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Edição 99

O ditador hippie

O caso Neil Young X Joe Rogan dentro do Spotify confirma que a censura está ao alcance de todos

Dagomir Marquezi
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“Você viu as bandeiras da liberdade?
De que cor elas são agora?
Você acha que acredita na sua bandeira
Mais do que eles acreditam nas deles, de algum jeito,
quando você vê as bandeiras da liberdade ao vento?”

Flags of Freedom – Neil Young

O destino (ou uma tendência de mercado de mídia) uniu Neil Young e Joe Rogan na plataforma de streaming Spotify. Como praticamente todos os outros músicos, Neil colocou suas músicas na plataforma. E passou a ganhar uma porcentagem a cada vez que alguém ouvia músicas como Rust Never Sleeps, Heart of Gold ou Rockin’ in the Free World

Na mesma Spotify, Joe Rogan hospeda o podcast mais ouvido do mundo. Com um contrato de US$ 100 milhões, ele achou que podia falar o que quisesse. Mas Neil Young não concorda com Joe Rogan. E a polêmica entre os dois se transformou numa parábola do nosso tempo. Nunca houve tanta liberdade. E nunca houve tantos censores.

Neil Young

O cantor e compositor canadense Neil Young, hoje com 76 anos, é um dos artistas que se tornaram mundialmente famosos no Festival de Woodstock, em 1969. Sempre foi um encrenqueiro. Na sua apresentação com o trio Crosby, Stills & Nash, negou-se a participar das músicas que usavam guitarras elétricas. Até ameaçou fisicamente um cinegrafista. A partir de Woodstock, criou sua persona de hippie perpétuo, com as roupas amarfanhadas e cabelo desgrenhado. Compôs alguns clássicos do folk-rock e se tornou uma das vozes contra a participação dos EUA na Guerra do Vietnã. 

O cantor Neil Young | Foto: Wikimedia Commons

Neil Young surpreendeu nos anos 1980 ao apoiar o presidente Ronald Reagan. Declarou na época: “Estou cansado de pessoas constantemente se desculpando por serem americanas”. Em 1985, durante a epidemia de aids, disse numa entrevista à revista Melody Maker: “Você vai a um supermercado e vê uma bicha atrás da caixa registradora e não quer que ele segure suas batatas”. Pegou mal.

No final da década, Neil Young largou sua fase “direitista” e passou a criticar o ex-presidente George Bush (pai). No início do século 21, passou a ser um ambientalista radical, inimigo dos combustíveis fósseis. Criticou George Bush (filho) pela invasão do Iraque. Criticou Barack Obama (por ser omisso com o meio ambiente). Criticou os alimentos transgênicos. Criticou Donald Trump e proibiu que se usasse uma de suas músicas na campanha presidencial. 

Aos 76 anos, Neil Young parecia viver o ocaso de sua carreira musical. Foi quando surgiu a polêmica com Joe Rogan no Spotify.

Joe Rogan

Joseph James Rogan nasceu em 1967, em New Jersey. Começou como comediante stand-up. Virou ator da Disney, depois comentarista de Ultimate Fight. Em seguida, apresentador de reality show. Sua carreira errática encontrou um rumo em 2009, quando lançou o podcast The Joe Rogan Experience. Acertou em cheio. Chegou a 11 milhões de seguidores. Em 2020, o Spotify o contratou com exclusividade, por US$ 100 milhões.

Hoje, Rogan está sendo fuzilado pela mídia “progressista” como um troglodita de direita. Mas suas posições políticas sempre foram difíceis de rotular. Segundo levantamento da Wikipedia, ele apoia casamento com pessoas do mesmo sexo, direitos dos gays, direitos das mulheres, a legalização da maconha, o uso de LSD e de cogumelos alucinógenos no tratamento de problemas psiquiátricos, e o direito à posse de arma. 

Logo do podcast de Joe Rogan | Foto: Reprodução/Spotify

Joe Rogan se posicionou contra a chamada “cultura do cancelamento” e acha que o ponto de vista da direita está sendo suprimido da mídia. Ao mesmo tempo, demonstrou admiração pelo socialista Bernie Sanders e acusou os esquerdistas americanos de torcer pelo fracasso de Donald Trump só porque não iam com a cara dele. É um caçador, adepto do lema “coma o que você mata”. Posicionou-se contra o maltrato de animais na indústria pecuária.

Spotify

A Spotify está para o streaming de áudio assim como a Netflix está para o de vídeo. Por ser a pioneira, as outras empresas são descritas como “tipo Spotify”. Ela foi fundada na Suécia e tem sua sede em Estocolmo. Fundada em 2008, continua líder disparada no mercado. Tem 406 milhões de usuários ativos, 180 milhões dos quais são pagantes. Está presente em 184 mercados, e emprega quase 8 mil pessoas. Hoje, enfrenta concorrência de gigantes como a Amazon, a Apple e de empresas menores como a Tidal. 

