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Edição 34

A nova Torre de Babel

Ao contrário do mito bíblico, a torre atual está sendo edificada com base na confusão proposital das palavras por indivíduos desprovidos de inteligência e coragem

Bruno Garschagen
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O mito bíblico para a profusão de idiomas existentes no mundo parte do castigo de Deus sobre homens ambiciosos que tentaram construir uma cidade e uma torre que tocasse os céus. De uma hora para outra, eles, que antes falavam a mesma língua, não mais se entendiam e foram obrigados a se dispersar pelo mundo. A cidade recebeu o nome de Babel.

A mesma história serviu de base para várias outras, em lugares e contextos muito distintos, mas que preservaram a mesma moral, o mesmo ensinamento: o de que o mal se alastra no mundo. No ensaio “Torre de Babel” (1983), publicado no livro Sobre a História e Outros Ensaios, o filósofo Michael Oakeshott descreve algumas versões do mito. Numa delas, “o primeiro valente da terra”, Nemrod, bisneto de Noé, decidiu construir a torre como um projeto grandioso para “vingar os ancestrais e ficar a salvo da hostilidade de Deus e da natureza”.

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Inseguro e com mania de perseguição, mas de uma valentia sedutora, Nemrod atraiu homens desprovidos de inteligência e coragem. Diante da proposta da edificação da torre, seus seguidores só aceitaram, após certa hesitação, porque já tinham ido longe demais e não era mais possível recuar. Todos eles tornaram-se escravos de um ideal.

Quando Deus os puniu confundindo as línguas, a incompreensão acerca do que o outro falava provocou um crescendo de animosidade, exasperação, frustração: os indivíduos passaram a não mais cooperar nem tolerar o outro. Segundo Oakeshott, a Torre de Babel, que foi chamada de Torre da Liberdade, converteu-se na Torre da Confusão. O empreendimento foi interrompido não por mais um dilúvio das águas, mas por um dilúvio de palavras.

Hoje, vivemos numa época de muitos mais idiomas e sob uma confusão ainda maior do que a descrita no mito bíblico. Mesmo indivíduos que falam o mesmo idioma não se entendem porque, ao contrário de Babel, rejeitam qualquer possibilidade de compreensão mútua quando veem no outro apenas um adversário ou inimigo político.

O colégio carioca está ideologizando o uso da língua

O fenômeno é internacional e também tem provocado animosidade, exasperação, frustração. Como mostrei no artigo Ideias, intuição moral e compromisso ideológico”, a partir de estudos de comportamento político e psicologia moral, a causa da incompreensão entre indivíduos que falam o mesmo idioma não é política, mas psicológica.

Para aumentar a confusão, determinados grupos ideológicos tentam corromper o idioma nativo e assim estabelecer uma língua degenerada que permita uma mudança cultural profunda. Como criadores do dialeto, pretendem dominar a linguagem, os comportamentos, os hábitos e, claro, a política. Quando pessoas influentes, nas redes sociais e na imprensa, começam a usá-lo, quando escolas começam a incentivá-lo, dão a equivocada impressão de que se trata de algo natural e legítimo, feito apenas para “o enfrentamento do machismo e do sexismo no discurso quanto à inclusão de pessoas não identificadas com o sistema binário de gênero”, como na recente comunicação do Colégio Franco-Brasileiro, do Rio de Janeiro. Não é nada disso. Trata-se de estupidez ideológica.

Embora o colégio carioca afirme na nota que defende a neutralização gramatical em relação ao “gênero”, está, na verdade, adotando uma posição política — e ideologizando o uso da língua. Essa decisão, se adotada por muitos colégios mundo afora, poderá terminar na destruição dos idiomas, que serão alterados de tempos em tempos, ao sabor dos ventos políticos, para sempre estar de acordo com os desvarios do momento.

Do jeito que a situação involui, não será surpresa se arremedos de palavras como “alunxs” ou “alunes” forem cancelados e sejam propostas onomatopeias para não identificar os sexos (gênero, para mim, só musical). Presenciaremos, então, uma parcela da humanidade comunicando-se como os homens das cavernas: por meio de gestos, gritos e grunhidos. Comparativamente, a confusão da Torre de Babel poderá ser considerada como o suprassumo da convivência civilizada.

