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Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 141

Golpe de Estado

Para o PT, a democracia jamais foi um valor em si mesmo, mas uma “questão estratégica”

Flávio Gordon
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Q

uando, em setembro de 2018, em entrevista ao El País, José Dirceu declarou que era questão de tempo para o PT tomar o poder, e que essa tomada nada tinha a ver com ganhar uma eleição, poucos no Brasil pareceram se importar. E, todavia, o que Dirceu fazia ali era anunciar o golpe de Estado que, um ciclo eleitoral depois, ele e seus companheiros dariam no país. Com efeito, o golpe nada teve a ver com sucesso na eleição. Ao contrário, o próprio pleito recém-vencido — de maneira ilegítima, frise-se sempre — é que foi a consagração formal do golpe, erigido, entre outras coisas, sobre o aparelhamento das instituições da sociedade civil (notadamente da imprensa) e do Estado (notadamente o Poder Judiciário). O golpe teve a ver, sobretudo, com aquilo que, em obra clássica, Curzio Malaparte definiu como o manejo de uma técnica.

“O problema da conquista e da defesa do Estado não é uma questão política, e sim técnica” — diz Malaparte, referindo-se especificamente por técnica ao controle dos centros de poder tecnológico e aos meios de coleta de informações. É sintomático nesse sentido que o anunciante do golpe tenha sido um ex-agente do serviço secreto cubano (se é que existe essa coisa de “ex”-agente de um serviço secreto), por longos anos dedicado ao aprimoramento da “técnica” malapartiana, e que, em tempos longínquos, chegou a se gabar da informação acumulada acerca de campanhas adversárias. Como bem mostrou a jornalista Paula Schmitt em artigo recente, a razão da recente subversão do Estado de Direito no Brasil pode muito bem residir no velho instituto soviético do kompromat, informações comprometedoras que podem ser usadas para chantagear pessoas poderosas.

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O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, ao ser solto do Presídio da Papuda, em Brasília – 08/11/2019 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Mas, seja como for, o fato do golpe de Estado parece-me incontestável. É claro que dificulta a sua visualização o estereótipo tradicional associado ao conceito, que costuma subentender o emprego de força militar. Na imaginação coletiva brasileira, em especial, a noção de golpe de Estado remete ao 31 de março de 1964 e às cenas de tanques nas ruas e soldados marchando. Mas há vários estilos de golpe de Estado, e o estilo adotado pelo lulopetismo — corrente política originalmente moldada pelo pensamento de Antonio Gramsci, o teórico do aparelhamento — foi o da captura e do parasitismo das instituições democráticas. Para o PT, com efeito, a democracia jamais foi um valor em si mesmo, mas uma “questão estratégica”. Daí que, em 2 de outubro de 2002, antes de sua primeira vitória eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva tenha confessado ao jornal francês Le Monde: “A eleição é uma farsa pela qual é preciso passar para se chegar ao poder”.

O golpe de Estado jurídico procede via exercício de um poder originalmente adjudicado aos magistrados pela norma fundamental, mas em seguida usurpado por eles e utilizado para a imposição de vontades políticas

Uma vertente da técnica lulopetista de golpe de Estado é aquela que alguns teóricos do Direito chamam especificamente de “golpe de Estado jurídico”. Como explica Alec Stone Sweet, professor de Direito da Universidade de Yale, o conceito de golpe de Estado jurídico implica uma transformação radical nas fundações normativas de um sistema legal, operada mediante ativismo judicial por parte dos membros de uma Corte constitucional, que passam a agir como legisladores. Essa “transformação radical” ocorre, em primeiro lugar, sempre que a lei constitucional derivada do ativismo não corresponde ao espírito e aos propósitos do poder constituinte originário. Em segundo lugar, sempre que altere fundamentalmente — e, de novo, de maneira não prevista ou pretendida pelos constituintes — a maneira habitual de funcionamento do sistema legal. Essa transformação fará com que seja impossível a um observador deduzir o novo sistema legal (ou para-legal) a partir do arcabouço institucional prévio. E, obviamente, acarretará uma quebra na ortodoxia montesquiana da separação de Poderes vigente no contexto pré-golpe. No novo contexto, o instituto habitual de freios e contrapesos não será capaz de disciplinar os papeis e as limitações constitucionais dos órgãos do Estado.

