Recentemente, Raul Martins, uma espécie de instagramer de livros — ou bookgramer, ou influenciador de leituras, ou ainda, coach literário — que acompanho, fez um post irônico sobre pessoas que dizem “ler muito”, enquanto estão consumindo, entre outras coisas A sutil arte de ligar o foda-se, de Mark Manson; Seja foda, de Caio Carneiro; É assim que acaba, de Colleen Hoover; Diário de uma paixão, de Nicholas Sparks; e Tudo é Rio, de Carla Madeira.
Apesar de ter rido com a postagem e concordar com sua gostosa “tirada de sarro” dos sucessos ocos de nosso mundo livreiro, tenho ponderações sobre tal postura. Mas, antes de discordar, deixe-me ser diplomático, pois eu gosto dos conteúdos do Raul e o acompanho há um bom tempo. Foi por meio dele que venci alguns preconceitos literários e até cinematográficos. Por exemplo: Stephen King, que não lia por opiniões de determinados sanctos literatos que o achavam “vulgar” e “simplório”, e a animação Up: Altas Aventuras, desenho que me fez chorar lágrimas héteros e acalentou minha vida pessoal de muitas maneiras. Martins realmente demonstra um conhecimento aprofundado de literatura e escrita criativa, além de uma capacidade de comunicação ímpar nas redes sociais; sendo assim, este texto não tem, de forma alguma, a intenção de diminuir sua atuação. De Mortimer Adler, passando por Northrop Frye, a Herald Bloom, muitos habitaram esse campo da análise crítica, manutenção de métodos de leitura e incentivo à prática de leitura de alta literatura. Sendo assim, Raul está cada vez mais se inserindo numa área nobre dos estudos e docência literária.
Todavia, vamos à discordância. Quem me segue aqui sabe que, quando não estou mesclando crítica política com indicação de livros, eu sustento a tese de que até mesmo a bula do Paracetamol pode ser um start real para uma vida de leituras, e boas leituras. Sei que já fui chacota em muitos grupos de inteligentinhos por aí, alguns me consideram um falso “crítico literário”, título esse que jamais me dei e nem sequer galguei.
Acredito que Raul e outros que vivem dessa espécie de curadoria/crítica literária, por vezes, perdem a mão e esquecem-se de que há processos diversos que formam um leitor, e que nem todos, quando crianças, adolescentes e jovens, tiveram pais, tios ou professores que incentivaram a vida de leitura, muito menos a leitura do O livro das virtudes, de William Bennett, ou a coleção de livros coloridos de Andrew Lang, ou ainda Hobbit e Senhor dos Anéis, de Tolkien. Muitos desses têm seu primeiro contato com livros a partir dos textos didáticos, e por pura força de obrigação escolar ou, quando muito, leem forçados para provas e vestibulares diversos. Por esse e outros problemas, a formação do gosto literário — principalmente no Brasil — depende de tantas variáveis e encruzilhadas, contextos familiares e sociais, tendências e costumes, que aquele mundo perfeito de leitores que só leem o que é bom e testado pelos críticos renomados, de Rodrigo Gurgel a Harold Bloom, na maioria das vezes, não passa de uma utopia.
“Quer dizer, então, gordinho sabichão, que não devemos oferecer Camões e Homero aos jovens?” Claro que não, o quanto antes os jovens se interessarem por ótimas obras literárias, melhor, mas tenhamos os pés no chão e estratégias, pois utopia é coisa de esquerdista; ora, se colocar Homero e Machado de Assis no Plano Nacional de Educação, e forçar professores a estudá-los em sala de aula, fosse o bastante, então há décadas seríamos o país da alta literatura. É preciso muito mais que leis ou imposições de alta literatura para se fazer bons leitores.
Ainda em minha tese marginal, acredito que toda leitura pode ser proveitosa ao criar familiaridade com a língua e o hábito da leitura; ler Seja foda pode ser um caminho para Crime e Castigo. Pela minha experiência, a leitura, quando bem feita, ainda que de um título ruim, gera no leitor uma disposição para ler naturalmente mais, pois — perdoem essa necessária redundância — quanto mais se lê mais treinado se torna no hábito da leitura. Da entonação à familiaridade com terminologias, sintaxes e admoestações da linguagem, tudo se desenvolve melhor quando se lê habitualmente. Assim como a memória, quando estimulada e treinada, tende a ser cada vez mais utilizada, o leitor que lê bem, ainda que livros ruins — em paralelo ao que nada ou pouco lê —, lerá cada vez melhor e mais, e falo isso sem estatísticas no rodapé, falo por experiência própria e por observação de vida — e sala de aula.
Quando pedia aos meus alunos a leitura de O Banquete, de Platão, por exemplo, os leitores de Harry Potter e 50 tons de Cinza demonstravam uma larga vantagem de entendimento, concentração e estímulo para a tarefa ante aqueles que não tinham — ou tinham pouco — o hábito de leitura. Como sempre perguntava a meus interlocutores nesse debate: é mais fácil forjar um leitor de bons livros a partir de um leitor de livros ruins, ou um leitor de livros bons a partir de um que nada lê em sua rotina de vida? Se abandonarmos aquela utopia que denunciei acima, a resposta torna-se muito óbvia.
