Alguns políticos demonstram virtude em suas ações, em seus projetos e até em sua vida, e por isso devem ser aplaudidos e apoiados. Mas jamais esperem que a virtude seja a regra na política. A razão é simples: a política é a busca pelo poder, e o poder corrompe.
Em alguns casos, corrompe totalmente.
As virtudes redentoras de uma nação não estão na política. A redenção de uma nação está no homem comum, na sua cultura e na moral que ele transmite no dia a dia, em seu trabalho e na sua família.
A política será sempre, no máximo, um pálido reflexo disso.
Há um evento que se repete na história da humanidade: um homem honesto entra para a política, descobre um esquema de corrupção e o denuncia. Suas denúncias o fazem cair em desgraça com os poderosos. Ele é preso, seus bens são confiscados, e ele é processado, torturado e executado.
Foi o que aconteceu com Anício Mânlio Severino Boécio, senador, cônsul, filósofo e historiador que viveu em Roma entre o final da Antiguidade e o começo da Idade Média.
O Império Romano estava dividido em dois. Enquanto o Império do Oriente era comandado de Constantinopla pelo imperador Justiniano, o Império Romano do Ocidente havia caído diante das invasões bárbaras, e a Itália era dominada pelos godos. Boécio servia como conselheiro na corte do rei Teodorico, o Grande.
Nascido em Roma no ano 480, membro da linhagem nobre dos Anísios, Boécio entrou ainda jovem na vida pública; com 25 anos já era senador e aos 33 se tornara cônsul.
Além de estudar filosofia e religião, Boécio escreveu manuais de aritmética, de geometria, de música e de astronomia, sempre com a intenção de preservar e transmitir às novas gerações a cultura greco-romana.
Fluente em latim e grego, habilidades que já eram raras no Ocidente, Boécio traduziu escritos de Platão e Aristóteles. Foi o livro A República, de Platão, que inspirou Boécio a deixar suas atividades acadêmicas e entrar na política.
O rei Teodorico o estimava muito. Apesar de ter excelente desempenho como alto funcionário da corte, Boécio tornou-se impopular entre seus pares por denunciar a corrupção.
A gota d’água foi a defesa judicial que Boécio fez de um amigo, o senador Albino. Por causa disso Boécio foi acusado de conspiração contra o rei e preso. A acusação era falsa. Na realidade, Teodorico suspeitava que Boécio fosse simpatizante de seu rival, o imperador Justiniano.
Processado e condenado à morte, Boécio foi executado no dia 23 de outubro de 524. Ele tinha apenas 44 anos. Sua obra mais conhecida é A Consolação da Filosofia, que ele escreveu no cárcere, entre sessões de tortura.
No livro, escrito em busca de um sentido para sua injusta prisão, Boécio explica por que foi preso:
“A fortuna do cônsul Paulino estava sendo devorada pelos projetos e intrigas dos cães do Capitólio, e fui eu quem livrou o cônsul de tal matilha.
Para salvar outro cônsul, Albino, quando sobre ele pendia uma condenação imposta por uma acusação sem provas, não hesitei em afrontar a ira do delator Cipriano.
‘Não irritei bastante os poderosos? […]
E queres saber o crime que me imputaram? Acusaram-me de querer salvar o Senado.
Queres saber como? Um delator pretendia declarar o Senado réu de um crime de lesa-majestade e eu o impedi. Eis o crime de que me acusaram.’”
Se essa narrativa parece assustadoramente atual, isso é apenas um lembrete de que o poder é exercido, nos dias de hoje, da mesma forma que era exercido no início da história. Uma das estratégias preferidas pelos tiranos para destruir inimigos, reais ou imaginários, é condená-los por conspiração, mesmo quando a acusação não tem qualquer fundamento.
Sobre isso diz Boécio:
“Nessa circunstância, que liberdade eu poderia esperar, caso existisse alguma? Eu poderia responder com as palavras de Cânio, que, quando foi acusado por Gaio César, filho de Germânico, de ter urdido uma conspiração contra ele, limitou-se a responder: ‘Se eu realmente soubesse o que se passava, tu jamais chegarias a sabê-lo’.”
