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Foto: David Arsham/Shutterstock
Edição 137

O disco que mudou tudo

O álbum Revolver, dos Beatles, que abriu a mente do mundo, é relançado em grande estilo

Dagomir Marquezi
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A primeira vez que escutei Revolver, eu tinha 13 anos. Meu primo Ricardo me chamou na casa dele para ouvir o novo disco dos Beatles. Em 1966 a única forma de ouvir um disco importado era pedir a alguém que o trouxesse do exterior. Colocamos o vinil no toca discos. Ele começou tão estranho, com aquelas vozes em velocidade alterada, tosse, ruidos aleatórios — que achamos que estivesse quebrado.

Resolvemos dar mais uma chance. Percebemos então que aquelas vozes e ruídos no início de Taxman faziam parte da música. Os 34 minutos e 37 segundos que duraram aquela primeira audição de Revolver sacudiram meu cérebro para sempre. Abriram portais na minha mente que nunca mais se fecharam. Antes, os Beatles eram vozes, duas guitarras, um baixo e uma bateria. Agora eles apareciam com instrumentos indianos, truques de edição, metais, instrumentos clássicos e distorções de som. E eu nunca veria (ou ouviria) o mundo da mesma forma novamente.

Revolver tem toda essa significância” — escreveu no fim de outubro o jornalista Dan Cairns para o jornal britânico The Times. “É um momento na cultura ocidental tão crucial quanto a sinfonia Eroica, de Beethoven; Presley, com Hound Dog; A Sagração da Primavera, de Stravinsky; o teto da Capela Sistina; a Fonte de Duchamp; Le Déjeuner Sur l’Herbe, de Manet; e The Waste Land, de T.S. Eliot.”

Virou um lugar-comum considerar Sgt Pepper’s Lonely Heart Club Band o ápice dos Beatles. O relançamento de Revolver, com uma espetacular remixagem de Giles Martin (filho do produtor original, George Martin) colocou o disco no lugar que merece estar: o de obra-prima do pop rock. O box inclui o equivalente a cinco CDs cheios de versões alternativas, rascunhos musicais e curiosidades. São duas horas e 40 minutos de tudo o que um fã poderia desejar. 

Revolver foi o mais inovador álbum dos Beatles. A nova versão mostra que eles estavam no auge do domínio de seus instrumentos e vozes. Mais uma razão para o disco sair tão bom: eles ainda não estavam brigando. Eram um quarteto, trabalhando em equipe. Os discos que vieram depois procuravam recapturar a magia deste álbum. Depois de Revolver os Beatles seriam cada vez mais um grupo de quatro indivíduos gravando projetos solos. (Em tempo: o título do álbum não se refere a uma arma, mas ao fato de o vinil “revolver” no toca-discos).

John, Ringo, George e Paul, durante as gravações de Revolver | Foto: Divulgação/Apple Corps

O último show dos Beatles aconteceu no Candlestick Park, São Francisco, Califórnia, no dia 29 de agosto de 1966. Eles estavam cansados das excursões intermináveis, da gritaria ensurdecedora nos shows, da vida precária na estrada. Decidiram parar de tocar ao vivo.

O clima em Revolver reflete essa felicidade de fazer o que eles gostavam: compor e gravar com absoluta liberdade, usando o próprio estúdio como um instrumento. Os Beatles (e seu produtor George Martin) queriam experimentar mais, usar mais recursos, fazer músicas cada vez mais complexas e surpreendentes. O mundo estava vivendo a aurora do psicodelismo, e drogas como o LSD ainda eram legais. Mais do que nunca, regras (musicais) existiam para ser quebradas.

Ouça Revolver e conheça alguns detalhes de cada faixa:

A capa da nova versão de Revolver, com a mesma arte original de Klaus Voormann | Foto: Divulgação/Apple Corps

Taxman

Os Beatles estavam ganhando muito bem, mas pagando 95% de imposto para o devorador governo trabalhista do primeiro-ministro Harold Wilson. (Ele e o opositor do Partido Conservador, Edward Heath, também são “homenageados” na letra). É a primeira música de George Harrison a abrir um disco dos Beatles. Parece evidente uma ligação, mesmo que inconsciente, com o tema da série Batman. É uma surpreendente música de protesto de um compositor muito mais ligado a práticas religiosas do que à sua conta bancária. Sua crítica cabe perfeitamente no panorama de Estado inchado e vampiresco que temos no Brasil: “Se você dirige um carro, eu taxo a rua / Se você tentar sentar, eu taxo a cadeira / Se você sentir muito frio, eu taxo o calor / Se você der um passeio, eu taxo seus pés”.

