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Ilustração: Wit Olszewski/Revista Oeste
Edição 163

Receita de ditadura

Baseado em leis europeias, o PL 2630 consegue ser ainda mais autoritário e ameaça a liberdade de expressão

Cristyan Costa
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Criminalizar conteúdo “potencialmente ilegal e a desinformação” nas redes sociais, prazo de até 24 horas para exclusão de “fake news”, punição às big techs que não cumprirem as ordens legais e a autorregulação. Esses são alguns pontos que aparecem no Projeto de Lei (PL) 2630. De autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) e de relatoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), o texto limita ainda a atuação de aplicativos de mensagens instantâneas e obriga as companhias de tecnologia a remunerarem empresas de comunicação por veicularem notícias em sua plataforma.

O “PL da Censura”, como ficou conhecido na internet, surgiu em 2020, mas ganhou força depois de ataques a escolas e do protesto de 8 de janeiro, que, de acordo com os acusadores, teriam ligação com notícias falsas e disseminação de discurso de ódio nas redes sociais. Apoiado pelo governo Lula e pelo Supremo Tribunal Federal, o texto rapidamente ganhou prioridade na Câmara dos Deputados, em virtude da visita do ministro Alexandre de Moraes, e da aprovação de um regime de urgência. O PL, que quase foi votado nesta semana, saiu da pauta, após pressão popular e das big techs e por falta de votos.

projeto da censura
Deputado Orlando Silva, relator do PL da Censura, durante votação de urgência da pauta | Foto Lula Marques/ Agência Brasil
O texto

Entre outros trechos polêmicos, o PL previa criar um órgão fiscalizador. A oposição o batizou de “Ministério da Verdade”. Não havia muitos detalhes sobre como ele funcionaria. O relator tirou esse trecho do dispositivo, na tentativa de conseguir mais votos dos colegas e evitar aumentar a polêmica. Outros pontos interpelados fazem referência a conceitos vagos e que abrem margem para a subjetividade, como “desinformação”, “conteúdo potencialmente ilegal”, “fake news” e “discurso de ódio”. Por isso, o texto recebeu acusações de limitar a liberdade de expressão nas redes sociais e abrir margem para a censura.

Conforme o PL, as big techs terão de se autorregular. Em linhas gerais, as empresas de tecnologia precisarão criar ou expandir departamentos internos de denúncias, contratar mais pessoas, a fim de retirarem do ar com velocidade o conteúdo supostamente malicioso antes de uma punição judicial, além de endurecer a política de uso da plataforma.

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, recebe Alexandre de Moraes, ministro do STF, que levou propostas para serem acrescentadas ao texto da PL da Censura (25/4/2023) | Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

A proposta mira ainda no WhatsApp, no Telegram e no Signal. Acusados de favorecer candidatos com supostos disparos em massa durante as eleições, esses aplicativos precisariam tomar uma série de medidas, como limitar o número de integrantes num grupo de transmissão e a quantidade de mensagens enviadas a seus membros. O relator também definiu que os apps terão de adotar “algum mecanismo” para que o usuário seja consultado antes de ser incluído em grupos de mensagens, listas de transmissão e “canais de difusão de informações abertos ao público” — isso já acontece em alguns aplicativos, como o WhatsApp e o Telegram, citados no PL. Todas essas empresas precisarão ter um representante legal no país.

A Flórida aprovou uma “regulamentação de redes inversa”. A iniciativa pune big techs que censurarem comentários que incomodem adeptos do politicamente correto

Outro ponto que chamou a atenção no PL tem a ver com empresas de comunicação. Se o texto for aprovado futuramente, as big techs terão de pagar pelas notícias que são divulgadas em seu ciberespaço, como o Google News, um agregador de matérias jornalísticas que as recomenda aos usuários. A Rede Globo, por exemplo, conseguiria R$ 230 milhões por ano, segundo levantamento feito pelo site especializado Notícias da TV. Ainda não se sabe quanto outros grupos de comunicação receberiam. O PL teve o apoio veemente de associações de jornalistas, como a Abert (de TVs abertas, que representa principalmente a Globo) e a ANJ, porta-voz de jornais tradicionais, como O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo. Essas associações garantem que o PL não limitará a liberdade de expressão nem promoverá a censura.

projeto da censura - youtube
Foto: Reprodução/Freepik

“São normas com forte potencial para cercearem a liberdade de expressão, uma vez que, a depender do contexto em que forem analisadas, poderão ser instrumentos de protecionismo ou de perseguição aos grupos sociais, econômicos e, principalmente, políticos”, constatou a jurista Vera Chemim. “A finalidade em si é saudável, mas o risco de ameaça à liberdade de expressão, que é um dos pilares de um Estado Democrático, é real. A lei pode ser utilizada para objetivos partidários e se transformar em uma mordaça.”

Raízes europeias

O projeto brasileiro se inspirou em duas leis, a de Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês), da União Europeia (UE), aprovada no ano passado e que passará a vigorar nos países do bloco até 2024, e na alemã NetzDG. O PL extraiu da DSA a ideia de enfrentar notícias falsas e incorporou os termos subjetivos “desinformação” e “fake news”. Mas os principais pontos vieram da NetzDG, iniciativa que partiu do governo Angela Merkel, em 2017, e a mais restritiva em um país democrático. O PL se parece com esse dispositivo em uma série de pontos, como na ambiguidade, no prazo para um conteúdo ser excluído das redes e na autorregulação das big techs. Apesar de semelhanças, a NetzDG e a DSA não fecharam o cerco sobre apps de mensagens instantâneas nem obrigou as companhias de tecnologia a pagarem veículos de comunicação por notícias.

