Na minha saga de ler distopias, deparei-me recentemente com uma do estilo escrita por uma japonesa. Confesso não me recordar se já havia lido algum romance ou escrito de um nipônico; acredito que não. Não que isso importe muito, a literatura é o único cosmopolitismo no qual acredito de verdade e, confesso, Yoko Ogawa e seu bom A Polícia da Memória me surpreenderam bastante. Ambientado numa ilha japonesa, sem data definida, mas, ao que parece, na segunda metade do século 20, a trama se desenrola de forma bastante fluida, ainda que diferente, a começar pela não nomeação dos personagens — o que, no começo, é um tanto estranho, mas, aos poucos, vamos nos acostumando. Por se tratar de um romance feito para analisar, em princípio, a mente e as ações dos indivíduos sob um peso estafante de uma “Polícia Secreta” de um Estado totalitário, soa-nos muito incomum que a descrição política desse Estado e da própria polícia pareça não ser sequer o quinto ou sexto foco da trama.
Ogawa prefere, antes, olhar para a vida cotidiana da protagonista, que tem seu círculo de vivência íntima explorado em relação ao crescente clima ditatorial na ilha; diga-se com justiça que a autora faz essa savana descritiva de forma hábil, ainda que, por vezes, relapsa — e como veremos adiante, propositalmente relapsa. A relação da protagonista com a mãe e o pai, que são tragados pela máquina de Estado, e, posteriormente, com o seu editor — a protagonista é uma romancista — e um velho amigo da família, denominado pela escritora apenas como “Velho”, é o dito “círculo de vivência íntima” citado acima, circulo esse explorado durante todo o livro. Tudo que acontece no romance distópico está relacionado à perda gradual e constante da memória dos cidadãos daquela ilha, e a autora não se preocupa em nos dar os modos pelos quais essas memórias são fisgadas, apenas deixa subentender que é por meio de uma ciência genética obscura praticada pela Polícia Secreta. Tudo, literalmente tudo, pode ser esquecido naquela ilha, de objetos, conceitos até partes do corpo. Os esquecimentos, isso sim é bem descrito nos contextos da trama, se dá em busca de controle social pela ditadura.
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Na ilha, há aqueles — inclusive a mãe da protagonista e o seu editor — que não são afetados pelos esquecimentos, o que os tornam dissidentes perigosos ao Estado e sua polícia. Percebam, inclusive, que o Estado só existe no romance através da sua Polícia Secreta. Em nenhum momento a protagonista cita de leve, ou sequer menciona de passagem, um poder político corporificado em um partido, um ditador ou qualquer coisa do tipo; não se sabe, e a autora não quis desenvolver também, como, por quem, ou por que, as decisões de esquecimento de algo são tomadas. O Estado é corporificado na trama somente por meio da força policialesca, e a força distópica dos soldados são, ali, o próprio Estado.
São notórias duas coisas centrais nesse romance: (1) a autora quis escrever uma distopia focada na vivência cotidiana de uma sociedade ditatorial. Não importa a Ogawa, como importou para Aldous Huxley, George Orwell e Karin Boye, por exemplo, explorar as políticas e modos sociais de dominância do aparato público e privado de um país sob o peso da tirania, mas antes como tais pessoas comuns reagiriam e absorveriam tais comandos e, no caso da protagonista dessa obra, a sua passividade final ante o seu destino; (2) a autora claramente usa uma descrição romantizada, e por “romântico” aqui me refiro ao estilo literário mesmo. Por vezes, lembrou-me, de relance, do estilo de José de Alencar, carregado de observações idílicas de algo que estava mais em suas ideias do que no mundo factual, tornando suas descrições não só ocas de significado, como de aplicação. O texto de Ogawa reveste-se assim de uma linguagem poética para dar profundidade à psicologia por ela explorada. Se a descrição sociológica falta ao livro, a poética da absorção totalitária da alma humana, dos costumes e liberdades individuais, sobra.
