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Foto: Montagem com Imagem da Shutterstock
Edição 71

A obliteração da linguagem

Eis a verdade: uma elite 'progressista' tem tentado impor o uso desses termos sem sentido por questões ideológicas e para sinalizar falsa virtude

Rodrigo Constantino
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“O convite para reinauguração do Museu da Língua Portuguesa abre com ‘todes’, termo usado por idiotas e que não existe na língua portuguesa. A maior parte do povo das ciências humanas e letras prova que a estupidez pode ter doutorado. Essa é a estupidez de cátedra.” Esse foi o desabafo do filósofo Luiz Felipe Pondé nas redes sociais contra o uso da tal “linguagem neutra” pelo governo de São Paulo.

Já o secretário de Cultura do governo Doria, Sérgio Sá Leitão, politizou o assunto e aproveitou para atacar os adversários: “A abertura do novo Museu da Língua Portuguesa fez aflorar novamente (e de modo intenso) o autoritarismo, a intolerância e o ódio à cultura que Bolsonaro e seus acólitos cultivam com orgulho. Não aceitam que em São Paulo o governo estadual preze a arte, a ciência e a democracia”. Fica a dúvida: o que “todes” tem a ver com arte, ciência ou democracia?

Eis a verdade: uma elite “progressista” tem tentado impor o uso desses termos sem sentido por questões ideológicas e para sinalizar falsa virtude. O sujeito fala “todes” e já se sente descolado, moderno, inclusivo e tolerante, olhando com desprezo para os “preconceituosos” que insistem no uso correto da língua. Fosse apenas um modismo qualquer, não mereceria maior atenção. O problema é que palavras importam. No começo era o Verbo!

Confúcio teria feito um alerta importante: “Quando as palavras perdem seu significado, as pessoas perdem sua liberdade”. O uso adequado das palavras é essencial para a compreensão da realidade, para nosso próprio raciocínio. Sem isso, entramos em um pântano perigoso. Se o que é dito não tem sentido claro, então o cinismo acaba corroendo tudo.

A linguagem “serve para que os homens se entendam e se aproximem”, escreveu o prêmio Nobel de Literatura peruano, Mario Vargas Llosa. Por isso mesmo, aqueles que desejam inviabilizar o pensamento límpido costumam escolher como principal alvo os conceitos das palavras, ou destruir as próprias palavras. Os manipuladores deturpam a linguagem para lançar uma nuvem de poeira no raciocínio de suas vítimas.

Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. Tudo é todes, daria para acrescentar hoje

Em sua clássica distopia 1984, George Orwell chamou de duplipensar “a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas”. O objetivo das autoridades seria a destruição do pensamento independente: “O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”. Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. Tudo é todes, daria para acrescentar hoje.

Para Orwell, uma linguagem com regras aceitas e mutuamente compreendidas era condição indispensável a uma democracia aberta. Karl Popper era outro que defendia como um dever de todo intelectual “o cultivo de uma linguagem simples e despretensiosa”. E foi além: “Quem não pode falar de modo simples e claro deve calar-se e continuar trabalhando até que possa fazê-lo”. Se todos entendem o que se quer dizer com “todos”, por que raios deveríamos adotar o “todes”, que não quer dizer nada?

Para Isaiah Berlin, a meta da filosofia é sempre “ajudar os homens na compreensão de si mesmos e assim operar na claridade, e não loucamente, no escuro”. Em seu livro A Força das Ideias, Berlin resume: “Uma retórica pretensiosa, uma obscuridade ou imprecisão deliberada ou compulsiva, uma arenga metafísica recheada de alusões irrelevantes ou desorientadoras a teorias científicas ou filosóficas (na melhor das hipóteses) mal compreendidas ou a nomes famosos, é um expediente antigo, mas no presente particularmente predominante, para ocultar a pobreza de pensamento ou a confusão, e às vezes perigosamente próximo da vigarice”.

Seja na escolha deliberada pela prosa confusa, seja no uso de palavras sem sentido nítido, mas com cores ideológicas, esse tipo de ataque à linguagem acaba prejudicando a população e ameaçando a própria liberdade. Não é paranoia. Não foram poucos os que encontraram elo entre uma língua clara, rica e objetiva e o progresso dos povos. Sir Winston Churchill mesmo, o maior estadista do século 20, tem um livro chamado Uma História dos Povos de Língua Inglesa, e foi com suas palavras em seus discursos que ele conseguiu mobilizar os britânicos para a defesa da civilização ocidental. O político britânico Daniel Hannan, nascido no Peru, em seu livro Inventing Freedom, sustenta a tese de que não é coincidência a liberdade individual ter prosperado nos territórios dominados pelo inglês.

“A língua inglesa tem sido tanto um veículo como um garantidor da liberdade ao longo dos séculos”, afirma o autor. A solidez e o pragmatismo do inglês têm bastante ligação com a forma como ele evoluiu. Para Hannan, os que falavam inglês sempre encararam sua língua da mesma forma como enxergam suas instituições políticas e legais, como uma propriedade do povo e não do Estado. Assim como o “common law”, que evoluiu de baixo para cima caso a caso, sem supervisão central, assim aconteceu com a língua inglesa. Está mais para uma formação rochosa do que para um constructo deliberado e imposto por uma elite intelectual.