Existe na leitura um processo que se assemelha à vida, o que tais críticos e coachs literários parecem se esquecer. Todos, em algum grau, passamos de atos, pensamentos e convicções imaturas, a atos, pensamentos e convicções mais maduras. Salvo patologias e problemas diversos de nosso dia, que vão de aporias da psique a distúrbios culturais e familiares, a maturidade tende a ser um processo natural para onde os seres humanos rumam. Eu, por exemplo, já li O Segredo, de cabo a rabo, aos meus quatorze anos, e o fiz depois que alguém por quem eu tinha grande consideração me recomendou. Por influência do grupo de oração do qual participei na adolescência, eu lia muitos livros devocionais católicos, alguns de caráter mais biográfico, mas nada que poderia ser considerado uma obra prima da literatura. Até que um dia um amigo, que ouviu Olavo de Carvalho recomendar Crime e Castigo, de Dostoiévski, leu a obra do russo e, mesmo entre dificuldades ao avançar o texto, comentava da profundidade dos diálogos e contextos abordados pelo autor. Pois bem, ele me convenceu mesmo sem saber: noutro dia fui a uma banca de jornal e comprei a versão pocket da LP&M do dito livro a R$ 28 e lembro-me de ter devorado a obra em menos de 4 dias.
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Jamais tinha passado perto de uma obra como aquela. Quando a li, tinha por volta de 17 anos. Hoje tenho a absoluta certeza de que, se não tivesse criado o hábito de leitura ainda que com livros ruins e medianos, se Crime e Castigo fosse, para todos os efeitos, uma das minhas primeiras experiências literárias, não acredito que teria ido além da página 10 ou 20 sob um esforço desinteressado e estafante. Talvez não fosse um leitor assíduo como hoje.
Vejam: não estou aqui para defender Seja Foda; eu estou aqui para pedir misericórdia, prudência e calma para com quem está lendo Nicholas Sparks e Colleen Hoover. Saber reconhecer um bom livro é o necessário passo seguinte para aqueles que abandonaram a “fase anal” da literatura pueril. Existe boa e má literatura, e isso não se discute aqui. Instiguem, sim, tais leitores de livros ruins a lerem bons livros, mas façam isso com inteligência e não com meras lições de moral e posturas de “o último virtuoso do baile”. Mesmo com essa tese que defendo, nunca indiquei livros que considerava ruins. Nunca indiquei Diário de uma Paixão a ninguém, pois, quando o li, considerei-o vazio de enredo e de um sentimentalismo que beirava a overdose de “lugar comum”, mas, se uma garota o estiver lendo na minha frente e eu tiver intimidade para tal, eu a aconselharei a conhecer depois o ótimo Morro dos Ventos Uivantes, livro mais rico em descrições e com um roteiro geral muito mais complexo e instigante; se a leitura for de 50 Tons de Cinza ou É Assim que Acaba, por que não mergulhar em águas mais profundas e desafiadoras e ler Édipo Rei, Madame Bovary e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Além de serem mais bem escritos, são mais referenciados, cânones mesmos, isto é, fundamentaram de muitas formas várias outras grandes obras de sucesso ao redor do mundo.
Por fim, o trabalho de Raul Martins de fomentar a leitura de bons livros, o senso crítico ante obras ocas ou simplórias é fenomenal e, de fato, um serviço que precisa ser prestado. Algo que, da minha forma, tento fazer também. Meu pedido é para não desanimarem os leitores que ainda estão nas literaturas rasas, ajam, antes, como guias ao invés de cruzados da alta literatura. Caros leitores, se o livro de sua cabeceira hoje for Tudo é Rio ou Um Amor para Recordar, quando terminá-los, deem uma olhada em Dom Casmurro, um dos textos mais elementares de nossa literatura nacional, uma leitura desafiadora, é verdade, mas feita para pessoas de envergadura e que não se deixam vencer por um desafio duro, sem falar que traz uma das dúvidas literárias mais cabulosas dos últimos 123 anos: afinal, Capitu traiu Bentinho?
Para fazer gostar de ler, a criança tem que ler muito gibi. Geralmente, os da Turma da Mônica (os quais deram uma porcarizada woke violenta de uns dois anos pra cá, mas enfim), mas qualquer gibi que a criança goste. Tendo familiaridade e facilidade de leitura, a criança vai ganhando outros textos, outros livros. Uma coisa é certa: obrigar pentelho a ler Machado de Assis e José de Alencar (literatura adulta do século XIX), é fazer com que menos uma criança tome gosto pela leitura.
Acho melhor ler alguma coisa do que não ler. Seus textos, sempre bons. Minha biblioteca tem pouco mais de mil livros (uns 1100). Acompanho vídeos de livros (Tatiana Feltrin, a melhor)
Sou assinante da Oeste desde sempre.
Adorei seu texto. Concordo plenamente. E digo por experiência própria, pois sempre gostei de ler e me recordo que desde pequena, lia os livros de faroeste (aqueles bem baratinhos de banca de jornal) que meu pai comprava, afinal era o que ele podia comprar.
Já li de tudo, desde livros de auto ajuda, até biografias densas, e a leitura, sem dúvida, é e continuará sendo o meu hobby preferido.
Ler abre a mente e os caminhos para o crescimento em todos os sentidos da vida.