Somos todos democráticos, ma non troppo. Onde estavam essas pessoas que têm paixão por esculhambar o presidente da República, apareciam pouco ou se escondiam nos anos ditos de chumbo e somente vieram a dar as caras em abundância nesta sequência: “Fora, Sarney”, “Fora, Collor”, “Fora, FHC” e “Fora, Temer”?
Fora isso, ninguém mais prestou, a não ser Lula e Dilma, certo? Dilma, com Michel Temer de vice-presidente, prestou-se também a ser deposta por aliados, ma non troppo também…Pois agora, que seria hora de redimi-la, são os primeiros a recusá-la. Como perguntava Sinhozinho Malta, personagem imortal de Dias Gomes, “tou certo ou tou errado?”.
Vamos refrescar a memória de algumas coisas. Vocês se lembram — se não se lembram, podem consultar os consultores — que houve um pessoal aí que se recusou a subscrever a Constituição de 1988, mas depois passou a invocá-la em causa própria e apenas em causa própria, à base do que Millôr Fernandes resumiu: “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”.
Era um tempo em que Martinho da Vila, então por volta de trinta anos, cantava os versos de O Pequeno Burguês: “Felicidade, passei no vestibular,/ Mas a faculdade é particular./ Particular, ela é particular…”. Ele entendeu que estudantes que trabalhavam eram trabalhadores que estudavam. A maioria dos brasileiros fez curso superior assim e não na universidade pública onde, abertos os concursos, os velhos alunos que cursaram universidades privadas vieram a ensinar os filhos dos burgueses ou pequenos burgueses nas universidades públicas.
Diferentes, ma non troppo
Todos estavam ali por mérito, alunos e professores. Os primeiros, por vestibular; os segundos, por concurso. E em muitos casos no campus de concentração de algumas delas, os novos professores tiveram que enfrentar justamente os boiadeiros de gado do qual diziam: “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”. Alguns eram ricos ou filhos de ricos e se diziam do partido dos trabalhadores, mas curiosamente apenas seus pais tinham trabalhado para que eles pudessem estudar e dentre eles alguns eram também professores.
Eram diferentes, então, ma non troppo. A canção de Jair Rodrigues chamou-se Disparada, tornada mais famosa por Geraldo Vandré. Como toda peça de nosso cancioneiro, tem que ser tomada no contexto que a gerou. Lá adiante, seus versos dizem também: “Se você não concordar,/ Não posso me desculpar,/ Não canto pra enganar,/ Vou pegar minha viola,/ Vou deixar você de lado,/ Vou cantar noutro lugar”.
Boa parte da intelectualidade brasileira ficou estranha. Agia allegro (rápido, em música) e adotou o festina lente (vai com pressa, mas devagar), como se pressa fosse coisa de pobre, que precisa ganhar hoje para comer amanhã. A intelectualidade brasileira é maciçamente contra o presidente que foi eleito pelo povo, o mesmo povo que, por maioria, antes elegeu outros, que cumpriram seus duplos mandatos até o fim no período 1994-2018. Ainda assim, por que a esse, e apenas a esse, não se pode deixar governar?
“Está no livrinho?”, perguntava o marechal Eurico Gaspar Dutra, presidente da República de 1946 a 1951, que dá nome à Via Dutra, construída e inaugurada em seu governo, ligando o Rio a São Paulo. Como o marechal Dutra chegou ao governo? Trilhando o mesmo caminho do capitão Bolsonaro: por eleições diretas. Nosso país tinha poucos habitantes e poucos eleitores nas eleições de 1945. Dutra foi eleito com 3 351 507 votos. Mas é interessante olhar no espelho retrovisor da História, coisa que as atuais redações fazem pouco.
Faz de conta
Até para se entender romances policiais, é preciso atentar para a frase de Sherlock Holmes em Um estudo em vermelho: “Na meada incolor da vida, corre o fio vermelho do crime, e o nosso dever consiste em desenredá-lo, isolá-lo e expô-lo em toda a sua extensão”. Sherlock Holmes é o nome do personagem, como sabem os leitores, mas tornou-se tão famoso que se consolidou para o público como nome substituto do médico oftalmologista e escritor escocês que o criou, um rapaz chamado Arthur Conan Doyle. Não pense que ele não sofreu na vida. Aos 29 anos, ainda estudante de medicina, trabalhava por casa, comida e roupa lavada. Ninguém queria saber de médico jovem, o que o levou a dizer: “Esta gente de Sheffield prefere ser envenenada por um homem com barba a ser salva por um jovem imberbe”.
Faz de conta. Faz de conta que no Brasil a política tem muito a ver com Sherlock Holmes e é preciso procurar na “meada incolor” em que estão enredados certos candidatos o “fio vermelho do crime” e “isolá-lo e expô-lo em toda a sua extensão”. Somente assim entenderemos as eleições presidenciais e as próximas. Não me refiro apenas à mais recente e esta a ocorrer em 2022, mas a outras também.
Certas frases famosas, assim como os provérbios, são frascos de sabedoria em alta concentração. É preciso desenvolvê-las se o que se quer é entender o que dizem de forma resumida. Ma non troppo (mas não demais, em italiano) parece ter surgido como bordão na Idade Média e foi aproveitado na música erudita para recomendações a ser marcadas por limites um tanto vagos. Vagos, ma non troppo (risos), a variação dali advinda é muito, mas muito pequena. Cada peça não tem uma duração matemática precisa em minutos ou segundos, parece que isso depende mais do estilo do maestro.
Allegro ma non troppo, un poco maestoso (Rápido, mas não muito, um pouco majestoso) é recomendação que aparece também na Nona Sinfonia de Beethoven. Recomendo a nossos leitores e ouvintes que degustem este trechinho, sei que muitos não o farão pela primeira vez, quando o coro acompanha com os versos do médico, historiador e poeta alemão Friedrich Schiller: “Alegria, sois divina,/ Filha de Elísio,/ Tornais ébria a poesia/ Inspirais Dionísio./ Nem costumes ou tradição/ Vos reduzem o encanto/ Criais-nos um mundo irmão,/ Insuflais nosso canto”.
Viver é lutar. Notaram que há sempre canções e músicos para celebrar as lutas? Isto também é allegro, ma non troppo. Cadê os autores e os livros?
Parabéns. Agradável de ler.
Para que nossos autores apareçam, é necessário que haja uma plataforma (um provedor, etc), que não se submeta à cultura do cancelamento. Que esteja além das garras de Barrosos, Moraes, e afins. Não além da Justiça, mas dos justiceiros de plantão. Hospedar sites e possuir servidores na Suíça é, a meu ver, uma escolha. Submetem-se apenas às leis do país, que são rígidas quanto à privacidade.
Allegro, ma non troppo.
Os autores são reais, porém as livrarias são hoje virtuais… por enquanto. Com esse mundo de hoje em dia, já se fala em metaverso e em breve será tudo virtual mesmo e aí entraremos num soturno adágio, cavernoso e medieval. É só observar o que acontece em volta. Os autores e os livros darão lugar aos avatares e às animações virtuais e cada dia as pessoas lerão menos.
Triste, mas é o que está desenhado.