A língua é viva, mas prática, adapta-se, mas de forma orgânica, natural. Com isso, o inglês sempre atendeu aos objetivos dos povos, facilitando negócios, enriquecendo o debate com uma quantidade incrível de palavras e permitindo a expressão dos pensamentos da maneira mais clara possível. Enquanto a França tinha a Academia Francesa controlando os aspectos linguísticos desde sua fundação pelo cardeal Richelieu, em 1635, e a Espanha fazendo o mesmo com a Real Academia Espanhola criada por Filipe V em 1714, não se encontra uma mesma entidade no mundo anglo-saxão. O mais perto que se chega disso é o dicionário Merriam-Webster nos Estados Unidos, criado em 1828 por Noah Webster, e o Oxford English Dictionary, publicado em 1928, ambos iniciativas privadas.

O inglês, assim, é livre, voraz, voluntário. Possui duas vezes mais palavras que o francês e três vezes mais que o espanhol. O inglês moderno emergiu de uma sociedade misturada com várias línguas, com fortes pitadas do velho inglês, da elite francesa, do latim escrito. Mas o principal fator de seu relativo sucesso é a ausência de regulação, podendo assimilar o que considera útil, pela ótica dos próprios usuários da língua. Portanto, um típico conservador norte-americano não será contra mudanças na língua; ele será contra mudanças impostas por elites políticas e burocratas por razões ideológicas, o que é bem diferente.

E é exatamente isso que a patota da ideologia de gênero vem tentando fazer, com apoio de Hollywood, boa parte da imprensa e da academia. Não é algo em que o povo tenha qualquer interesse. É por isso que soa tão artificial. A elite “progressista” brasileira adora copiar só aquilo que não presta dos Estados Unidos. É assim que um jornalista ou estudante universitário diz “todes” sentindo-se a alma mais bondosa do planeta, enquanto não passa de um instrumento nesse esforço deliberado de destruir a linguagem para escravizar mentes. Todos com sensatez percebem isso. “Todes” os outros não.

Leia também “Os mais recentes ataques da linguagem neutra

21 comentários
  1. Fabio Augusto Boemer Barile
    Fabio Augusto Boemer Barile

    Eu quero muito ver o Doria ser varrido do mapa nas eleições do ano que vem. Vai ter menos votos que a Marina Silva em 2018.

  2. miguel Gym
    miguel Gym

    Constantina Consta.Então é por isso que as sentenças jurídicas-o juridiguês-“são retórica pretensiosa,obscura e imprecisas,arenga metafísica recheada de alusões irrelevantes,para ocultar pobreza de pensamento,e às vezes vigarice.” E o direito anglo-saxão rápido,sumário e compreendido por todos.O estudo é bonito como diria meu pai.

  3. Marco Aurélio Minafra
    Marco Aurélio Minafra

    Achei que a esquerda brasileira tinha chegado ao fundo do poço…..mas não….. a esquerda brasileira sempre acha um jeitinho de cavar um pouco mais a fossa na qual querem empurrar o Brasil….
    TODES ESQUEDISTES CONTRA O BRASIL!!!!

  4. Wilson Campos de Miranda Filho
    Wilson Campos de Miranda Filho

    Parabéns pelo artigo!! Forte e embasado

  5. Ana Lúcia Kazan
    Ana Lúcia Kazan

    Parabéns, Constantino. Sempre corajoso, articulado, preciso, rápido. Concordo em tudo. E a lingua inglesa tem o benefício de ser – na sua maior parte – sem gênero. A “friend” pode ser homem ou mulher, same as a lover, as people. Português – assim como o Francês – tem o bendito do gênero, mas nos permite referirmo-nos aos dois (apesar de desnecessário). Então tenho ouvido : “todos e todas” (quando “todos” bastaria para indicar os dois sexos, ou os 10 sexos, não se sabe mais. Muito cansativo e desnecessário. Quem respeita os outros em suas diferenças e/ou escolhas, mostra isso em todas as palavras, gestos e sentimentoscom que se expressa. Tomara que essa história do “todes” passe logo. É muito cansativo, e temos coisas mais importantes prá pensar agora.

  6. Fausto Góes Fontes Neto
    Fausto Góes Fontes Neto

    Tenho dificuldades em escolher o melhor texto da semana dessa revista. Parabéns pelo texto!!

    1. CARLOS EDUARDO DE SOUZA RODRIGUES
      CARLOS EDUARDO DE SOUZA RODRIGUES

      Também estou gostando muito desta edição da revista.
      Essa elite não compreende que é o patrimônio cultural e moral de uma sociedade que forma um Estado. Eles acham que é o contrário: que o Estado vai ditar as regras sobre como o povo deve se portar.

