Um documentário produzido pelo canal Spotniks mostra como os perfis de fofoca, agenciados por grandes empresas de marketing e entretenimento, influenciam milhões de brasileiros na internet. O lançamento do curta-metragem ocorreu neste sábado, 23, um dia depois que a estudante Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, cometeu suicídio por ser alvo de difamação do Choquei.
O Spotniks traz à superfície a relação dos influenciadores com os conglomerados de mídia digital. Esse tipo de parceria, em expansão no país, é capaz de gerar cifras bilionárias. Em 2021, por exemplo, 1/3 do investimento publicitário brasileiro ocorreu na internet. Naquele ano, cerca de R$ 7 bilhões foram despejados em propaganda.
O documento constata que parte considerável desse montante é dedicado à indústria do marketing de influência. Para ter uma ideia, esse segmento movimenta quase R$ 80 bilhões no mundo inteiro.
“Nossos influenciadores não só influenciam moda, comportamento e opinião política”, explica a apresentadora, Daniela Guaraná. “Eles também embolsam muito dinheiro em troca de likes e compartilhamentos.”
A disputa para chamar atenção do público resulta em atos esdrúxulos por parte dos influenciadores. É comum ver esses personagens reproduzindo vídeos de brigas entre celebridades, divulgando suas faturas de cartão de crédito e até mesmo difamando pessoas inocentes.
Como o Choquei impulsionou conteúdo falso sobre Jéssica Canedo
O caso mais recente de difamação nas redes sociais é o de Jéssica. Na sexta-feira, a jovem cometeu suicídio depois de se tornar alvo do Choquei.
Conhecido por compartilhar informações sem checagem, o Choquei divulgou imagens de supostos diálogos amorosos entre a estudante e o humorista Whindersson Nunes. Os dois negaram ter relação.
O leitor pode conferir a história completa sobre o Choquei e sobre Jéssica ao clicar neste link.
“Não faço ideia de quem seja essa moça, e isso é um print fake”, disse Whindersson, na ocasião. “Isso já passou do limite”, escreveu a jovem, no Instagram, dias antes de tirar a própria vida.
Como funciona a bilionária indústria dos influenciadores e dos perfis de fofoca
Em publicação no Twitter/X, o fundador do Spotniks, Rodrigo da Silva, explica a relação entre a morte de Jéssica e a indústria multimilionária de influenciadores digitais do Brasil.
- Essa mulher aqui se chama Fátima Pissarra. Fátima é a CEO da Mynd, a maior agência de marketing de influência do país – que Fátima construiu ao lado da cantora Preta Gil e do publicitário Carlos Scappini. Não é possível entender a internet brasileira sem conhecer a Mynd.
- A Mynd agencia mais de 400 influenciadores. Estão em seu catálogo nomes como Luísa Sonza, Pabllo Vittar, Cleo, Bela Gil, Pequena Lo, Deolane Bezerra, Esse Menino, Bruna Louise, Lexa, Yuri Marçal e Gil do Vigor, entre outros.
- Juntos, o elenco de influenciadores da Mynd conta com mais de 1 bilhão de seguidores — ou seja: é uma mina de ouro. Os clientes da Mynd incluem os maiores anunciantes do país, marcas de peso como Magazine Luiza, Americanas, Ambev, TV Globo, Amazon e C&A.
- A Mynd faturou mais de R$ 500 milhões em 2022. E a previsão é chegar a R$ 1,5 bi em 2025. Essa é a empresa mais relevante da história do marketing digital brasileiro.
Leia mais: “Caso Choquei e Jéssica Canedo: o que se sabe até o momento”
- E publicidade é só uma linha de receita: a Mynd também faz dinheiro através de um braço do grupo chamado House of Brands, focado em promover produtos (como perfumes, cremes hidratantes e maquiagens).
- Além das celebridades, a Mynd também promove páginas de fofoca, como: Fuxiquei, Fofoquei, Gina Indelicada, Diferentona, Otariano e Alfinetei. Elas fazem parte da Banca Digital, projeto da Mynd que reúne mais de 30 perfis de fofoca e centenas de milhões de seguidores.
- Entre os agenciados pela Mynd está a página “Garoto do Blog”. Há poucos dias, este perfil publicou um print falso com um diálogo de Whindersson Nunes com uma jovem chamada Jessica Vitória Canedo. Jessica tinha depressão e se suicidou após o episódio.
- O Choquei — que ajudou a impulsar o conteúdo falso – já foi agenciada pela Mynd, mas não aparece mais em seu catálogo. A Mynd está umbilicalmente ligada ao sucesso desses perfis.
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- O pulo do gato da Mynd é a distribuição do conteúdo produzido por seus influenciadores em forma de pirâmide. O sucesso do casting permite que a agência promova as mesmas campanhas em diferentes lugares; um processo que retroalimenta a sua relevância, capaz de viralizar marcas, assuntos e influenciadores. Quando os agenciados da Mynd publicam a mesma ação ao mesmo tempo, passam a impressão de que toda a internet está falando sobre a mesma coisa. Os seguidores entram com o engajamento; o restante fica com o algoritmo que, inundado de postagens sobre o mesmo assunto, dissemina ainda mais postagens sobre o conteúdo para fora da bolha. Ou seja: é viral, mas artificial.
