Não é preciso ser um gênio para perceber que estamos entrando numa era de crescentes restrições às liberdades, e nem estou falando muito de nosso país não, estou falando de mundo. Ao que parece, democracia não é mais o que significava ser. Outrora “democracia” significou o império das leis com enfoque na proteção dos indivíduos e suas liberdades ante o Estado que, naturalmente, busca a massificação e o controle; paulatinamente, como previram vários romancistas em suas distopias, o Estado começou um trabalho de redesenho do sentido de democracia e liberdade. São tantas as nuances e meios pelos quais isso se deu que me restringirei a poucos pontos a fim de exemplificar tal corrupção.
A democracia — no pós anos 2000 — começou a trocar os indivíduos pelo colosso, não que o povo, enquanto conglomerado de indivíduos, não tivesse espaço na democracia liberal de outrora, no entanto, no conceito de democracia liberal, tinha-se a plena noção de que o que formava tal coletivo não passava de uma reunião de indivíduos em suas especificidades e autonomias, tal noção de individualidade e sua importância ante a comunidade aos poucos se esvaiu em troca de reivindicações e retóricas coletivistas. Existe um bom livro sobre essa temática específica que recomendo efusivamente: O Essencial sobre o Coletivismo, do meu amigo filósofo Dennys Xavier e de Priscila Cysneiros.
Outro ponto dessa corruptela da democracia liberal foi tornar as letras constitucionais e os pressupostos éticos universais servos de visões ideológicas de mundo, e não princípios organizacionais, minimamente justos. Muitos juízes, de todo o mundo, ao lerem as constituições de suas nações, perguntam antes aos seus valores ideológicos como dobrar a palavra consagrada para satisfazer sua turba e ego politizado, em vez de envergar sua vontade em prol do que foi determinado na Carta Magna.
+ Leia mais notícias de Cultura em Oeste
Para finalizar tais pontos, a democracia se assentava na certeza comum de que as liberdades básicas de expressão, culto e consciência eram princípios régios de uma sociedade minimamente autônoma, livre e justa. Hoje em dia, essas liberdades — principalmente a de expressão — vêm tornando-se para os tecnos-autoritários do Estado um problema a ser controlado e, quando não, subjugado.
Exemplo de transdemocracia
Tais análises críticas permeiam, ainda que não tão resumidas assim, o bom livro do russo Sergei Guriev, economista brilhante e inimigo público de Vladmir Putin. Democracia Fake: a Metamorfose da Tirania no Século 21 é uma tentativa virtuosa e, podemos dizer, poderosa, de entender tal transformação, não, melhor, corrosão do sentido e prática da democracia no mundo contemporâneo. Li-o com determinada ferocidade, pois esse é um tema que venho estudando há um tempo considerável já. A conclusão master da obra, podemos sumarizar, é que existe um novo autoritarismo no mundo, e nem todos estão conseguindo notá-lo de forma efetiva, pois tal fenômeno neoditatorial é multifaces e gradual, ainda que funcione sobre as já conhecidas engrenagens do estatismo coletivista e retórica ideológica de massa, ele usa de meios tecnológicos e retóricas ajustadas para se perpetuar.
Tal cegueira, para além daquela que é consentida, nem sempre é um ato de desfaçatez, mostra-nos Sergei. Muitas pessoas não conseguem ver a China, por exemplo, como um país ditatorial. Outros, por sua via, consideram a Rússia um país democrático, até mesmo gozador daquilo que chamamos de “liberdade ocidentalizada”. Ora, há poucos meses, muitos ainda denominavam a Venezuela de “democracia” mesmo sob a crescente autoritária dos últimos dez anos naquele país. O Ocidente está confundindo conforto imbecilizante com liberdade, o que houve no século 21, de forma abrangente, foi um acesso maciço às redes sociais e tecnologias diversas que deu aos indivíduos certa maleabilidade social, acessos diversos, sensação de globalização, além de entretenimento barato, todavia, nada disso é, per se, liberdade em seu sentido conceitual e, muito menos, prático.