Tampouco considerou-se criar um “Ministério da Verdade” para fiscalizar as pessoas nas redes sociais. Portanto, o PL consegue ser mais amplo que as leis originais que o inspiraram. Até mesmo a postura de associações de empresas de mídia tradicional foi diferente naquele país. Quando a NetzDG começou a ser discutida, alguns grupos se manifestaram contrariamente. A organização Repórteres Sem Fronteira foi uma das que criticaram a “interferência estatal”, o cerceamento à liberdade de expressão e o empoderamento das big techs, que passaram a dizer o que é mentira ou não. Esses representantes denunciaram ainda a criação de um “Estado policialesco”, visto que qualquer coisa nas redes pode, agora, ser alvo de denúncia ou acabar em um tribunal.

Na UE, por enquanto, apenas a França é o país com uma regulamentação branda das big techs. Neste ano, a Assembleia Nacional aprovou um projeto de lei que fixa a “maioridade digital”. Apenas pessoas maiores de 15 anos podem ter contas em uma rede social. As big techs deverão verificar a idade dos usuários, por meio de procedimentos autorizados pelo governo francês. Esses mecanismos envolvem a participação de pais ou responsáveis no ato da criação de um perfil, como o envio de documentos pessoais.

O PL 2630 também é mais rígido que a regulação das redes sociais fora da UE, como na Austrália. Em 2021, o país estabeleceu o mecanismo, mas direcionado à remuneração de veículos de comunicação, e não à moderação de conteúdo nas redes e nos apps de mensagens. Com a medida, as empresas de mídia com sede no país conseguiram US$ 200 milhões (pouco mais de R$ 1 bilhão) por ano. Há críticas, contudo, de que isso beneficiou apenas as grandes corporações.

A iniciativa brasileira só perde para regimes ditatoriais. Na Venezuela, embora os chavistas tenham ameaçado passar um projeto de lei que aumenta o poder do atual órgão regulador para monitorar também as redes, a internet, hoje, já é limitada. Algumas redes sociais sofrem problemas de lentidão e, às vezes, não funcionam. Na China, até o acesso a sites estrangeiros é restrito e monitorado. Uma das normas do governo é a criação de versões “nacionais”, sob controle estatal, como a rede social Weibo (espécie de Twitter).

Os Estados Unidos são o exemplo de liberdade quando o assunto é rede social. Primeiramente, não há uma lei federal que as regulamente. Cada empresa de tecnologia é responsável por suas políticas de privacidade e uso. Os Estados definem as próprias regras, porém, são poucos os que aprovaram dispositivos dessa natureza. Em 2021, a Flórida aprovou uma “regulamentação de redes inversa”. A iniciativa pune big techs que censurarem comentários que incomodem adeptos do politicamente correto, visto que conservadores estavam sendo atacados pelas plataformas. “Se os censores das big techs aplicarem regras consistentemente para discriminar em favor da ideologia dominante do Vale do Silício, eles agora serão responsabilizados”, disse o governador Ron DeSantis.

Liberdade

O jurista Dircêo Torrecillas Ramos, membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, afirma que o PL é desnecessário, pois já existem leis que punem supostas fake news. “A Constituição já prevê punições em casos de calúnia, injúria e difamação”, constatou. “É o que basta.” Vera Chemim acrescenta que o PL repete elementos do Marco Civil da Internet, como o artigo 19, que explica como se dará a retirada de conteúdos supostamente ilícitos das redes, além da responsabilização das redes sociais.

Franklin Melo, especialista em tecnologia da informação, vê o PL com preocupação. “Nem lá fora é tão abrangente assim”, observou. Para ele, na ausência de um órgão regulador, caberia ao próprio governo federal fazer esse papel, seja por meio de agências, como a Anatel, a Anac, seja por um ministério. “A internet e as redes sociais têm de ser livres. Qualquer tentativa de cercear isso é censura.”

Leia também “Estado policial”

10 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    O interesse é voltar a velha mídia, ficar meia duzia reproduzindo tudo que o governo quer, mediante fartos gastos com publicidade.

  2. Jose maria soares
    Jose maria soares

    Daqui a pouco donos de bares e restaurantes deverão ter que gravarem conversas em seus recintos, putz

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Quem controla a opinião controle as mentes, diz o título de um livro de Michael Knowles.
    Remunerar meios de comunicação? Esses “meios” não geram notícias, apenas as propagam com sua roupagem conforme suas conveniências.
    O Brasil funcionou assim durante décadas.

  4. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Todos têm o direito de falar o que pensam e se for ofensivo que respondam criminalmente ao ofendido, conforme o nosso existente código penal

  5. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Parabéns, Cristyan, por clarear o que é escuro, obscuro, trevoso e maligno.

  6. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    As consequências desse projeto de lei se acabar sendo aprovado é a lei da mordaça em seu estado mais puro e transparente .A autocensura já se faz presente,visível nas redes sociais.Pessoas com medo de irem para a Papuda e Colmeia, se expressarem o que realmente pensam desse governo.Eh assim que um regime de ditadura comunista é instalado. Estamos vivendo nessa realidade.

  7. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Alexandre o grande, o rei da Macedônia brasileira

  8. MNJM
    MNJM

    Parabéns Cristhian. PL da Censura o ideal é a lata do lixo. Governo socialista e um STF ativista político q o intuito é perseguição como já desempenha há muito tempo. Querem agora que vire Lei. O povo não quer censura, ainda são hipócritas dizendo q é para proteger as crianças. Cretinos.

  9. Manfred Trennepohl
    Manfred Trennepohl

    Parabéns, Cristhian Costa por esse belo trabalho. Traz, de forma simples e fácil de entender, o que nos espera desse mostrengo que o desgoverno Lula, o autoritário STF e a imprensa tradicional nos querem empurrar guela a baixo. Obrigado.

    1. Cristyan Costa

      Obrigado, caro Manfred. Abraços

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