Sentado numa mesa do bar em frente da Faculdade Nacional de Direito, com vista para o Campo de Santana, eu festejava no meio da tarde de 12 de agosto de 1969 o reencontro com a namorada. Sônia saíra de circulação havia um mês, ao saber que tivera decretada a prisão preventiva. Naquela manhã, ela me avisara que a ordem de prisão fora revogada e que apareceria no lugar de sempre na hora do almoço. Nem desconfiamos que aquilo era um blefe, forjado por policiais encarregados da captura da primeira-secretária do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, o CACO Livre. Também eleito terceiro-vice-presidente no ano anterior, eu acabara virando presidente interino porque também o primeiro-vice e o segundo-vice entraram na mira dos defensores da lei e da ordem.
Passeamos algum tempo pelos corredores do prédio que alojara o Senado do Império, conversando sobre o que fazer com o centro acadêmico despovoado pelas circunstâncias. Interessado em tratar de urgências mais excitantes, sugeri que voltássemos ao bar. Eu tinha 19 anos, um copo de chope na mão e, com o fim do sumiço de Sônia, muitas ideias lascivas na cabeça. Já saboreava mentalmente outra noite de pecados quando a mão do destino tocou meu ombro esquerdo para avisar que o castigo chegara primeiro: “Polícia”, resumiu um dos quatro homens repentinamente hasteados em torno da mesa. Nem precisava dizer, pensei ao contemplar os paletós compridos demais e apertados demais. Os sherloques brasileiros sempre se acham mais altos e menos gordos do que efetivamente são. Assim, o ofício que exercem é escancarado por botões explodindo nos subúrbios da barriga e pelo sopé do paletó roçando os joelhos.
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Só bem mais tarde eu saberia que eles haviam baixado na faculdade em busca da secretária do CACO. Entenderam que não seria má ideia levar-me como brinde depois de descobrirem que o moço ao lado da perigosa procurada também era um comunista infiltrado no movimento estudantil. Separados, embarcamos em fuscas disfarçados de táxis que estacionaram na sede da Polícia Militar na Rua Frei Caneca, no antigo centro do Rio. Não houve a sonhada noite de luxúria: o que houve foi um interrogatório de oito horas, ao fim das quais fomos transferidos para as dependências da Aeronáutica no Aeroporto Santos Dumont. Na traseira do camburão, Sônia sussurrou-me o lembrete: sempre que perguntassem quem era meu chefe na célula do partido, deveria recitar o nome de algum diretor já engaiolado do centro acadêmico.
Em 14 de agosto, depois de mais dois interrogatórios de oito horas, fomos instalados em pequenas salas de diferentes alas do prédio da Aeronáutica na Base Aérea do Galeão. Fui solto no começo da noite de 16 de agosto (depois de mais dois interrogatórios de oito horas cada um). Sônia ficaria presa 17 dias. “Vou cair na clandestinidade”, contou-me num encontro noturno no Outeiro da Glória. Novamente capturada meses mais tarde, integrou o grupo de militantes libertados por exigência dos sequestradores do embaixador da Alemanha, exilou-se até a decretação da anistia e hoje vive no Rio. Nunca mais voltei a vê-la.
O desertor Carlos Lamarca, ex-capitão, foi promovido a general depois de morto
Essa história vale ou não vale uma Bolsa Ditadura? Se muita gente que só ficou presa em congestionamento de trânsito virou bolsista, quatro dias de cadeia no inverno de 1969 merecem uma obesa reparação em dinheiro vivo e uma mesada perpétua calculada com base no que eu poderia ter sido e não fui. Sempre penso nisso ao recordar meus derradeiros minutos no cárcere. Antes de ordenar-me que desse o fora com a mesma roupa com que ali chegara, o major que conduziu o último interrogatório no Galeão releu sem pressa as anotações na minha ficha, empunhou um gordo lápis vermelho e enfeitou a primeira página com a palavra em letras graúdas: COMUNISTA. Procure esse papel, costuma soprar meu lado escuro sempre que ouve o apito do trem pagador pilotado pela Comissão de Anistia. Aquela anotação pode garantir-me a dianteira na fila dos pedintes.
