E cá estamos nós, em pleno século 21, pós-José Sarney, debatendo controle de preços. A vítima da vez são os livros e, é óbvio, os consumidores finais. Acaba de ser aprovada na Comissão de Educação e Cultura o PLS 49/2015, que tem por missão o tabelamento do preço dos livros, mais especificamente, os lançamentos, durante um ano. A medida, segundo a fé mais tolinha de sua idealizadora, Fátima Bezerra (PT-RN), é para garantir uma competição justa entre os marketplaces — basicamente a Amazon — e as livrarias físicas. Mas, como todo protecionismo, essa lei carece de uma lógica econômica mais profunda, não vai além da casca retórica de bom mocismo de Robin Hood que pretende ajudar as livrarias e o dito “povo”.
Vou deixar linkado aqui o PLS 49/2015, pois o espaço da coluna não me permitirá colar trechos inteiros dela. Recomendo assim a leitura do projeto de lei. Em resumo, a ideia geral é congelar o desconto máximo dos lançamentos em 10% durante um ano, fazendo com que a Amazon e as demais livrarias respeitem tal regra a fim de que haja uma competição de preços justa; a isso, se eu bem interpretei a lei, os ebooks também terão de apresentar o preço dos livros físicos, ignorando assim todo aspecto de produção editorial e gráfica diferentes dos itens. Pois bem, todos que me acompanham sabem que há muito critico a lógica livreira no Brasil que parou, ao menos, 200 anos no tempo. O mundo empresarial é inventivo e requer sempre de seus agente reestruturações e renovos gerais de funcionamento, de oferta e de marketing. Vou deixar linkada, também, uma das minhas colunas aqui na Oeste, na qual falo sobre o problema das livrarias, e como a reinvenção de sua existência tem de acontecer caso elas queiram sobreviver às novidade desse mercado.
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Hoje a venda de livros em livrarias digitais corresponde a cerca de 50% do mercado nacional, e o motivo é muito simples: descontos maiores. A compra on-line está na vida dos indivíduos, e esse é um movimento que não tem mais volta, do sabão em pó ao café, do guarda roupa às cuecas. Sou adepto ativo desse estilo de compras. A Amazon tem descontos agressivos, envio rápido e oferta ampla, tudo que um consumidor deseja, e negar tudo isso é ser um negacionista num nível boçal. Nesse mundo das vendas de livros, de fato, as livrarias físicas perdem de forma humilhante. Olhemos os casos das antigas gigantes livreiras Saraiva e Cultura, dois exemplos mórbidos de negócios falidos.
Se olharmos por meio desse prisma, a Amazon aparecerá como uma vilã das mais grosseiras. Porém, pensemos com a cabeça do consumidor. A Amazon trouxe uma estrutura de compra de livro diferente da convencional, mais agradável aos consumidores, e quer queiramos, quer não, democratizou o acesso ao livro por meio de preços melhores. E preços melhores geram acessibilidade ao público amplo, inclusive aos pobres e à classe média, juntando isso ao fato de que, definitivamente, o Brasil não é um país leitor. Ter preços convidativos seria quase uma política capitalista de acesso ao livro. A Amazon não é vilã; ela é, na verdade, um escape ao leitor de baixo poder aquisitivo. Seus descontos que, por vezes, chegam aos 70% em títulos determinados, traz ao público um alívio financeiro que as políticas econômicas idiotas de nosso atual governo estatista ameaçam a todo instante. O único alívio para a inflação é o desconto alto, e tirar isso das pessoas é cruel.
Por que tabelar o preço dos livros é inútil
Mas pensemos de forma rápida na lógica do projeto de lei. Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), a média do preço do livro em 2024 gira em torno de R$ 54,49. Se colocarmos isso nos moldes de “lançamentos”, o preço tende a crescer, já que muitas coisas influenciam a precificação de um livro, do número de páginas à tiragem inicial da editora. Mas costumeiramente eles aparecem em preço cheio, seja na Amazon, seja nas livrarias, e não como “médias”. Coloquemos então uma média de R$ 79,90 para lançamentos no país. Ora, R$ 80 é, basicamente, o que um indivíduo de baixa renda, e até de classe média-baixa, tem como recurso para a dita “feira” da semana. A fixação do desconto não dará acesso aos lançamentos, pelo contrário, dificultará ainda mais o acesso dos indivíduos, principalmente daqueles com recursos menores, aos lançamentos no país.
Ora, meu Deus, em última análise, o que dá o tom para o sucesso desse mercado editorial é a venda dos livros para o consumidor final, isto é, mais pessoas comprando livros. Toda política que dificulta e encarece o livro desestimula a cultura de leitura e o acesso inicial de novos leitores. É uma utopia — das mais vagabundas — achar que jovens de nosso século, com todos os entretenimentos mais baratos a seus dispores, como Netflix, Prime Video etc., com centenas de filmes e séries o alcance de meia dúzia de cliques, sem uma cultura forte de leitura em seu encalço, gastará R$ 80 com um único livro na livraria do centro da cidade. Os livros no Brasil são caros, e isso tem muitos porquês, mas basicamente ele está relacionado à baixa tiragem (impressão) de livros — o que encarece o produto, pois diminui a margem de lucro das editoras. A baixa tiragem, obviamente, está relacionada à pouca demanda, que, por sua vez, está diretamente ligada a uma cultura que não privilegia a leitura.
