Numa mesa de café, semana passada, fui questionado por uma mãe sobre o que pensava que ela deveria fazer para seu filho adolescente se interessar pela leitura mais do que pelo celular. Questão profunda sobre um problema também profundo, ao qual, disse a ela, não havia uma poção pronta para emprestar; iniciei, então, uma reflexão com ela que tentarei apresentar e aprofundar agora.
Não foram poucos os intelectuais que se dobraram sobre essas questões. Muitos livros já foram escritos sobre esse tema. Mortimer Adler talvez tenha sido o mais famoso autor sobre esse tema, com seus livros A Proposta Paidéia, Como Ler Livros e A Arte da Leitura; mas também outros eminentes pesquisadores nos deram outros ótimos livros, como Susan Wise Bauer e seu Como Educar sua Mente e Émile Faguet e A Arte de Ler. Até C. S. Lewis se aventurou nessa onda de tentar encontrar um método e deu conselhos preciosos para aqueles que querem fazer da leitura um hábito em Como Cultivar uma Vida de Leitura. Entretanto, nenhum desses se debateu com a crise que assola não somente os potenciais leitores, mas a humanidade como um todo: a crise da distração tecnológica. No fundo, a pergunta daquela mãe foi a seguinte: “O que fazer para ser um leitor nos dias de smartphones?”
Confesso que sou radical quanto a isso: acredito piamente que um dos males mais profundos de nossos dias seja a nossa incapacidade psicológica e até mesmo moral de lidar com as distrações tecnológicas que nos cercam. E antes que este texto pareça alguma defesa da idade média social ou, quiçá, um manifesto contra os smartphones, adianto que não se trata disso. Estou falando do eterno problema em nos regrar, de tratar os acessórios como necessidades profundas, de focar nossas mentes no que determinamos. Tire o smartphone de um jovem desfocado, e ele se distrairá com um mosquito, ou os jeitos peculiares de um transeunte. No entanto, não tenho dúvida alguma de que o principal inimigo da leitura, em nossos dias, é nosso descontrole ante as mídias sociais e as tecnologias que as envolvem.
Se buscarmos agora no Google as palavras “leituras” e “smartphone”, por exemplo, encontraremos ao menos uma dúzia de matérias dizendo que os smartphones, na realidade, são amigos da leitura — do que discordo frontalmente. Baseado em minha experiência profissional e como leitor assíduo, além de conversas com amigos do mundo editorial e pedagógico, os smartphones acabam influenciando negativamente sim na leitura e na concentração geral, mesmo quando tais leituras são feitas digitalmente nos próprios celulares. Parece-me ser um esforço tolo tentar vender a ideia de que um aparelho que carrega um universo de distrações e funcionalidades difusas seja um bom meio de leitura, atividade que requer foco, disciplina e interesse dedicado. Um estudo de Gloria Mark, titular do Departamento de Informática da Universidade da Califórnia Irvine, afirma que nós buscamos nos celulares uma compensação psicológica cerca de 80 a 110 vezes ao dia. Além disso, há um interessante estudo assinado por Mark e mais quatro pesquisadores — Neurotics Can’t Focus: An in situ Study of Online Multitasking in the Workplace — no qual chegaram à conclusão de que, trabalhando em frente a um computador, mudamos de foco a cada 47 segundos aproximadamente.
Assim sendo, minha pergunta àquela mãe foi simples: “Ele tem dificuldade para passar horas em seu celular ou computador?” Prontamente, ela disse que não, que, na verdade, o filho passava quase a maioria do tempo diário dedicado ao smartphone. Então, descobrimos um dos problemas daquele garoto. Por questões físicas e temporais é impossível que surja um leitor real sem que ele dome sua vontade, sem que ele se dedique ao livro, ainda que inicialmente na base do esforço incômodo. Além da óbvia sociedade da ansiedade no qual vivemos, sem dúvida, pela imersão absurda que temos diariamente em mídias diversas, temos também o claro problema da falta de foco em tudo que fazemos, aquilo que os especialistas chamam de monkey mind, isto é, aquela mente que pula de um foco a outro sem nunca terminar nada em nenhuma das multitarefas e multiobservações iniciadas.
Nos dias de hoje, prevalece a rapidez informativa, aliada a uma realidade que não nos pede esforço algum de resiliência ante uma exposição mais demorada sobre o que quer que seja, bastando arrastar para cima para buscar um conteúdo mais raso, rápido e agradável. Como uma sociedade assim poderia formar leitores de Machado de Assis e suas descrições filosóficas cheias de referências latinas e gregas? Como indivíduos que se acostumaram a assistir e a se contentar com conteúdos de um minuto e meio podem se dedicar dias ou meses na leitura morosa de Os Miseráveis, de Victor Hugo? A única maneira, disse, então, à mãe, é que seu filho reeduque a sua vontade, respeitando duramente o que racionalmente decidir ser o melhor — naquele contexto, a leitura.