Sim, não fui submetido a sessões de tortura. Mas fiquei horas a fio de cócoras, mãos algemadas sob as pernas, ouvindo perguntas tediosas e insinuações redundantes feito letra de samba-enredo. É verdade que meio mundo viveu experiências parecidas. É verdade que nove em dez integrantes do movimento estudantil conheceram involuntariamente o silêncio imposto a presos incomunicáveis, o cheiro de animal colado ao corpo por muitas horas sem banho, a sensação de impotência absoluta, a vida suspensa no ar. Que sejam todos premiados. Os contribuintes nem vão notar que mais R$ 1 bilhão saiu pelo ralo. Nenhuma despesa é desperdício se destinada a garantir aos sócios do Clube dos Heróis da Resistência o direito a indenizações milionárias, mensalidades de bom tamanho, empregos federais e outras condecorações em dinheiro. Como ensinou Millôr Fernandes, o que parecia ideologia era investimento.
Minha mãe morreu convencida de que eu teria ido longe na vida se escapasse daquele agosto aziago. O diretor da faculdade, ao saber de tudo, avisou em dezembro que me expulsaria se não tratasse já no dia seguinte da transferência para outras paragens. Só o Mackenzie me engoliu. Não engoli o Mackenzie daquele tempo e virei jornalista. Está claro, portanto, que não pendurei na parede o diploma de bacharel em Direito porque a ditadura me transformou em perseguido político. Só por isso não fui advogado, juiz, desembargador, ministro de tribunais superiores e dono de uma toga do Supremo Tribunal Federal. Muita pretensão? Não é: até Dias Toffoli chegou lá. Não é pedir demais querer ser aposentado com o salário de ministro do STF. O desertor Carlos Lamarca, ex-capitão, foi promovido a general depois de morto e garantiu uma velhice tranquila à mulher que abandonou.
Argumentos tenho de sobra. Só estão faltando duas coisas. A primeira é conseguir um advogado esperto, que justifique a comissão de 20%. A segunda é perder a vergonha.
Leia também “Um assassino premiado com a Bolsa Ditadura”
Ahhh Augusto, se todos comunistas fossem como você!
Mais uma vez excelente artigo !
Delícia de artigo Augusto! Pena que é muito verdadeiro.
Não, Augusto. Deixe essa galera da milícia de toga para lá.
Pena que não tenho idade para pegar essa boquinha de milhões que tantos vagabundos conseguiram. Sera que viver na ditadura atual me garante alguns trocados?
Admiração sempre
Ler Augusto Nunes é simplesmente “impagável”! Sensacional !!!
Melhor assim Augusto, se tivesse sido ministro (minúscula mesmo), teria perdido a vergonha. Meus parabéns!
Parabéns, Augusto!
Excelente mais uma vez.Um “gran finale”-com Millor e sua frase-o que parecia ideologia era investimento e o argumento fatal-se até Dias Toffoli chegou lá.Olha um livro das crônicas da OESTE.
O que mais me incomoda é como fomos cair neste grande engodo (canto da sereia) do movimento da esquerda. Sempre nos achamos mais inteligentes que os outros, mas acabamos sendo mais dos mesmo. Que a nova juventude seduzida por esses cantos, veja esses exemplos, deixe sempre a hipocrisia de lado, e aceite que pode estar errada. Só lembrando que uma pessoa mal intencionada, num país Germânico que realmente tinha uma população de maioria esclarecida ou mais civilizada, acabou convencendo e dominando esta população e obrigando a todos a cometerem os mais absurdos atos desumanos e genocidas da humanidade. Somos falhos. E podemos ser facilmente dominados. Vigiem-se. E preguem sempre a liberdade.
Augusto, você é DEMAIS!!! Parabéns!!
Sugiro aqui uma emenda na constituição :
Cidadãos comunistas de todas as linhas , em caso de atitudes ilegais , recebam o mesmo tratamento dispensando aos cidadãos dissidentes , nos países que praticam esse regime
( China, Venezuela, Cuba,etc) . Assim estaríamos mais perto da verdade e já praticando em parte , algumas dessas maravilhas do Comunismos!