  7. Ricardo Leite Dos Santos
    Ricardo Leite Dos Santos

    Contratem a Professora Cintia Chagas para ser colunista aqui, ensinar português e explicar essas falácias ideológicas.

  8. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns Constantino.

  9. Maria da Penha Fonseca Pedrosa
    Maria da Penha Fonseca Pedrosa

    Constantino e sua exímia inteligência.
    Parabéns!

  10. Rudimar Dal Prá
    Rudimar Dal Prá

    Excelente artigo Constantino.

  11. Caubi Iram Ataide De Oliveira
    Caubi Iram Ataide De Oliveira

    SE ENCARARMOS O PROGRESSISMO APENAS COMO UM GRUPO DE MALEDICENTES QUE QUEREM BAGUNÇAR O CORETO, IMPONDO A ELE O RESPEITO À ORDEM ESTABELECIDA, RAPIDINHO RETORNARÁ AO SEU DEVIDO LUGAR NO SEIO DA IGNORÂNCIA.

  12. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Um amigo que não quer se identificar para não ser fuzilado já me disse que o correto é considerar os termos “pessoa” e “gente” sem distinção de cor, raça, credo e time de futebol. E questiona esses progressistas da idiotice, pois se quisessem mesmo ir a fundo no tema abraçado teriam que lutar para que na estatística da covid constem os mortos masculinos, femininos e gueis. Não se sabe quantos gays morreram por covid (ou quantos se recuperaram), mortos no trânsito, nos tiroteios entre gangues ou com ataques no coração. E nessa loucura o amigo disse que deveria ter esportes para essa nova denominação para que não houvesse injustiças e ilegalidades. Nos testes de DNA também estão escondidos numa fórmula que não existe. Até eu já escrevi anos atrás que “Gay é gente”. Mais ou menos como aquela ideia de que nem todo branco é igual, nem todo negro é igual, nem todo índio é igual. Existem diferenças entre brancos italianos e brancos suecos, negros do norte da África (descendentes de faraós) com o negros pobres do sul do continente, ou quantas nações indígenas existem mesmo na AL, cada qual com sua língua e cultura diferenciada? Esse tipo de assunto atormenta muita gente…

  13. Debora Balsemao Oss
    Debora Balsemao Oss

    Perfect! “Minha pátria é minha língua.”

  14. Décio João Gallego Gimenes
    Décio João Gallego Gimenes

    Gostei muito do texto. Parabéns Constantino! Eu também acho que mudanças na língua acontecem e são normalmente recebidas quando elas são naturais. Esses cabeças de bagre não tem conhecimento sequer da ignorância que lhes acomete. Um mundo melhor é construído de bravos e fortes, não de maricas inúteis e metidos.

  15. Carlos Benedito Pereira da Silva
    Carlos Benedito Pereira da Silva

    Acho que o (des)governo do Doria, vulgo “calça apertada” representado por esse imbecil de secretário da (des)educação devia pagar direitos autorais para a família do Mussun, pois foi ele o criador desse tipo de dialeto, ou, “dialetesis”. Esse secretario é mais um “burraldis” assessorando o governador. Ostracismo neles.

  16. Marco Aurélio Bittencourt
    Marco Aurélio Bittencourt

    esse é o exemplo típico de que a intelectualidade brasileira vai pras p i c a s mais rápido do que com o vírus da covid.

  17. Aparecida marildes de azevedo
    Aparecida marildes de azevedo

    Este governador calça apertada entra em qualquer processo que possa colocá-lo nos holofotes ou possa justifica-lo. Triste desta geração que não busca virtudes nem valores. Querem se levantar somente por uma idéia vinda sei lá de onde sem saber se os defendidos tem algo a oferecer de bom para a sociedade.

    1. Marcelo Gurgel
      Marcelo Gurgel

      O nosso idioma é um patrimônio de TODOS OS BRASILEIROS!

  18. Joviana Cavaliere Lorentz
    Joviana Cavaliere Lorentz

    Perfeito, não por acaso “liberal” na América tem sentido diferente do resto do mundo. Cilada pronta para os incautos.

  19. Walter Lacerda
    Walter Lacerda

    Esse governo estadual é de uma boçalidade impar…… Para mim a linguagem é coisa muito séria e tem a ver com a unidade nacional, sendo, portanto, uma questão de segurança nacional, que não pode ser menosprezada ou vilipendiada por um bando de boçais que se julgam dono da linguagem, e o pior, donos de uma linguagem que não existe….. A lingua evolui, mas não por “carteiradas”, e sim pelo reconhecimento de sua mudança e evolução no seio da sociedade…. Infelizmente a lingua portuguesa no Brasil está sendo destruida e poucos jornalistas sabem escrever ou falar….. Plural composto ?? …..concordância verbal ?? ….. estilo e lógica semântica ??? …..tudo isso passou a ser desprezado a partir dos tempos de Lulla….. E esses boçais agora vem com um museu que quer mudar a lingua portuguesa de cima pra baixo….. Triste….

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