A situação de Boécio é a mesma vivida por milhões de homens e mulheres comuns, pessoas de bem, honestas e inocentes, cujas vidas foram destruídas por todas as revoluções, expurgos e massacres da história. Das matanças da Revolução Francesa aos “julgamentos” encenados — os show trials — do grande líder dos povos Stalin, ecoa o lamento de Boécio:
“Quanto a mim, vi-me privado dos meus bens, destituído de todos os meus cargos e com a minha reputação manchada: tudo por ter feito o bem.
Porém, vê o resultado da minha inocência: o prêmio pela minha virtude foi o castigo de um crime imaginário.”
A história de Boécio lembra o preço a ser pago por todos os que praticam política movidos por ideais ou convicções, fazendo o que é certo e denunciando o que é errado.
A injustiça e o absurdo de sua condenação continuam ecoando pelos séculos, e suas palavras são o lamento de todos que foram atacados, difamados, empobrecidos e massacrados pelos poderosos:
“Se eu tivesse sido acusado de querer incendiar os templos, de assassinar os sacerdotes […] ou de tramar a morte de todos os homens honestos, a sentença só seria cumprida se eu confessasse os crimes ou se existissem provas irrefutáveis contra mim; mas agora decidem o meu destino a mais de quinhentas milhas da minha presença, sem que eu possa falar qualquer coisa ou me defender.”
O inocente é condenado por um crime imaginário, por representar um obstáculo à corrupção e ao arbítrio, enquanto os verdadeiros criminosos seguem usufruindo do produto dos seus crimes
O resultado de um julgamento político é sempre conhecido antes mesmo que o tribunal comece seus trabalhos, como o escritor inglês Lewis Carroll explicou neste trecho do seu clássico Alice no País das Maravilhas:
“‘Deixe que o júri termine o julgamento’, disse o rei, pela vigésima vez naquele dia. ‘Não não!’, disse a rainha. ‘Sentença primeiro — julgamento depois.’”
Para aqueles que, em pleno século 21, são confrontados pelo domínio do erro e da injustiça, sem enxergar qualquer alívio, vale rever as palavras escritas por Boécio, na solidão de sua cela, à espera da morte certa, há 1,5 mil anos:
“Já antevejo os criminosos transbordando de júbilo e de alegria; os homens mais monstruosos preparando novas intrigas; as pessoas honestas atemorizadas pela possibilidade de sofrerem uma desgraça parecida com a minha.”
O inocente é condenado por um crime imaginário, por representar um obstáculo à corrupção e ao arbítrio, enquanto os verdadeiros criminosos seguem usufruindo do produto dos seus crimes. Poderia ser o noticiário de ontem; mas foi a história verdadeira de um homem que viveu 15 séculos no passado:
“Vejo ainda outros criminosos sendo instigados a perpetrar novos crimes devido à impunidade e às recompensas recebidas, enquanto os inocentes se veem privados não apenas da sua segurança, mas até mesmo da possibilidade de se defender.”
Leia também “O país da chuva”
Belo e oportuno artigo. De fato, a História se repete, infelizmente.
Diria que um dos melhores textos lidos por aqui.
Os criminosos não aprendem com a história. Os inocentes também não. No campo do conhecimento técnico ,científico, o ser humano é pródigo. No campo moral é indigente. Referência primorosa do autor.
Inacreditável a atualidade dessa história! Sempre acreditei que o que realmente põe o caráter de alguém à prova é o exercício do poder.
Brilhante texto, parabéns!
Motta, você nos presenteou com uma aula de história. E como diz os próprios historiadores, ela sempre se repete.
A comparação de Boécio com os “criminosos” apontados nos processos do Supremo Ministro Alexandrus I, o Calvo, principalmente os mais de 1.000 cidadãos que pacificamente protestavam contra uma eleição que muita gente além dos próprios manifestantes não concorda.
Foram todos colocados na mesma régua, manifestantes e depredadores, sendo a manifestação do pensamento e palavras perfeitamente legal dentro dos parâmetros da estraçalhada Constituição Federal, enquanto a depredação de patrimônio público ou privado é crime.
Descondenar uma pessoa condenada em todas as instâncias para torna-la elegível ao mais importante cargo de uma nação, é algo que realmente os honestos não conseguem assimilar.