A pulsão legiferante de magistrados politicamente comprometidos produz na Carta Magna mudanças não delimitadas pelo texto constitucional, conquanto operadas em seu nome. Ao contrário do golpe de Estado estereotípico (revolucionário) — cujos atos são explicitamente não autorizados pelo que Kelsen chamou celebremente de “norma fundamental” preexistente (uma Constituição, por exemplo) —, o golpe de Estado jurídico procede via exercício de um poder originalmente adjudicado aos magistrados pela norma fundamental, mas em seguida usurpado por eles e utilizado para a imposição de vontades políticas.

Eis porque o golpe de Estado jurídico seja muito mais insidioso e difícil de conter, uma vez que, menos espalhafatosos que golpistas revolucionários ortodoxos, seus agentes impõem uma nova ordem recorrendo aos topoi e ao prestígio da velha ordem. Daí que possam, por exemplo, julgar em favor da censura no ato mesmo de condená-la verbalmente por inconstitucional. Ou palestrar em evento intitulado “Brasil e o Respeito à Liberdade e à Democracia” no instante em que perseguem cidadãos politicamente não alinhados. Ou ainda posar de bastiões da Constituição no instante em que violam a separação de Poderes e, conduzindo inquéritos semiclandestinos alheios ao sistema acusatório, mandam às favas o devido processo legal. Como bem disse o saudoso Olavo de Carvalho em postagem que voltou a circular nas redes sociais ao longo dos últimos dias:

“Uma democracia não pode ser instaurada por meios democráticos: para isso ela teria de existir antes de existir. Nem pode, quando moribunda, ser salva por meios democráticos: para isso teria de continuar saudável enquanto vai morrendo. O assassino da democracia leva sempre vantagem sobre os defensores dela. Ele vai suprimindo os meios de ação democráticos e, quando alguém tenta salvar a democracia por outros meios — os únicos possíveis —, ele o acusa de antidemocrático. É assim que os mais pérfidos inimigos da democracia posam de supremos heróis da vida democrática”.

Olavo de Carvalho | Foto: Reprodução redes sociais/Josias Teófilo

Leia também “O processo eleitoral brasileiro e a soberba dos malandros”

9 comentários
  1. Paulo César Carrijo
    Paulo César Carrijo

    A ditadura judiciária é hoje o nosso maior problema. Lula é um mal em si mesmo, mas, passageiro. Entretanto, seu legado Constitucional por indicar ao STF homens vinculados aos ideais socialistas é o que irá contaminar todo o país e as gerações futuras. Esse é o maior crime que as Instituições constituídas deixaram ocorrer de forma covarde, silenciosa e omissa, mesmo ouvindo o grito de 90 milhões de eleitores que não votaram em Lula.

  2. Jose geraldo covre
    Jose geraldo covre

    Nao imaginei que essa quadrilha voltasse ao poder, estamos ferrados.

  3. ALEXANDRE FERREIRA DA SILVA
    ALEXANDRE FERREIRA DA SILVA

    Diagnóstico perfeito! Situação desesperadora para os brasileiros de bem!

  4. JHONATAN SURDINI
    JHONATAN SURDINI

    Só não enxerga quem não quer!

  5. Vicente Lino
    Vicente Lino

    Estamos rigorosamente neste estágio. Os que aviltam e destroem a democracia estão acusando os verdadeiros democratas de ditadores. Fazem isto até com o povo que pede justiça, transparecia. e eleições limpas,

  6. José Oscar Cagliari Hernandes
    José Oscar Cagliari Hernandes

    A análise que Flávio Gordon faz do momento atual é de uma lucidez sem igual. O aparelhamento das instituições pela esquerda se tornou tão avassalador que fica difícil saber como vamos desatar esse nó.

  7. Divino Souto De Paula
    Divino Souto De Paula

    ótima análise Flávio Gordon! e um arremate com menção ao Professor Olavo, aí fica perfeito

  8. Lourenço Bojan
    Lourenço Bojan

    Belo texto Flávio e saudades do Olavo de Carvalho. Poucos o entenderam em seu tempo. Antes tarde que mais tarde.

  9. MARCELO FELIPE STUMPF
    MARCELO FELIPE STUMPF

    Olavo falou tudo em poucas linhas!

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