O que perdemos de vista, nesse mundo da leitura, é que o primeiro ato de ler não é escolher um livro, ou até mesmo abri-lo e lê-lo, mas sim a disposição mental que envergamos a esse fim antes mesmo de ter algum livro para ler. Técnicas de leitura, explanações sobre a arte de ler, ou até mesmo criar um ambiente silencioso e sem distrações são coisas que arrumamos para adiar ou tentar convencer-nos a ler. Se você não estiver convicto e dedicado mentalmente a começar a ler algo, nem mesmo a biblioteca do desenho A Bela e a Fera o fará abrir um livro.
Se não estamos intelectualmente e, até mesmo, emocionalmente persuadidos de que a leitura pode me apresentar uma realidade mais profunda, mais detalhada e expansiva, de que esse hábito pode nos dar um panorama da existência mais completa e prazeres mais permanentes que um reels, além de nos preparar humanamente para acessar a sociedade e a civilização para além das aparências e das distrações e se não estivermos convencidos ou seduzidos por essa sinopse do que é a vida de leitura jamais inclinaremos nossas vontades para esse fim. Para fazer algo devemos ou ser coagidos ou estar convencidos de seu benefício, e ainda que a coação possa funcionar para alguns, na minha opinião, no fim, a força só faz afastar e não aproximar.
E aí está o principal trabalho dos pais, dos educadores e dos entusiastas da leitura: convencer as crianças e os jovens da necessidade da leitura e de seus benefícios inerentes. Mas, se as tecnologias da futilidade midiática, de alguma maneira, figuram como inimigas da leitura, eu cedo um pouco aqui e admito que de uma forma específica elas cada vez mais figurarão como propulsoras da leitura, seja pelos “booktubers” que propagandeiam livros e fazem da leitura um produto mais juvenil e palatável, seja pela ansiedade psicológica e social que o mundo das timelines engendram. Por isso, apesar do que disse até aqui, sou otimista com o nosso momento. Os problemas psicológicos e até mesmo cerebrais que tais tecnologias estão gerando, além da própria necessidade humana de buscar conhecer e ser feliz com profundidade, inevitavelmente desembocará nos livros. Como disse em minha coluna sobre a Bienal do Livro, o público jovem que lê com entusiasmo — ainda que a maioria se interesse por literaturas pueris — é cada vez maior. O livro ainda é o repouso de desaceleração do espírito humano, de mergulho íntimo no conhecimento, de ampliação das percepções e dos gozos. O livro não é somente um bálsamo completo, como um dessossego completo, seja para se divertir ou se indignar. Ninguém pode fazer isso, com mais detalhes, profundidade e retórica que um bom livro.
É missão de cada pai e mãe, mais do que dos professores, fazer de seus hábitos um aperitivo para os futuros hábitos de seus filhos. Pais que querem fazer de seus leitores, mas que não se dedicam a isso, soam como banais e contraditórios; e, sejamos sinceros, no século XXI a desculpa da ignorância e falta de oportunidade de aprendizagem já não cabe mais.
Criar interesse, educar a vontade, aprofundar-se conscientemente na leitura são as três chaves a para aqueles que querem ser leitores. E aqui vai um paradoxo: esqueça, previamente, toda essa pompa erudita, estéticas tolas que cercam a leitura e o leitor com uma capa de exclusividade gourmet; um leitor o é sendo gari ou ministro de Estado, um presidiário ou um acadêmico. Nesse sentido nada é mais democrático que a leitura; porém, não confunda o termo “democrático” com “fácil”, pois não é: ler demanda disposição real, o que torna a atividade de certa maneira “difícil”, afinal, o que é mais fácil, concentrar-se num bom texto ou arrastar mecanicamente para cima o dedo no celular? Ler nunca foi para todos, não exatamente porque não pode ser, mas porque nem todos querem pagar o preço necessário para se tornar um leitor.
Devemos ler, mais do que para “arranjar bom emprego”, “passar na prova”, mas para sermos mais completos, em suma, menos mesquinhos e mais profundos. Estou convencido de que, atualmente, o controle que temos sobre as redes e mídias é que ditam como somos socialmente: dependentes e rasos, ou incorporados na realidade digital, mas equilibrados e profundos. Tenha sim um bom smartphone em seu bolso, mas também um relógio analógico em seu pulso. Esse equilíbrio pode ajudar em tudo nos dias atuais. Ler é uma contínua educação psicológica, um esforço perene de direção da razão, e, por que não, um verdadeiro libertar-se da massificação digital de nossos dias.
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