Concordo plenamente com a sua análise! A única coisa que podemos fazer é irmos as ruas exigir a revogação destas condenações e soltura destas vítimas de uma corte que, sabemos, não tem competência para fazer o que está Fazendo e, se aceitarmos inertes, é aprovar injustiças, dominação, autoritarismo e escravidão de toda uma Nação. Dias 15 de novembro é urgente a presença em massa nas ruas pela nossa total liberdade em todos os sentidos!
Grande mestre, Mota!
Você trouxe a luz um texto extremamente antigo com tema que nos cabe pragmaticamente.
Fica claro que o caminho da mudança não é pelas mãos de homens corrompidos pelo desejo do PODER.
Cada um terá que evoluir por si sem esperar do ESTADO, certamente eles esperam os dependentes para estarem a cada dia mais fortalecidos.
Somente um povo que tem virtudes morais fortalecidas pode exigir dirigentes moralmente fortes.
Começo acreditar mais e mais que a vida sempre segue seu fluxo e responde a cada povo conforme seu comportamento.
Poie é Motta, aí está o ‘caminho’ pelo qual anda o Brasil sem saber onde vai dar… os lúcidos e honestos sabem que no fim dele está o inferno!
Brilhante texto, parabéns!
EXECELENTE ANALISE !!!
NO ENTANTO HOJE NO PAIS O PODER NÃO EMANA DO POVO – QUE ESCOLHEU SEUS PARES PARA REPRESENTA-LOS E FAZEREM LEIS. HOJE QUE FAZ LEI E DETEM O PODER É UMA CORTE QUE NÃO FOI VOTADA PELO POVO !!
Parabéns Roberto Motta. O seu texto expõe de forma crua, a desolação da realidade que vivemos onde o medo vai golpeando e vencendo a esperança de uma forma que parece inexorável.
Maravilhoso texto!
Texto inspirador, caro Roberto Motta.
Inspirador e paradoxalmente desolador.
Qualquer semelhança com os dias atuais, é claro, não é mera coincidência.
caramba , não podia ser mais atual!
triste mundo, triste Brasil
Belo Artigo. Parabéns.
Motta, o que restou de bom na Jovem Pan, que espero um dia volte ao jornalismo corajoso e transmitindo a verdade dos fatos como o faz a Revista Oeste e a Gazeta do Povo.
Brilhante.
Texto atual e desanimador. A nós, pessoas que se esforçam em tentar fazer as coisas certas, resta apenas acreditar na Justiça Divina, a qual será exercida apenas depois da transcendência desta vida.
O Homem é um Ser Desumano irremediável, imutável ao longo dos milênios.
Mota tu tá abrindo a cabeça dos leitores, tem gente que pensa que ser humano é bonzinho, claro que tem que existe mas na política é raro. Nós estamos desmascarando-os através da Internet
Quanta inteligência, grande Motta! Aelhor coisa que fiz foi assinar à Oeste.
Excelente Motta! Tenho esperanca, pois vejo pessoas que continuam querendo fazer o bem! Voce mesmo esteve na fundacao do Novo e descubriu que o proposito do fundador era apenas Poder! Porem, continua fazendo o bem! Te admiro.
Excelente e atual. A história se repete.
Simplesmente espetacular.
Aprendi muito com sua apresentação. Grato
Qualquer semelhança, não é mera coincidência!!
Será que esses “iluministros” leram e aproveitaram os ensinamentos de Boecio? Não, não eles leram Lenin e estão aplicando seus ensinamentos…infelizmente. Obrigado Roberto Motta.
Excelente artigo.
Roberto Motta é gigante. Obrigado por mais esse texto esplêndido.
O poder pode tornar uma pessoa capaz de transformar o mundo desde que seja uma pessoa sábia e honesta. Não é o caso da política no Brasil, muitos que estão no poder são corruptos e desonestos.
Grande verdade. Atualmente todos estamos sujeitos à condenação por crimes imaginários. Lança-se tudo na conta dos atos “antidemocráticos”. Até quando?
A história se repete. Na política é ínfimo o espaço para pessoas honestas.
muito boa recuperação histórica, mas tenho dificuldades com essa afirmação de que “o poder corrompe”. O carácter de um homem, na minha opinião, vem lá do DNA, do berço. A desonestidade aflora com a oportunidade, mas a pessoa já é desonesta, nao se torna desonesta por causa da oportunidade.