Num ensaio anterior também chamado “Torre de Babel” (1948), que foi publicado primeiro no Cambridge Journal e, depois, no livro Rationalism in Politics and Other Essays, Oakeshott analisa o mito bíblico como a representação de um projeto que fascina homens de todas as épocas em razão das circunstâncias da vida humana e cujo fracasso não impede que continue a ser sedutor. A politização da vida, da qual faz parte a ideologização do idioma, é exemplo desse ambicioso projeto de perfeição da sociedade que importa mais por estar em curso do que por atingir o seu propósito.

Ao contrário do mito bíblico, a atual Torre de Babel está sendo edificada com base na confusão proposital das palavras por indivíduos desprovidos de inteligência e coragem. É a forma mais eficiente de estabelecer desordem social e controlar os indivíduos por meio do caos. Se as pessoas não se entendem e não cooperam, não estabelecem os vínculos necessários para construir laços, cultura, tradição, e assim ficam vulneráveis a projetos autoritários de poder político.

Exige coragem, fortaleza, prudência, justiça, temperança, mas ainda é possível preservar o idioma, a cultura, a tradição, a história, a liberdade e estabelecer vínculos com outros indivíduos que possam construir uma trincheira civilizatória contra os construtores da nova Torre de Babel.


Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).

 

14 comentários
  1. Jair Joaquim de Souza
    Jair Joaquim de Souza

    Olha… cansado desta turma que usa sua ideologia torta a esquerda, para ditar e subverter a ordem das coisas em proveito próprio.
    Cansado da turma do quanto pior melhor, do grito como um mantra … “Mariele? Presente! que insistem em ditar “regras de moral” e nada de bons costumes. Ahhhh vão se catar !!!! Excelente narrativa Bruno.

  2. Marcelly Dias
    Marcelly Dias

    Parabéns ao autor!

  3. Ana Lúcia Kazan
    Ana Lúcia Kazan

    Muito bom, Bruno! Muito obrigada!

  4. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Espero que essa agressão ao nosso belo idioma, protagonizada por este colégio carioca seja imediatamente defenestrada juntamente com esse lixo travestido de colégio.

  5. Rosangela Deamo Medeiro Batista
    Rosangela Deamo Medeiro Batista

    Concordo plenamante. E lamento muito!
    Boa tarde a ……….. todxs!?!?

  6. Alberto Santa Cruz Coimbra
    Alberto Santa Cruz Coimbra

    “estabelecer vínculos com outros indivíduos que possam construir uma trincheira civilizatória contra os construtores da nova Torre de Babel.”. Fecho de ouro.

  7. Fabio R
    Fabio R

    Saco na Lua desta bosta toda.
    Muito mimimimimi.
    Excelente artigo!

  8. Raquel Utz
    Raquel Utz

    Excelente texto!
    Parabéns.

  9. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Esqueci de dizer algo que escrevi tempos atrás: Foi excluída da Bíblia algumas palavras naquele episódio da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. O Anjo, na verdade disse: “Ide, multiplicai-vos e dividi-vos…”

  10. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Para a ciência seria importante que a estatística do Covid19 informasse se a pessoa é do sexo masculino, feminino, gay, trans, etc. É que existem medicamentos específicos para determinadas doenças e “intenções”. Como na morte ainda se utiliza o histórico M ou F, seria bom também colocar outro gênero. Muitas pessoas tomam medicamentos para ajudar na troca de sexo, hormônios e até alimentação diferenciada. Assim, quem sabe, algum desses medicamentos poderia ajudar na cura e imunização dessas pessoas que estão livre da Covid19. E acho que as escolas que adotarem posturas “do gênero” devem ensinar as crianças desde cedo para que elas peçam, inclusive na Justiça de que quando morrerem, no atestado de óbito, conste seu sexo alternativo. Parece preconceito, mas não é. A ciência quer saber os mínimos detalhes para chegar a algumas conclusões que ajudem o combate a qualquer doença. Compreendo muito bem a situação de pessoas que assumem condições de não M nem F, sua aceitação na sociedade sem rancores ou mau olhados, mas as crianças devem ficar fora desta polêmica.

  11. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Muito bom, como sempre!

  12. Antonia Marilda Ribeiro Alborgheti
    Antonia Marilda Ribeiro Alborgheti

    muito bom texto, essas propostas são ridículas ou, segundo eles, seriam ridícules, é insano que numa sociedade com mais de 7 bi de indivíduos queira mudar a gramática por causa de 1%, ou menos, da população.

  13. Márcia Pinheiro
    Márcia Pinheiro

    Brilhante! ?

  14. Ricardo José Ramos de Carvalho
    Ricardo José Ramos de Carvalho

    Artigo espetacular

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