Um acordo de paz entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) teria reduzido o número de homicídios no Brasil. A informação foi revelada nesta segunda-feira, 10, pelo jornal O Globo.
Esse acordo teria ocorrido em fevereiro de 2019. Na ocasião, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, foi transferido de presídios paulistas para o Sistema Penitenciário Federal. Neste último, as regras são mais rígidas. Em algum momento, o líder do PCC recebeu a oferta de um acordo de paz de advogados ligados à facção carioca. Assim como integrantes do grupo criminoso de São Paulo, criminosos do CV também estavam em presídios federais.
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Ao ouvir a proposta, Marcola teria dito a Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, do Comando Vermelho, que o verdadeiro inimigo dos criminosos era o Estado, e não o crime. A facção carioca pediu ao PCC que financiasse ações jurídicas por meio da contratação de juristas renomados. Esses profissionais teriam a responsabilidade de elaborar pedidos de redução de penas.
O promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo, explicou ao O Globo como funcionou o acordo.
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“O PCC liberou pelo menos R$ 10 milhões para pagar pareceres de juristas, custas judiciais e honorários de advogados”, disse Gakiya. “Esses juristas não trabalhavam a serviço das facções; foram contratados por ONGs ligadas a presos. A trégua praticamente cessou as mortes nas penitenciárias, impactando positivamente o índice de homicídios no país. Não credito essa redução à política pública de nenhum Estado do Brasil. O que houve foi um acordo de criminosos.”
A relação entre o PCC e o CV
O relacionamento entre cariocas e paulistas começou a ter complicações em 2016. Um dos marcos ocorreu na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, na fronteira com Mato Grosso do Sul. Em 15 de junho daquele ano, um Toyota Hilux prata parou em um cruzamento para ser alcançado por um Hummer preto, escoltado por três carros. Dentro do Hummer estava o traficante Jorge Rafaat Toumani, o Rei da Fronteira, principal obstáculo ao crescimento do PCC no Paraguai.
De repente, a porta traseira do Hilux se abriu e uma rajada de balas iluminou a rua. Uma metralhadora .50 perfurou a blindagem do Hummer, em um ataque digno de zonas de conflito armado. Os capangas de Rafaat, armados com pistolas e fuzis, não tiveram chance diante dos mais de cem tiros disparados. A batalha durou dez minutos.
Rafaat morreu aos 56 anos, atingido por 16 balas, quase todas na cabeça. A operação, que custou US$ 1 milhão, foi planejada por um consórcio de criminosos, incluindo PCC, CV e Jarvis Chimenes Pavão. Estabelecer-se no Paraguai foi um movimento ousado do PCC, essencial ao seu esquema criminoso. O país é um grande fornecedor de maconha e base para o tráfico de cocaína da Bolívia, Peru e Colômbia.
O CV chegou ao Paraguai na década de 1990, quando Fernandinho Beira-Mar, ex-líder da facção, fugiu para a região. Ele se associou a produtores locais e começou a despachar drogas para o Rio de Janeiro e São Paulo. O império durou até a prisão de Beira-Mar, em 2001. Em 2005, o PCC entrou no Paraguai, impôs suas regras e permitiu que traficantes locais continuassem seus negócios de forma independente.
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Até a morte de Rafaat, CV e PCC tinham um pacto de não agressão. Na cadeia, presos das duas facções compartilhavam o mesmo pátio e até dividiam cela. Na rua, eram parceiros nos negócios ilegais. Eles compravam do mesmo fornecedor e despachavam as drogas juntos. Depois do assassinato de Rafaat, um acordo não cumprido sobre rotas contribuiu para a ruptura entre as organizações.
“Havia cooperação e um pacto de não exclusividade no fornecimento de drogas e armas”, explicou Daniel Hirata, pesquisador da Universidade Federal Fluminense. “Não é que o CV e o PCC formavam naquele momento uma organização unificada, com um comando centralizado. Mas havia esse pacto que acabava acomodando as diferenças. Em algum momento, essas diferenças foram ficando maiores, as disputas foram sobressaindo com relação às negociações.”
Facções declaram guerra
A tensão começou a surgir nas prisões onde o PCC predominava. Comunicados internos interceptados mostraram o descontentamento da facção paulista com o CV, que filiava presos ligados a grupos rivais. Em 2016, “salves” que indicavam o rompimento começaram a surgir. Integrantes do alto escalão do PCC enviaram um comunicado geral para declarar guerra ao CV.
Em última instância, era uma disputa pelo mercado de drogas. O PCC expandiu-se nacionalmente, arregimentando novos membros a qualquer custo. Em quatro anos, até 2018, ganhou 18 mil criminosos em São Paulo e outros Estados. Mas seus planos esbarraram nas organizações criminosas locais, que formaram alianças regionais, com o CV.
O reflexo da ruptura ficou evidente nos meses seguintes, com massacres em Roraima, Rondônia, Amazonas e Rio Grande do Norte, que resultou em mais de cem presos assassinados. A rixa se alastrou para as ruas, e, em 2017, o Brasil registrou o maior número de mortes violentas da história.
“Houve um período de bastante instabilidade depois da morte do Rafaat”, disse Hirata. “O Comando Vermelho teve de se reorganizar e deslocar rotas e corredores para o fornecimento de drogas. Isso foi feito, sobretudo, mais ao Norte do país, com a resistência tanto do PCC como também de outros grupos que já estavam operando nesses lugares.”
Para o pesquisador Bruno Paes Manso, autor do livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, as características das facções explicam o processo de expansão. O CV permite uma organização autônoma de chefias regionais, enquanto o PCC tem uma gestão hierárquica.
“O que está acontecendo agora é uma expansão mais rápida do CV para outros Estados do Brasil”, explicou Manso. “Isso porque cada chefe de Estado ou representante tem uma capacidade de decisão mais vinculada ao seu contexto territorial. O CV está chegando na Bahia e na Paraíba, por exemplo, com muita força para controlar territórios.”
Quais são os números reais? A afirmação de que um pacto entre criminosos teria reduzido o número de homicídios no Brasil precisa ser contextualizada com números. O período mencionado começa em 2019, mas alega-se que fatores “redutores” teriam se estabelecido antes. Estamos falando de dezenas de milhares de mortes anuais, pelos dados oficiais. A guerra entre traficantes teria, por exemplo, contribuído decisivamente com a redução de quase 70.000 para menos de 50.000? Mais ou menos 20.000 morte a menos por causa de acertos entre bandidos? É essa a sugestão do tal promotor de justiça? Quais são os dados reais?