Fica a Sugestão
Sr Augusto , estive preso por menos de 24 h em setembro de 1968 , menor de idade mas em cela comum ,na sede da P2 mineira . Tenho direito a uma indenização retroativa do estado?
Se for amigo da Patota da Verdade, sim.
Excelente!
Bravo Augusto! O que não faltam hoje são vergonhosos jornalistas militantes que faturaram com o engajamento.
Parabéns Augusto por não perder a vergonha, continua assim e não pare neste segundo capitulo dessa novela real da BOLSA DITADURA, que poderá em muito ajudar a sociedade a conhecer todas as formas de “rachadinhas”, tão condenadas quando os participantes são da família Bolsonaro.
Evidente que apoio todo combate a quaisquer formas de rachadinhas, mas acho criminoso que existam RACHADINHAS DE ESTIMAÇÃO de autoridades, no “incessante combate a corrupção”.
Penso que nossa ministra Damares conhece o problema, mas não tem tido apoio da própria imprensa para desencadear uma ação no MPF para revisar judicialmente indenizações milionárias sem motivação adequada (fraudes), cancelando-as e penalizando seus beneficiados e quem as concedeu. Afinal, quem paga a conta somos nós, os contribuintes (que pagam impostos).
Vale lembrar que, assistindo entrevista da ministra Damares na Globo News no inicio do governo Bolsonaro, foi comentado o assunto das indenizações a anistiados políticos, com a ministra tecendo criticas àquelas milionárias indenizações e à muitas outras que ainda seguiam sendo solicitadas. Em determinado momento o famoso Merval Pereira possivelmente preocupado, perguntou a ministra se iria REVISAR essas indenizações. Evidente que a ministra se sentiu acuada e respondeu que não, e o acadêmico Merval Pereira aparentemente se conformou.
Então Augusto, continue com essa coragem e honradez e ajude-nos a reestruturar nosso pais pós pandemia, incentivando as necessárias reformas politica, administrativa e morais nos 3 poderes da República.
Forte abraço
Parabéns pela honestidade
Em 1971, fazia o serviço militar no quartel de Itu. Nas noites de guarda, ficavamos apreensivos aguardando um eventual ataque do terrorista Lamarca, que escapara do cerco no Vale do Ribeira, assassinando na fuga o Tenente Mendes, seu ex-irmao de armas. Hoje, cinquenta anos depois, o terrorista assassino é General e tem até um memorial onde tombou na Bahia. O Augusto tem razão. Nesse país do contrário, também sou elegível a bolsa “dentadura”. Falta me porém o cinismo dos que praticam o “morder a pátria” acima de tudo.
Não sabia que Nunes escrevia tão bem assim. Perdemos um ministro mas ganhamos um escritor. Equivoca-se porém qdo fala da comissão de 20%: tem nego aí cobrando 40. Outrossim tem que ser amigo da patota da Começão, o que me leva a crer que seria rejeitado.
Grande Augusto Nunes! Inigualável.
Caro Augusto, meu respeito e admiração por você cresce a cada semana. E pensar que aproximadamente 500 calhordas leem e comentam positivamente as sandíces que Mainardi , Sabino e Moura Brasil escrevem na Crusoé. Coitados!
Brilhante, Augusto !
Parabéns !
Vida Longa
Como sempre. artigo excelente.
Guzzo, Augusto e Fiuza: trio de OURO
da revista Oeste !
O caráter marca os cidadãos de bem! É o que lhe sobra, Augusto Nunes, e falta nesses vagabundos que se dizem “heróis da resistência”, que desacatam as pessoas de bem ao embolsarem nosso dinheiro. Uma hipocrisia digna da esquerdalha podre que ainda contamina esse país.
+ a Ana Paula = quarteto de ouro
É augusto, o senhor tem vergonha na cara! Agora advogado esperto, está cheio!
Sensacional!
Pera ai! Eu vou ter que pagar isso sem saber? Não dá para ser minha testemunha e falar que estava contigo ao invés da Sônia? Mentira por mentira e vergonha por vergonha tanto faz!