Neil Young ficou revoltado com o fato de Joe Rogan ter uma posição diferente da sua

O fundador e CEO, Daniel Ek, apostou na evolução do Spotify como uma plataforma de podcasts. Com a contratação de Joe Rogan, Ek elevou o podcast a um novo patamar de respeito e relevância no universo da mídia internacional. A empresa terminou 2021 com uma receita de US$ 9,6 bilhões. Tudo parecia ir bem e estável. Até o dia 24 de janeiro. 

Neil Young X Joe Rogan

Em abril de 2021, Rogan declarou no seu podcast no Spotify que pessoas jovens e saudáveis não deveriam ser vacinadas contra o vírus da covid-19. Entra em cena o assessor da Casa Branca, Anthony Faucci, que o acusa a espalhar falsidades sobre a vacina. Rogan demonstrou estar arrependido de suas declarações.

Em agosto, Rogan reclamou no ar que a ideia de passaportes vacinais levaria a sociedade a “um passo mais próximo de uma ditadura”. Em setembro de 2021, testou positivo para covid. E divulgou um vídeo dizendo que havia iniciado um tratamento que incluía, entre outros medicamentos, predinisona e ivermectina. No mês seguinte, estava curado. 

Sua entrevista com o doutor Robert Malone, que comparava a política contra a covid a um ato de holocausto, atraiu a fúria de 270 médicos e especialistas, que reclamavam da “desinformação” propagada pelo programa de Joe Rogan. Fora isso, a cantora Indie Ari teve a paciência de pesquisar mais de 1.700 episódios do Joe Rogan Experience e fazer uma edição de todas as vezes que ele tinha dito a palavra “nigger” — uma forma considerada pejorativa de se referir aos negros. Rogan está pedindo perdão por isso até agora.

Mas o que pegou mesmo foi a “negação” da vacina. Neil Young ficou revoltado com o fato de Joe Rogan ter uma posição diferente da sua. Em 24 de janeiro deste ano, Young mandou uma carta aberta ao pessoal que administra sua carreira. E postou nas redes sociais sua mensagem, com jeito de ultimato: 

“O Spotify está espalhando informações falsas sobre vacinas — potencialmente causando a morte daqueles que acreditam na desinformação espalhada por eles. Quero que vocês façam o Spotify saber imediatamente HOJE que eu quero toda minha música fora da plataforma deles. Eles podem ter Joe Rogan ou Young. Não os dois”.

https://www.youtube.com/watch?v=73FFi4JlYbw

A nova trincheira

A carta aberta abriu imediatamente mais uma trincheira na tal “guerra cultural”, que não cansa de se expandir. Até a divulgação da carta de Young, os clientes podiam ouvir as músicas de Neil Young, ou o podcast de Joe Rogan. Ou mesmo as duas atrações. Agora, segundo a ordem do roqueiro, só poderia ter um ou outro.

A atitude de Neil Young inspirou outros artistas que também cantaram em Woodstock a seguir seus passos: Joni Mitchell, David Crosby, Stephen Stills, Graham Nash anunciaram a retirada de suas músicas da plataforma. Além da autora de podcast Roxana Gay, a cantora Indie Arie e o guitarrista Nils Lofgren.

Acrobacia de relações públicas

O “influencer” britânico Paul Joseph Watson não perdoou a atitude de Neil Young e seus seguidores. Declarou cheio de ironia no seu canal no YouTube: “Ele curtiu o apoio de seus covardinhos da covid e maníacos por censura. Deve ser porque não existe nada mais radical, rebelde, rock and roll do que exigir que qualquer um que ouse questionar corporações farmacêuticas gigantes e multibilionárias deva ser censurado. Detonar Joe Rogan parece ser uma cínica acrobacia de relações públicas. Isso o catapulta da relativa irrelevância de volta ao círculo da mídia”.     

Se foi essa a intenção, o plano parece ter dado certo. Segundo o empresário Mark Mercuriadis, dono dos direitos da metade das músicas de Neil Young, a procura por suas gravações nos serviços de streaming aumentou 38%. O aumento da venda de álbuns, nas palavras de Mercuriadis, se deu na casa de “centenas de porcentagens”. Não deu para entender o que ele quis dizer com isso, mas Mercuriadis parecia muito feliz com a declaração. 

Como voltou a ser notícia e a ganhar dinheiro, Neil Young decidiu radicalizar e dar ordens mais ambiciosas. Segundo a agência Reuters, Young pediu aos funcionários do Spotify que deixem seus empregos. “Saiam do lugar antes que devore as almas de vocês.” Ele também sugeriu aos clientes do JPMorgan Chase, Citigroup, Bank of America e Wells Fargo que esvaziem os cofres dessas instituições, que, segundo ele, são “causadores de danos” por financiarem combustíveis fósseis. 