- Por exemplo: a edição de 2021 da Farofa da Gkay reuniu influenciadores que, juntos, somavam mais de 334 milhões de seguidores. Boa parte deles eram da Mynd, como a própria Gkay. Esse batalhão de perfis foi capaz de impactar mais de 66 milhões de pessoas com posts sobre a festa.
- A edição de 2022 da Farofa — em um resort 5 estrelas, em Fortaleza – foi transmitida pelo Multishow. O custo do evento passou dos R$ 8 milhões, pagos por anunciantes de peso como Avon, Listerine, XP, Latam e Vivara.
- Com a máquina da maior agência de marketing de influência do país à disposição, o barulho é inevitável. No total, a cobertura de Multishow, Gshow e Globoplay resultou em 1,7 mil posts sobre a Farofa, que trouxeram mais de 400 milhões de visualizações para as marcas envolvidas. Por outro lado, os perfis de fofoca da Banca Digital tiveram mais de 300 milhões de impressões na cobertura da Farofa, impulsionando e retroalimentando a importância do evento.
- O mesmo processo acontece em festivais de música. Na última edição do Rock in Rio foram conectados pelo menos 100 agenciados da Mynd, de diferentes nichos e perfis, a 19 grandes marcas – da Coca-Cola ao Itaú. Onze músicos da agência se apresentaram no festival.
Entenda | A relação do Choquei com o PT
- É um círculo de impulsionamento. Em 2021, a Globo contratou o perfil Gina Indelicada, da Banca Digital, pra falar bem da novela Um Lugar ao Sol. Dias depois, o criador do perfil recebeu uma matéria elogiosa do Fantástico.
- A Mynd usa seus perfis de fofoca para impulsionar seus agenciados. O problema é que eles também são acusados de receber dinheiro para prejudicar personalidades públicas. Ou seja, em tese, são pagos para promover uma espiral de cancelamento.
- A Mynd nega que haja coordenação entre as páginas. Mas há controvérsias. Em 2021, a Aos Fatos analisou os posts de 24 perfis agenciados pela Mynd, no intervalo de uma semana, e constatou que quase a metade desse conteúdo apareceu em mais de um perfil.
Leia também: “Business da fofoca: as marcas que patrocinam o perfil Choquei”
- Entre os assuntos abordados pelo casting da Mynd, claro, estão tópicos políticos. E o impacto não é pequeno. Na última eleição, a cada três posts publicados sobre os presidenciáveis, um foi produzido por perfis ligados ao entretenimento.
- Por exemplo: em abril de 2022, a Mynd utilizou seus influenciadores (como Luísa Sonza, Pabllo Vittar e Gil do Vigor) na campanha #EhTudoOnline, estimulando jovens a tirarem o título de eleitor. Foi um sucesso.
- Para os críticos, o maior problema da Mynd é a falta de diversidade do seu casting. A ampla maioria dos seus agenciados possuem posicionamentos políticos muito parecidos e trabalham para impulsionar (e criticar) as mesmas ideias e os mesmos candidatos.
Para os críticos, o maior problema da Mynd é a falta de diversidade do seu casting.
— Rodrigo da Silva (@rodrigodasilva) December 23, 2023
A ampla maioria dos seus agenciados possuem posicionamentos políticos muito parecidos e trabalham para impulsionar (e criticar) as mesmas ideias e os mesmos candidatos. pic.twitter.com/FYwx4alJaU
- A Mynd, claro, não é a única empresa a atuar nesse setor. E o seu ramo de atividade não é ilegal. Pelo contrário: a agência é muito bem sucedida exatamente por fornecer o que as marcas procuram – relevância nas redes sociais. Por isso mesmo pode se dar ao luxo de faturar centenas de milhões de reais por ano. Mas esse debate pode ser um pouco mais profundo do que isso.
- No apagar das luzes, essa indústria tem à disposição uma máquina invejável de interferência no debate público, capaz de viralizar agendas e personagens, ideias e conceitos, muitas vezes artificialmente, dentro e fora do universo político. Mais do que isso: esse é um canhão de influência com o poder de impulsionar críticas e elogios; de proteger a imagem de marcas e agenciados, e destruir a reputação de pessoas inocentes. Agências como a Mynd podem até abrir mão disso, mas esse poder todo está lá, nas mãos de um punhado de publicitários que você nunca ouviu falar.
- No fim, mesmo que você não siga nenhum desses perfis, reconhecer o alcance dessas agendas, de forma transparente, pode ajudá-lo a manter uma relação mais saudável com as redes sociais. Boa parte do que viraliza na internet é gente de mentirinha produzindo polêmica de mentirinha, enquanto sustenta, de mentirinha, a imagens de bom moço pra vender Avon, Boticário, Ambev e C&A. Mas no meio dessas mentirinhas todas, altamente lucrativas, tem gente literalmente morrendo. E essa é a grande fofoca que você precisa saber.
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