Em 2021, dei uma longa entrevista a uma acadêmica em biblioteconomia para fins universitários que me fogem agora da memória. A moça, muito bem ajeitada no trato linguístico, me questionou, lá pelo fim da entrevista, quase num tom pessoal, se eu pensava que a contínua e crescente crise econômica que se anunciava para os próximos anos seria a “pá de cal” nas moribundas livrarias físicas do Brasil e do mundo. Com aquele ceticismo pessimista que me acompanha, tal como um parasita acompanha seu hospedeiro, disse prontamente que sim.
Vi a frustração passar em seus olhos, olhos que até poucos segundos atrás pareciam confiantes em uma resposta mais otimista de um editor de livros ‒ afinal, um editor de livros deveria ser idílico por natureza, ler bastante, sem parar, e, de preferência, ser um velho que ama o romântico desprendimento da realidade, é o que pensam quase todos. Em suma, frustrei a garota.
Afirmei à futura bibliotecária que não via uma solução econômica real para a sobrevivência das livrarias físicas em seu formato atual, frente às juvenis e vigorosas livrarias virtuais. Obviamente as livrarias tentariam uma sobrevida com aqueles auxílios econômicos típicos do nosso país; quem sabe até conseguissem forçar alguma isenção de impostos em alguma das cadeias livreiras, o que possibilitaria às editoras ofertarem seus produtos com uns 30% a menos do que é o padrão mercadológico hoje. Segundo o site E-commerce Brasil, o preço médio do livro em 2022 era de R$ 44,66; um custo alto para grande parte da população brasileira, considerando que não temos enraizado o hábito da leitura. Segundo o estudo do Instituto Pró-livro, da pesquisa anterior de 2015 para a de 2019, o Brasil teria perdido cerca de 4,6 milhões de leitores, caindo de uma média de 56% para 52% de leitores ativos no país ‒ aqueles que leram um livro inteiro nos últimos três meses. Ou seja, a crise livreira é maior que a própria crise econômica no ramo, é também uma crise cultural e educacional; nos últimos meses, ao menos três grandes empresas do ramo livreiro declararam falência no Brasil, a última, a enorme Livraria Cultura e, já em 2013, a titã cambaleante Saraiva. Ainda que nem tudo seja mato, pois a pandemia parece ter colaborado para o aumento geral de bens, inclusive de livros, muitas livrarias de médio e grande portes apostam agora em espaços menores e mais aconchegantes para seus leitores, o que parece dar uma sobrevida ao modelo de negócio; mas não adianta dourar a pílula aqui, a crise no ramo existe e sobrepõe, por hora, as iniciativas e melhoras do setor.
Mas ser otimista por uns dois minutos pode colaborar para enxergamos soluções em meio aos problemas, dito isso tenho um pitaco e uma consultoria gratuita a oferecer na coluna dessa semana… Acredito piamente que, em nome da sobrevivência de uma ideia, de um lugar, de um empreendimento que é bom demais para morrer, a livraria, o modelo de negócio deve ser disruptiva e completamente reformulada, deixando de ser uma oferta de livros em megastore para uma espécie de clube para leitores que, pelo ambiente agregado naturalmente leve ao consumo dos livros lá ofertados.
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Livrarias em decadência: o que fazer?
A saída final para as livrarias, cravei com uma certeza quase religiosa para a universitária em 2021, seria transformá-las ‒ principalmente as históricas ‒ em uma espécie de santuário do conhecimento que primeiro ofertassem aconchego e ambiente para leitores ao invés de meramente livros precificados em estantes. Lá as regras primárias seriam aquelas que propiciariam o caminho para a erudição, aliado, sem se sobrepor, às necessidades de mercado; o equilíbrio entre vendas versus acesso ao espaço propício à leitura seria a alma do negócio. O mero lugar físico para você entrar, comprar livros e sair não é mais justificável no século em que você pode acessar um site e comprar livros com preços mais convidativo, frete grátis e outros benefícios. A livraria física, então, se verteria no natural canto do conhecimento factual dos homens em meio à fúria da urbe, um espaço não ideológico, apenas canto agradável para você sentar-se em meio as ansiedades do dia a dia, um ambiente de fuga consentida para ler um bom romance, biografia ou tratado filosófico; ou, quem sabe ainda, um lugar para terminar sua monografia sem os latidos de seu cachorro ou o choro constante de seu filho; um escondedouro de erudição e cultivo da cultura desinteressada de fins e revoluções.
O modelo de negócio, o business plan, seria antes então um empreendimento cultural que se verteria em lucros à medida que entendesse que a demanda de leitura passa antes pela necessidade de um ambiente ‒ material, cultural e mercadológico ‒ propício para ela, assim como os crentes buscam as catedrais para suas preces, assim como os suplicantes buscam o hospital para suas enfermidades. Desta maneira, o ambiente seria o carro chefe do negócio que, depois, naturalmente levaria o público às estantes. Não se engane, não estou pregando um negócio romântico e utópico, ou uma livraria woke de veganos e progressistas que abominam o lucro, estou falando de inovação profunda do capitalismo livreiro. Imagino uma livraria que cobre o acesso ao ambiente, tal como um clube, e que oferte benefícios que vão além de poltronas e janelas com jardins suspensos para a Avenida Paulista; do wi-fi ao café, deixo tudo agora para a criatividade do investidor. O lucro não é proibido, aliás, ele é necessário, eu só confio em empreendimentos de homens determinados a ganharem algo com seus investimentos, e o dinheiro ainda é a melhor forma de catalisar boas ideias e ótimos executores. Eu consigo ver grandes empresas nesse ramo, mas, antes, essa livraria teria que ajudar a formar leitores através de seu espaço, para só depois vender livros para eles ‒ a questão é, os investidores estariam dispostos a isso?
E não, caso se questionem, não seria uma espécie de “biblioteca”, seria mais como um recanto decentralizado do conhecimento; um lugar que oferte mais que silêncio e estantes abarrotadas.
Finalizei então para a futura bibliotecária: “Se as livrarias quiserem fugir do iminente fosso do tempo e da evolução econômica, devem se transformar em algo mais simbólico do que meramente mercadológico, devem ser mais espírito e menos carne, mais perenidade da civilização do que números e estatísticas no computador de um contador, devem cheirar à eternidade para não começar feder a mofo”. Falando agora como consumidor e leitor, leio em média três livros por mês, e raramente entro em livrarias físicas ‒ mesmo sendo um editor ‒, quase 100% das minhas compras livrescas são feitas on-line. Isso poderia mudar se eu tivesse um lugar que me fizesse querer estar ali para ler e, por indução, comprar livros e trocar ideias. Hoje o brasileiro não sai de casa sequer para escolher o que vai comer, por que ele sairia para comprar livros sendo que em seu notebook ele os encontra muito mais barato? Ou tornamos a livraria física uma catedral, ou a livraria física estará fadada ao decaimento não só econômico, como social, sem aquele porquê fundamental, diferenciado e justificado de existir no século da ansiedade e das facilidades cibernéticas.
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