Clive Staples Lewis, comumente chamado de C. S. Lewis, é considerado um dos maiores pensadores do século 20, além de ter sido um exímio defensor do cristianismo, cujos pensamentos, histórias e reflexões continuam a impactar seus leitores. Lewis morreu em 22 de novembro de 1963, em Oxford, Reino Unido, mas, poucos anos antes de sua morte, escreveu um de seus livros mais surpreendentes.
Até que tenhamos rostos é considerado por muitos como a obra-prima de C. S. Lewis. Inclusive, há rumores de que John Ronald Reuel Tolkien (J. R. R. Tolkien), amigo do escritor e autor de obras como O Senhor dos Anéis, afirmou que esta é a melhor obra já escrita por ele. Além disso, esta é provavelmente a obra favorita do próprio Lewis.
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O livro é uma releitura do mito grego Cupido e Psique, recontado do ponto de vista de Orual, a irmã mais velha de Psique. Segundo Lewis, conforme uma edição do livro publicado pela editora Thomas Nelson Brasil, o mito que ele usou como referência pertence à obra Metamorfoses (também chamado de O Asno de Ouro), que fora escrita por Lucius Apuleio, que nasceu por volta de 125 d.C.
De acordo com C. S. Lewis, ele usou Apuleio “apenas como fonte”. “Apuleio foi, é claro, um gênio: mas, em relação ao meu trabalho, ele é uma fonte e não uma influência ou um modelo”, afirmou o escritor britânico.
Segundo o pastor norte-americano Gavin Ortlund, ao comentar a obra em um vídeo publicado para seu canal do YouTube, Truth Unites, mesmo com a ótima recepção de Tolkien e de alguns amigos de Lewis, o livro foi um fracasso comercial. Tal modo que o próprio autor confirmou que a obra foi “o único grande fracasso tanto com os críticos, quanto com o público”.
Mesmo que não tenha sido bem recebido à época, Até que tenhamos rostos conta com uma narrativa, e narradora, excelentes. Além da história em si ser cativante, a ambientação que Lewis cria para o seu reconto é capaz de cativar qualquer leitor.
Orual e seu conflito com os deuses
Orual, a protagonista do livro, inicia a obra com uma “queixa severa aos deuses”, e afirma que escreverá coisas que “ninguém que seja feliz se atreveria a escrever”.
“Agora sou velha e nada tenho a temer em relação à fúria dos deuses. Não tenho marido, nem filhos, tampouco um amigo a quem eles possam usar para me machucar. Meu corpo, este cadáver magro que ainda precisa ser lavado, alimentado e coberto com muitas mudas de roupas dia após dia, estes eles podem matar assim que quiserem. A sucessão já está arranjada. Minha coroa passa para meu sobrinho.
Estando, por todas essas razões, livre do medo, vou escrever neste livro coisas que ninguém que seja feliz se atreveria a escrever. Vou acusar os deuses; especialmente o deus que vive na Montanha Cinzenta. Em outras palavras, vou contar tudo que ele fez a mim desde o começo, como se estivesse apresentando minha queixa perante um juiz. Mas não há juízes entre deuses e homens, e o deus da montanha não me responderá. Os terrores e as pragas não são resposta.” (Lewis, 2021, p. 8)
As acusações de Orual contra os deuses e seu “desgosto” por eles, podem ser relacionados à história do personagem bíblico Jó. Por diversas vezes, ele irá questionar a Deus sobre o porquê de seu sofrimento, e até um desabafo para com o divino.
“A minha alma tem tédio da minha vida; darei livre curso à minha queixa, falarei na amargura da minha alma. Direi a Deus: Não me condenes; faze-me saber por que contendes comigo. Parece-te bem que me oprimas, que rejeites o trabalho das tuas mãos e resplandeças sobre o conselho dos ímpios? Tens tu porventura olhos de carne? Vês tu como vê o homem? São os teus dias como os dias do homem? Ou são os teus anos como os anos de um homem, para te informares da minha iniquidade, e averiguares o meu pecado? Bem sabes tu que eu não sou iníquo; todavia ninguém há que me livre da tua mão. As tuas mãos me fizeram e me formaram completamente; contudo me consomes” (Jó 10:1-8, Almeida Corrigida Fiel)
Orual é a filha mais velha do tirano rei de Glome, Trom, e irmã de Redival e da belíssima Psique. Orual é maltratada pelo rei, por ser “demasiadamente feia”, tão feia que “causaria espantos” em qualquer um que a visse. Psique é fruto de um casamento entre o rei e uma aliança com o reino de Caphad. Em diversos momentos do conto, Orual vai ressaltar o quão bela era Psique, ao ponto de sua beleza poder ser equiparada a de uma deusa.
C. S. Lewis: o amor, o místico e o real
Temas como verdadeiro e falso amor, inveja, ciúmes, identidade, fé e até mesmo o conflito entre o místico e o real são abordados na obra. O leitor vai acompanhar a trajetória de Orual, desde seu nascimento até sua velhice. Por diversos momentos, a protagonista irá descrever seus conflitos internos, incertezas sobre qual rumo tomar em sua vida, e dúvidas quanto o que “será melhor para Psique”.
Ao abordar os temas de “misticismo versus realidade”, uma figura essencial para a formação do pensamento e da crença de Orual será Raposa, um escravo grego que se tornou mestre e uma importante figura paterna à protagonista. Raposa é o típico filósofo de sua época, um grande pensador que aprecia mitos e poemas, mas os considera apenas como histórias para crianças.
Ao ler os relatos de Orual, o leitor irá perceber que a personagem, de fato, ama Psique, mas o “tipo” de amor que será demonstrado. Especialmente no clímax da obra, esse amor vai revelar-se bem mais complexo do que um simples “gosto de você”.
Por exemplo, quando Psique revelar que não poderá mais viver com Orual, porque agora está “casada” com um “amante misterioso, ‘divino'”, a protagonista terá uma reação bem negativa. Ela irá desacreditar do “deus-noivo” de Psique. Ela vai tentar trazer sua querida irmã de volta aos seus braços, por amor.
Àqueles que desejam compreender as “variantes do amor” apresentadas no livro, é recomendado a obra Os Quatro Amores, também de C. S. Lewis. Nesse livro, o escritor se propõe a explicar a definição de “afeição”, “amizade”, “eros” e “caridade”. Ele também aborda como cada um deles influencia o ser humano nos seus relacionamentos, seja com as pessoas, a natureza e, por ser de caráter cristão, com Deus.
Estêvão Júnior é estagiário da Revista Oeste em São Paulo. Sob supervisão de Anderson Scardoelli