A posição do Spotify

Um comunicado interno para os funcionários da empresa assinado pelo CEO, Daniel Elk, acabou vazando. Ele chega perto de se desculpar por ter contratado Joe Rogan. Mas defende sua permanência na plataforma: 

“Quero lembrar a todos da nossa missão. Queremos chegar a 50 milhões de criadores e 1 bilhão de usuários, e, para ser uma verdadeira plataforma e alcançar essa ambição, é realmente fundamental que os criadores possam usar sua voz de forma independente. E é fundamental que tenhamos diversas vozes em nossa plataforma.

Não estamos no business de ditar o discurso que esses criadores querem ter em seus programas. E se quisermos apenas fazer conteúdo que todos gostemos e concordemos, precisaremos eliminar a religião, a política, a comédia, a saúde, o meio ambiente e a educação, a lista continua e continua, porque essas são questões realmente complicadas. E se limitarmos esses tópicos divisivos, os principais criadores sairão e os usuários privados da escolha de conteúdo fugirão de nossa plataforma e buscarão outras alternativas. E isso, é claro, significaria que nunca alcançaríamos nossa missão. 

Para aqueles que não sabem, The Joe Rogan Experience é atualmente o principal podcast em 93 mercados, por isso é impossível ignorar sua escala e alcance. Ou, para ser claro, ele é o podcaster número um do mundo por uma ampla margem. (…) É importante observar que não temos controle criativo sobre o conteúdo de Joe Rogan”.

Donald Trump

Enquanto o governo Joe Biden fez um discreto elogio à censura aplicada a Joe Rogan, o ex-presidente Donald Trump seguiu em sentido contrário: “Joe Rogan é um cara interessante e popular, mas ele tem de parar de se desculpar com os maníacos e lunáticos das fake news e da esquerda radical. De quantas maneiras você pode dizer que sente muito? Joe, apenas faça o que você faz tão bem e não deixe que eles o façam parecer fraco e assustado. Isso não é você e nunca será!”.

Rumble

O empresário Chris Pavlovski convidou Joe Rogan a mudar de casa. Ofereceu sua empresa Rumble, uma espécie de YouTube de tendência conservadora. O convite foi escancarado por meio de uma postagem no Twitter: “Estamos com você, seus convidados e sua legião de fãs no desejo de uma conversa real. Que tal você trazer todos os seus episódios para o Rumble, antigos e novos, sem censura, por US$ 100 milhões em quatro anos?”.

Rogan já declarou que pretende continuar no Spotify. 

Bandeiras da liberdade

Na prática, Neil Young estabeleceu uma nova forma de censura no Spotify. Por mais que tivesse cometido erros, Joe Rogan jamais pensou em dizer: “Não acredito e não aceito as opiniões de Neil Young sobre a vacina contra covid. HOJE eu quero todos os episódios do podcast fora da plataforma. Eles podem ter Young ou Rogan, não os dois”.

O episódio não é propriamente uma novidade. Tivemos uma situação parecida na imprensa brasileira recentemente.

O caso só reforça a preocupante noção de que a liberdade tem limites e a censura, não. Neil Young se revelou um ditador vestido de hippie. Se quiser promover a liberdade, o mundo pode ter ele ou nós. Não os dois. 

Leia também “A morte lenta da noite”

7 comentários
  1. Edgard de Araujo Salles Junior
    Edgard de Araujo Salles Junior

    Excelente seu artigo! Lamento muito pelo Neil Young, pois sou seu fã.

  2. Daniel Miranda Lewin
    Daniel Miranda Lewin

    Nunca ouvi o podcast de Joe Rogan, mas já sou fã! LIBERDADE SEMPRE!

  3. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Ótimo artigo com a clareza e objetividade em mostrar aos leitores da Oeste o que nesse mundão doido tá rolando.

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente artigo. Parabéns Dagomir. Quanto a esse Neil Young e sua turminha de seguidores, parecem um bando de dementes afetados pela idade.

    1. IVAN GUILHERME GERHARD BARROCAS
      IVAN GUILHERME GERHARD BARROCAS

      Perfeito!

  5. Paulo Ferreira
    Paulo Ferreira

    Assisti um episódio de Joe Rogan. Três horas e alguns minutos. Mais de uma hora de tergiversação, aquele papo furado básico entre entrevistador e entrevistado. Fora esta crítica, estou com Rogan em tudo, inclusive na pauta liberal de costumes.

  6. Luciano Rocha Costa Ribeiro
    Luciano Rocha Costa Ribeiro

    Ouço as músicas de Neil Young a muito tempo. Nunca assisti Joe Rogan. Apoio JOE ROGAN desde sempre.

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