Leia mais:
Na China, atualmente, é muito fácil ter acesso a redes de internet, smartphones modernos e entretenimentos baseados nessas tecnologias, mas o Estado comunista ainda vigia os indivíduos de forma ostensiva; constantemente o governo central bane do país empresas de tecnologia que não concordam com seus sistemas de controle e não se dobram ante suas exigências. Recentemente virou notícia o fato do aplicativo Hallow, o maior aplicativo católico do mundo, ter sido banido da China por conter “conteúdo ilegal”, que seria, a saber, orações e doutrinas do catolicismo romano — qualquer paralelo nacional não é mera coincidência ou exagero retórico.
Mais sobre o livro de Sergei Guriev
O ponto do autor russo é que a nova ditadura tem um modus operandi diferente daquela usada pelo comunismo e pelo fascismo no século passado. Hoje as novas ditaduras não abrem mão de duas coisas primordialmente, o título de “democracia” a fim de manter certo status internacional, bem como o controle das massas de forma aplumada, porém, cada vez mais sufocante.
A gradação desse controle é variável e progressiva como disse, pode ir do banimento, vigilância ou dificultação de acesso à internet e conteúdos determinados, até prisões por crimes inventados, torturas e mortes encomendadas de opositores. Porém, no geral, há um paradoxal e sensível abrandamento das táticas drásticas na vida pública, ainda que sob a sensação de diminuição das liberdades individuais.
Leia também: “‘A democracia brasileira vive uma crise de legitimidade'”
Além disso, o Estado age com uma postura menos virulenta, permite-se, em geral, determinada liberdade cultural e, a reboque, um punhado controlado de liberdade de expressão, em determinados casos, toleram-se até modos alternativos de sexualidade e visões políticas, entretanto, no final do dia, tudo está dentro de um limite real regulável conforme determinado pelo Estado. Em geral, tais permissões são vigentes até o Estado, ou o líder, sentir-se ameaçado ou prever determinadas mudanças de posturas, atos e crenças dos indivíduos que poderiam vir a ameaçá-lo de alguma maneira.
Uma análise sobre Estado e democracia
Em suma, conclui Sergei, a ditadura moderna se transveste de democracia para galgar status internacional e enganar lacaios, enquanto busca, por meio da tecnologia e da tática do “sapo na panela” tomar a liberdade individual e transformá-la em sujeição consentida. O economista russo alerta-nos que o autoritarismo está aumentando no Ocidente, o Estado está cada vez mais empoderado, tomando a centralidade da vida comunitária por vias tecnológicas e retóricas ideológicas.
“[Um ditador transdemocrático] surge sempre dizendo que irá tolher nossas liberdades em troca de um bem social que somente ele pode nos dar”
Pedro Henrique Alves
A receita é velha, cresce-se o Estado, diminui-se o indivíduo, massifica-se a vida comum, cala-se a expressão livre e encarceram-se os dissidentes, mas o ponto é que nesse bolo despótico, ainda que a receita seja antiga, os ingredientes são novos, pois agora eles fazem tudo isso com biscoitinhos de adestramento tecnológicos, dão conforto, relativa segurança social e econômica, em troca de sua alma livre. E assim nasce um simulacro de benesse democrática para assaltar nossa mais característica distinção humana, a consciência livre. Ou seja, na esteira das sandices de nossos dias, nasce a “transdemocracia”, aquela que se veste, se porta e se sente como democracia real, mas geneticamente não passa de uma ditadura montada com maquiagem, silicone e peruca.
Por fim, e aqui vai uma leve discordância com o autor russo, acho relativamente fácil reconhecer um ditador transdemocrático de nossos dias caso tenhamos uma rasteira autonomia intelectual, pois ele surge sempre dizendo que irá tolher nossas liberdades em troca de um bem social que somente ele pode nos dar. Ele nos dará informações confiáveis, ele nos ofertará candidatos seguros, sistemas de eleições infalíveis e até mesmo aplicativos melhores, elaborados pelo Estado; ele restringe nossos acessos às redes pelo nosso bem, derruba opositores e mídias críticas em nome da democracia e do bem coletivo, criminaliza ideias e cria uma retórica de extremismos para aqueles que não rezam suas cartilhas a fim de nos blindar de más influências. Em suma, ele é nosso sugar daddy econômico, político, social e, quiçá, espiritual.
No fim, a democracia real se verte numa miragem esfumaçada, num oco banal, em um belo prato de cocô coberto com chantily, mas quem liga, afinal temos conforto, pão e circo.