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Eleanor Rigby

Essa foi a canção que subiu os Beatles a um patamar muito acima do conceito tradicional de música pop. Paul McCartney fala da mulher que dá o título à canção, tão pobre que catava o arroz jogado nos noivos na igreja. Fala também do Padre McKenzie, que escreve um sermão que ninguém vai ouvir, pois ninguém chega perto do púlpito. A história tem um fecho dramático: “Eleanor Rigby morreu na igreja e foi enterrada junto com seu nome / Ninguém apareceu / Padre McKenzie, limpando a sujeira das mãos enquanto se afastava do túmulo / Ninguém se salvou”. Foi gravada apenas com a voz de Paul e um octeto de cordas em estilo barroco arranjado por George Martin. Paul McCartney sabe controlar nossas emoções com precisão milimétrica. E era apenas um jovem de 23 anos. O Take 2, no CD 3, sem vocais, mostra a força do arranjo para cordas de George Martin.

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I’m Only Sleeping

Enquanto Paul era o workaholic do quarteto, John Lennon tinha fama de preguiçoso. Esta é uma (preguiçosa) balada sobre o prazer de dormir, de dar um tempo, de deixar a vida correr lá fora. Um solo muito estranho de 17 segundos era apenas a gravação de um solo de guitarra de Paul tocada ao contrário. “Por favor não estrague meu dia, eu estou a milhas de distância / E afinal estou apenas dormindo / Olhando o mundo passando pela minha janela / Dando um tempo”. A faixa Reversal Fragment (CD3) mostra uma versão quase jazzística dessa música, que inclui um surpreendente som de vibrafone. 

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Love You To

Um dos grandes choques reservados em Revolver é essa composição de George Harrison, que usa apenas sua voz e instrumentos indianos. George arrombou a porta dos nossos ouvidos ocidentais com algo completamente diferente de tudo o que a gente tinha ouvido até então. O som de instrumentos como a cítara, o Pakhawaj e a tabla parecia vir de outro mundo. Adepto da meditação e estudioso da cultura indiana, George Harrison rachou com essa música as estruturas mentais de um garoto de 13 anos como eu. “Cada dia passa tão rápido / Eu me volto e já é passado / Me ame enquanto você pode / Antes que eu vire um velho morto”.

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Here There and Everywhere

Uma simples e perfeita canção de amor de Paul (com “20%” de ajuda de John). O arranjo é o mais simples possível, com os instrumentos escondidos por um acompanhamento vocal que não tem medo de parecer cafona. É uma música sobre um homem feliz e bem resolvido. “Aqui, cada dia do ano / Mudando minha vida com um aceno de sua mão/ Ninguém pode negar que existe alguma coisa ali / Ali, passando minhas mãos por seu cabelo / Nós dois pensando o quanto pode ser bom”.

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Yellow Submarine

Paul tinha um apego por canções infantis — como Octopussy’s Garden e All Together Now. Yellow Submarine foi escrita com frases curtas para serem facilmente decoradas por crianças. “Na cidade onde nasci / Viveu um homem que navegou pelo mar / E ele contou sua vida / Na terra dos submarinos”. A música é preenchida com efeitos sonoros: as ordens de um capitão e a voz de um papagaio. A faixa Songwriting Work Tape (no CD 3) mostra uma versão inicial só com a voz de John Lennon acompanhada de um violão. E a música alegre e infantil parece apenas uma valsa triste.

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She Said She Said

Em agosto de 1965, John Lennon participou de uma grande festa em Los Angeles, onde todo mundo havia tomado uma droga ainda legal chamada LSD, ou ácido lisérgico. John encontrou o ator Peter Fonda, que contou uma experiência em que sofreu um acidente aos 10  anos e seu coração parou de bater na mesa de operação. “Eu sei como é me sentir morto”, disse ele a John. Um ano (e várias viagens de LSD) depois, Lennon compôs este rock à base de várias guitarras tocando ao mesmo tempo. Sua letra mostra a conhecida melancolia crônica de John, que contrasta com a animação da música. “Ela disse eu sei como é estar morta / Eu sei como é estar triste / E ela me faz sentir como se eu nunca tivesse nascido”.

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Good Day Sunshine

Paul é um mestre em escrever canções simples e alegres que parecem ter sido compostas no tempo do seu pai ou do seu avô. When I’m Sixty-Four e Honey Pie são dois exemplos. O arranjo aqui é centralizado em dois pianos. A harmonia vocal dispensa maiores instrumentações. “Bom dia, sol / Eu preciso rir / E quando o sol nasce  / Eu tenho uma razão para dar uma risada / Eu me sinto bem, de um jeito especial / Eu estou apaixonado e é um dia de sol”.

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And Your Bird Can Sing

John Lennon compôs esse rock, e o odiava. A letra é enigmática e fala de duas pessoas que não se entendem e um pássaro verde. Alguns estudiosos dizem que pode ser uma referência a um período de falta de comunicação com seu parceiro Paul. “Você diz que já viu as sete maravilhas e que seu pássaro é verde / Mas você não pode me ver, não pode me ver” A versão que fecha o CD 2 (First Version/Take 2/Giggling) mostra John e Paul caindo na gargalhada durante a gravação).