O que a Polícia da Memória tem a oferecer
Por essas e outras, A Polícia da Memória é a distopia mais diferente que li em minha vida. Trata-se de uma distopia do espírito, um romance que busca captar aquilo que é roubado pelos ditadores no mais íntimo, e não exatamente aquilo que é tangível apenas. A denúncia do texto está num plano mais complexo que a política. Consiste no controle da intimidade mais pessoal — a redundância é proposital — dos indivíduos, isto é, as suas capacidades de se lembrarem e de reviverem sensações por meio da memória. Poucas coisas são mais íntimas e profundas do que nossos baús de memórias, nossas recordações! Yoko Ogawa mostra-nos que a consequência mais drástica de uma ditadura não é exatamente a perda do sustento e do poder de escolha, mas da liberdade mental. Muitos dizem que um governo distópico pode roubar tudo, menos a alma livre, capaz de se recordar e protestar intimamente ante os abusos de um tirano. Ogawa diz que não, nem mesmo nossas lembranças e liberdades psicológicas estão garantidas ante um poder totalitário.
A autora, assim, inverte o panorama ocidental de análise do totalitarismo e sua expansão de poderio diante das mentes dos indivíduos. Acostumamo-nos a pensar que a dominância sobre o homem comum se dá por meio das restrições materiais e pragmáticas, a perda do poder de escolha política, de aquisição material e expressão pública, mas a autora japonesa mostra que tal dominância despótica se dá de dentro para fora, pois sob ela perdemos gradualmente a nossa capacidade de pensar claramente, de nos recordarmos de quem somos, de reavermos a liberdade que por direito simples devemos ter. Nos mostra Ogawa que, perdendo nossa estrutura mental mais basilar, a memória de quem nós somos, a dominância material passa a ser até relativo. Na ilha, as pessoas continuam trabalhando, tendo mercados e certas possibilidades de divertimento. Salvo algumas restrições, como a perda gradual de qualidade e a variedade de alimentos e vestimentas, além da possibilidade legal de sair da ilha, os indivíduos levam suas existências de modo mais ou menos normal, adequando suas mentes às restrições novas. É como se fosse algo cosmológico, isto é, impossível de ser mudado. A ditadura que Yoko Ogawa denuncia é essencialmente psicológica e espiritual.
Editado pela Editora Estação Liberdade, que já lançou outras obras nipônicas, a tradução do original japonês é assinada por Andrei Cunha, acadêmico especialista em literatura japonesa. Confesso que a minha única crítica ao texto está no estilo da escrita da obra: demasiado romântico, como disse acima. Talvez, na tentativa de alcançar uma áurea poética e profunda ao texto, a autora se deteve em detalhes supérfluos na narrativa, assim como floreou demasiadamente a linguagem a fim de dar contornos bucólicos à trama. Ao fim — e aqui já não é mais uma crítica à escrita, mas meramente uma constatação do propósito da autora —, a sensação perene na leitura é que sempre falta algo para vermos o todo da obra. Se isso é uma falha estrutural e roteirística da autora, não se sabe ao certo, a mim tal vazio coube de forma subliminar e maravilhosa à proposta do livro. A obra, que fala sobre o esquecimento, acaba por encerrar na personagem principal o sumiço completo. E, no leitor, a sensação de que as bordas por onde enxergamos a estória de Ogawa está constantemente se fechando, uma espécie de anuviamento das percepções. A clareza das exposições sai do campo visual, tornando-se cada vez mais interna, conceitual. No fim, as bordas se fecham e o leitor acaba consumido pelo mesmo oco de porquês pelos quais assistimos, na trama, a protagonista passar. A narração com ausência de clareza, por fim, torna-se um adequado componente de um livro que versa sobre o esquecimento. Ou seja, a sensação de ausência constante, de falta de contexto narrativo, de explicações estruturais, de aclaramento das ações dos personagens, é, ao meu ver, proposital. A angústia do vazio e da falta que a autora determina na protagonista da obra, o leitor também sente, de alguma forma, ao navegar a narrativa.
No fim, não diria que essa distopia é menor ou maior que os clássicos já conhecidos, diria apenas que ela é estreitamente diferente das as demais que eu li no estilo. Talvez até tenhamos aqui uma variação nova desse gênero que tanto me excita, e, por isso, com certeza, voltarei a ler Yoko Ogawa no futuro.
Muito interessante. Parece estranho e dá vontade de ler!