Por esses motivos, a dita lei, conhecida agora como “Lei Cortez” — em homenagem ao livreiro e editor José Xavier Cortez, falecido em 2021 —, falha em seu ponto inicial e mais fundamental, isto é, afasta leitores e diminui o acesso aos livros. Os livreiros e políticos defensores dessa lei, ao usarem países que têm esse controle como exemplo de sucesso, esquecem-se de mencionar quantas pessoas leem e naturalmente consomem livros nesses países, em comparação ao Brasil. Pois bem, deixe-me fazê-lo: a leitura em países como França, Espanha e Itália são aspectos longínquos de uma cultura voltada aos livros e à alta cultura literária. Segundo o Centro Nacional do Livro (CNL) — instituição francesa —, 88% dos franceses se declaram leitores, com uma média anual de leitura de 21 livros. No Brasil, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro em 2020, 52% declaram-se leitores, com uma média anual de 5 livros. No entanto, esses dados podem ser muito piores, pois hoje a principal empresa de pesquisa do mercado livreiro no Brasil é a Nielsen BookData, empresa germânico-americana utilizada pelas principais pesquisas de mercado livreiro no mundo. É justamente ela que, a serviço da Câmara Brasileira do Livro (CBL), em 2023, chegou ao assustador número de que apenas 16% da população adulta brasileira realmente é consumidora de livros, isto é, compraram ao menos um livro nos últimos 12 meses.
Ou seja, ainda que o controle de preços nos citados países estrangeiros também influencie negativamente em alguma medida o acesso aos livros, os arcabouços culturais pró-livro deixam a situação muito menos calamitosa do que seria no Brasil: com 88% de leitores, podemos seguramente afirmar que o francês médio tende a ler; o brasileiro, por sua via, não. Ao todo, 84% da população brasileira não comprou sequer um livro em 12 meses, aponta a pesquisa da Nielsen BookData, é quase a mesma porcentagem que há de leitores na França. Uso aqui apenas a França como medida de análise e comparação, mas fica claro que ombrear esses países sem o devido conhecimento dos detalhes basais é desonestidade pura.
O brasileiro não lê
Mas ainda temos mais dados a serem analisados. Daqueles adultos consumidores de livros no Brasil, isto é, cerca de 25 milhões, 69% compraram de um a cinco livros no ano, e apenas 8% compraram 16 ou mais no espaço de 12 meses. Ou seja, na base da problemática do livro no país está uma cultura inculta, a incessibilidade e puro desinteresse por livros. Ora, desestimular, ou melhor, proibir descontos maiores para o consumidor final inevitavelmente piorará muito esse já parco interesse e acesso à leitura no Brasil. O leitor que não tem R$ 80 para comprar um lançamento na Amazon, também não terá os mesmo R$ 80 para comprar na livraria. Tabelar descontos não ajudará no problema central da venda de livros no Brasil. Isso é óbvio demais, mas aqui precisa ser dito. E aí que entram as velhas regras de mercado que também precisamos lembrar aqui: preços altos gerarão quedas na demanda; as quedas de demanda exigirão o controle fiscal das editoras que será exercido pela diminuição das tiragens dos livros; e a diminuição das tiragens aumentará os preços unitários dos títulos, o que, por sua vez, inviabilizará ainda mais o acesso aos livros e aos leitores de baixa renda. Está aí a conta inevitável do protecionismo. O controle nos descontos dos lançamentos gerará queda nas vendas. A queda nas vendas, ao fim, levará ao aumento inevitável dos preços dos livros.
Como dito acima, muitos defensores da Lei Cortez estão se apoiando na ideia de que muitos países de grande poder de riqueza utilizam essa lei ou outras parecidas; tal argumento, que, per se, sequer é um argumento, não deveria lastrear o debate. Pois, na mesma esteira, muitos países que tinham leis de regulação de desconto com vistas a proteger as livrarias as revogaram, como é o caso da Irlanda, Finlândia, Suécia, Austrália e Reino Unido. Se a pergunta sobre o porquê de países como França, Dinamarca e Japão terem controles de preço sobre os livros e ainda prosperarem é válida — mascarando o fato de o público leitor ser amplamente maior do que no Brasil —, o inverso também serve: por que o Reino Unido, Austrália, Irlanda, Finlândia e Suécia revogaram essas leis?
A ideia fracassada
Por fim, a Lei Cortez é um retrocesso para o mercado livreiro do Brasil, pois ainda que num breve momento traga uma igualdade forçada de condições para o mercado, no fim ela acabará por afastar os leitores de baixo ou médio poder aquisitivo, além dos possíveis novos leitores. Sempre que escuto alguém defendendo o tabelamento de preços, logo imagino um adolescente com a camiseta da União Soviética, boina do Che Guevara e punho cerrado erguido em posição revolucionária, babando aos berros uma ideia econômica formidável e infalível que ele acabou de tirar das profundezas epifânicas do mais retrógrado marxismo de ensino médio: “Que tal se o Estado controlasse o preços das coisas numa grande planilha de Excel?”.
Por fim, o que tento fazer nesta coluna desde sempre é popularizar, ou, se quiserem, democratizar a leitura. Pois, no apagar das luzes, só faz sentido haver livrarias e editoras se houver antes leitores assíduos, que façam da leitura mais do que um passatempo, mas um modo de vida, de autoconhecimento e exploração da realidade. Qualquer lei que dificulte o acesso ao livro, que diminua descontos, que engesse preços e encareçam os exemplares, é um atentado à cultura como um todo. Num país onde temos cerca de 16% de reais leitores, impedir bons descontos se assemelha a dar um tiro de misericórdia no meio da testa do mercado editorial.
Não passa de uma retardada. É GÓPI!!!