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For No One

Mais um torpedo sentimental. Paul McCartney fala da dor que causa num homem quando percebe que uma mulher não gosta mais dele. “Ela acorda, faz a maquiagem / Vai no seu ritmo e não parece ter pressa / Ela não precisa mais de você / E nos seus olhos você não vê nada / Nenhum sinal de amor atrás das lágrimas choradas por ninguém / Um amor que podia ter durado anos”. Paul criou com George Martin um arranjo de toques clássicos, com dois pianos, um cravo e um breve, preciso e cortante solo de trompa francesa. 

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Doctor Robert

Não se sabe exatamente a verdadeira identidade do tal doutor, mas o fato é que ele se refere a algum médico ou dentista que fornecia drogas lícitas ou ilícitas aos Beatles. Mais um rock agitado, balançado como Taxman. “Ele é um homem em quem você pode acreditar / Ajuda todo mundo que precisa / Ninguém é mais eficiênta do que Doutor Robert”

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I Want To Tell You

Mais uma bizarra canção de George Harrison, com um piano em tom grave martelando nossos ouvidos e uma música que não parece mudar de tom. Fala de alguém que não consegue botar suas ideias para fora. “Eu quero te falar / Me sinto desligado e não sei por quê / Não me importo / Eu posso esperar para sempre / Eu tenho tempo”. Talvez George estivesse falando da estranheza que sua vida de meditação e práticas indianas causava nos companheiros de banda.

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Got to Get You Into My Life

Paul compôs essa inspirado pela música black norte-americana, especialmente a soul music da gravadora Motown. A sonoridade à base de metais é completamente nova na discografia dos Beatles. Trumpetes, trombones e saxes fazem os Beatles soarem como uma big band. A letra parece uma canção romântica convencional: “Você nasceu para ficar perto de mim / E eu quero que você me ouça / Diga que nós ficaremos juntos todos os dias / Tenho que te trazer para minha vida”. Mas Paul revelou num livro de 1997 escrito por Barry Miles: “É na verdade uma homenagem à maconha, como alguém poderia ter escrito uma homenagem ao chocolate ou a um vinho clarete”.

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Tomorrow Never Knows

Um extrato da cultura psicodélica no seu berço. Ringo Starr brilha com sua batida furiosa e desconcertante. A letra de John Lennon, segundo o biógrafo Hunter Davies, se refere aos “conceitos budistas indianos de transcendentalismo e reencarnação, a necessidade de subjugar o ego e entrar no vazio”. John cita como uma das influências o Livro Tibetano dos Mortos. É música para ouvir de fones: sons que parecem vir de alienígenas viajam de um lado para o outro de nossas cabeças. A voz de John também parece vibrar em outra dimensão. “Desligue a cabeça, relaxe e flutue na correnteza / Não é morrer, não é morrer / Deixe de lado todo pensamento, se renda ao vazio / Está brilhando, está brilhando”. 

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Revolver Special Edition está disponível em CDs, vinil e nos serviços de streaming.

Leia também “O horrendo charme dos serial killers”

10 comentários
  1. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Caro Dagomir, hoje descobri a sua idade. O senhor é três anos mais velho que eu, ou eu sou três anos mais novo que o senhor. Tanto faz. Descobri as músicas dos Beatles aos 14 anos e fui durante anos fã de carteirinha do programa do saudoso Big Boy da rádio Mundial. Foram exatamente eles, Beatles, que mudaram para sempre a trajetória do que eu seria pela frente. Hoje já não ouço mais as músicas, porque não sinto mais essa necessidade. Bons tempos aqueles! O foco agora é político, essa preocupação diuturna com os problemas do Brasil, por isso estamos todos na Oeste. Além do mais, a própria Bíblia diz que pelo passado devemos ter é gratidão, não pedir pra voltar pra lá. E eu concordo. De qualquer forma, muito obrigado pela oportunidade. Vou favoritar esta edição.

  2. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Dagomir, que maravilha! Verdadeiro presente para qualquer um, principalmente os beatlemaníacos! Que capricho!
    Me sentí realmente presenteada! Obrigada!

  3. Victor Luiz
    Victor Luiz

    Se você tinha 13 em 66, empatou comigo. Recordação maravilhosa. Disco esplêndido. Fui surpreendido pela matéria. Ganhei o dia. Obrigado .

  4. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    Sensacional, Dagomir. E viva o Palestra!

    1. Dagomir Marquezi

      Viva!

      1. Paulier Soares Brandão Junior
        Paulier Soares Brandão Junior

        Acabei de assinar a revista e me deparo com esse presente! Meu disco preferido da maior banda de todos os tempos. Parabéns e muito obrigado!!

  5. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Ótimo! Grandes músicas retratando uma época muito doida. Suas explicações são bem objetivas e elucidantes.

    1. Dagomir Marquezi

      Obrigado, Marcio!

  6. Claudia Aguiar de Siqueira
    Claudia Aguiar de Siqueira

    Sensacional, Dagomir! Seu texto e essa edição especial do “Revolver” (palavra cuja singela explicação foi uma surpresa para mim). Vou correr atrás do meu exemplar.

    1. Dagomir Marquezi

      Valeu, Claudia! Eu acho mais vantajoso ouvir pelo streaming, se você me permite uma opinião…

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