiz. Como exemplo, é a antítese do covarde Alexandre de Morais.
Parabéns, Constantino. Esse texto é maravilhoso. Quisera nossos deputados e senadores se debruçassem sobre essa matéria e procurassem entender como funciona uma Suprema Corte, antes de sabatinar um candidato a vaga de ministro do STF e dessa forma diminuir o risco de colocar, no mesmo, pessoas tipo Alexandre de Moraes, Barroso, Facchin, Gilmar Mendes e outros. Cabe a nós eleitores, escolhermos muito bem nosso senadores em outubro.
Ótimo comentsrio
Como é necessário expor biografias dessa estirpe nos pobres dias jurídicos atuais. Parabéns
Infelizmente nosso Supremo não está imbuído da importância do papel q deveria exercer. Jamais pensei que veria uma corte de justiça superior atuando tão despudoradamente à margem da constituição e como partido de oposição!
Texto fundamental, para guardar e ser relido de vez em quando. Parabéns Rodrigo!
Irretocável o texto. Parabéns Constantino.
Parabéns Rodrigo, texto maravilhoso.
Parabéns Consta. Deve ser muito bom o prazer de estudar e ler.
Esse Scalia é um exemplo de ética para todos os outros juízes, o inverso desses daqui, claro, não são todos, mas a contaminação é grande. Constantino gosto muito de tu
Seria tão simples se nosso supremo aprendesse e se espelhassem…
a constituição de um país, por mais medíocre que seja e a nossa o é, é o pilar da democracia e o norte a ser respeitado e seguido. A nossa vem sendo vilipendiada dia após dia. Ela não existe mais como norma para aplicação de leis pelo judiciário. A “constituição” que impera é a que está na vontade de quem julga.
Que vergonha sinto da quadrilha que se instalou no STF. pessoas imorais e medíocres, incapaz de reconhecer seus erros. São arrogantes e prepotentes.
Concordo integralmente.
Excelente texto. Parabéns!
Excelente!!
Parabéns pelo belíssimo artigo! Scalia era um gigante entre os seus pares, mas sua humildade e o desejo de construir em consenso (leia-se fraternidade) impediam-no de “avançar para águas proibidas” e de se sentir “supremo”, tão na moda atualmente!
Por tais predicados, luzes para trevas, infelizmente seu exemplo não cativará os anões morais que ocupam postos chaves nos P(p)oderes de nosso país. Usarão o bordão: “ah, era um conservador”.
Mais Scalia no STF para andarem dentro das 4 linhas da CF.