Gosto de pensar que sou um leitor desprendido, gosto de ler, vez ou outra, algum livro só porque eu quero lê-lo, sem mais explicações eruditas para tal. Lembro-me de escolher livros na estante pelo simples traço estético de suas lombadas e, não raro, de me surpreender com ótimas leituras e novos autores. O Mundo Depois de Nós (Intrínseca), de Rumaan Alam, foi um desses.
+ Leia mais notícias de Cultura em Oeste
Achei a sinopse interessante, o conceito geral da trama, um suspense penetrante e, confesso, o meu fraco por “fins de mundos” me pegou. Isso foi o suficiente naquele instante, entrei na livraria de Juiz de Fora (MG) e comprei o livro — a Amazon levaria dez dias para entregar; desta vez, a livraria física me convenceu.
“Já adianto que, para o bem ou para o mal, o filme é fidedigno ao livro, coisa rara”
Pedro Henrique Alves
O livro é o roteiro geral do filme homônimo que habita o largo HD da Netflix e, como é praxe, só assisti depois de ler o livro. Já adianto que, para o bem ou para o mal, o filme é fidedigno ao livro, coisa rara. No entanto, como verão adiante em minha crítica, não sei ao certo se isso quer dizer que o filme é ou não “bom”.
Todavia, antes da minha crítica, devo dar as credenciais de propaganda da editora, pois o livro foi finalista do National Book Award e do Orwell Prize. O que, julgam muitos, é sinal de maestria literária e indicativo máximo de que todos deveriam reverenciar o livro de alguma maneira… KKK. Povo estranho… Vamos às minhas impressões.
As falhas de O Mundo Depois de Nós
O livro conta o fim de mundo ao estilo contemporâneo. Aliás, não sei se é realmente “o fim”, pois o livro não conta… ele não conta várias coisas. Sob a perspectiva de uma típica família moderna, pai e mãe relapsos, presos a seus dilemas, smartphones e problemas pessoais, filhos adolescentes passando por seus próprios embates da idade, todos num Arbinb em um canto remoto de Nova York, onde nem o 5G parece funcionar direito, até que algo começa a mudar. Um ataque estrangeiro, uma guerra biológica, uma insurreição terrorista, a segunda vinda de Cristo… Só Romaan Alam pode nos dizer, pois o livro não diz, isto é, no final, Romaan não nos diz… Sim, o spoiler de hoje é exatamente a falta de informação do roteiro geral — espero que me perdoem.
Mais artigos de Pedro Henrique Alves
A obra tem suas virtudes, mas comecemos com as faltas, o problema é que claramente o autor se perdeu durante o desenvolvimento da sua estória. Ele buscou na verborragia dar profundidade à trama e aos personagens, o que ele consegue com certa desenvoltura até a metade do livro mais ou menos, depois suas descrições e aprofundamentos começam a se tornar cansativos e repetitivos. Transformou o texto numa leitura arrastada.
“Uma das formas clássicas de mostrar falta de recurso, esgotamento mental ou literário é repetir a esmo informações já exploradas”
Pedro Henrique Alves
Por exemplo, talvez a cada três capítulos, ele sente necessidade de reafirmar o ateísmo de Ruth ou a descrença geral de Amanda. A todo momento é preciso notar o quão calmo e reflexivo é GH, ou ainda, falar da vontade envergonhada de fumar do marido de Amanda, Clay. Uma das formas clássicas de mostrar falta de recurso, esgotamento mental ou literário é repetir a esmo informações já exploradas, revirar situações a fim de dar tempo e linhas ao livro.
A sensação, depois da famigerada metade da obra, é que o autor não sabia bem o que fazer com a trama e, para isso, apostou numa narração excessiva e desnecessariamente densa a fim de dar complexidade e caçar um fim satisfatório. Muitos críticos que li disseram a palavrinha mágica que me faz ter ânsia e querer desistir da leitura de qualquer livro: a obra de Romaan, ao final, é “conceitual”, e por isso as descrições infindáveis e a verborragia se justificaria… Por Deus, o que significa uma “obra conceitual”?
O ponto bom do livro
O ponto bom — pois eu disse acima que havia virtudes — é a capacidade do autor de manter um constante suspense de fundo, o ambiente por ele criado é verdadeiramente enigmático, nisso não há crítica. Realmente, ele aguça nossa curiosidade, ao ponto de, várias vezes, eu me ver preso ao looping “vou ler só mais um capítulo”. Há sempre a sensação de algo por acontecer, uma situação prestes a aclarar tudo. É aí que vem a questão do “final em aberto” — se você assistiu ao filme, é assim também no livro —, aspecto que foi altamente criticado pelos leitores e telespectadores de uma forma geral.
“O livro é divertido, no geral, mas é óbvio que não é, nem de longe, excepcional”
Pedro Henrique Alves
No entanto, na minha opinião, essa característica deve ser a melhor parte da obra. Romaan apenas deu dicas e deixou o suspense por terminar e, se prestarmos atenção, ele descreve a psicologia envolvida num cataclisma, e não os eventos em si mesmos. O autor não mostra como tiveram início os acontecimentos que dão rumo à trama, como se desenvolveram e, se olharmos por esse prisma, seria óbvio que ele não nos daria o fechamento também. O foco do autor, me parece, é mostrar como se comportam os indivíduos numa situação apocalíptica onde as informações gerais do armagedon não estão disponíveis, somente os vislumbres e as conjecturas.
Leia mais:
Eu — como quase todos — gosto de finais fechados, mas aqui, neste roteiro, o final aberto caiu muito bem. O livro é divertido, no geral, mas é óbvio que não é, nem de longe, excepcional. Não deixa de ser um texto para perder boas horas de diversão, mas nada além disso. É bom dizer que o autor é filho de seu tempo e de sua agenda, aqui ou acolá ele deixa rastros de suas ideias políticas, mas tudo bem. No geral, apesar de seus defeitos de roteiro, Romaan criou uma estória instigante. Deixou sua assinatura política sem comprometer a obra, sem transformá-la numa agenda ideológica. Tenho a impressão de que seus próximos livros serão melhores. Essa é minha aposta.
Leia também: “As melhores, mais úteis e mais divertidas invenções de 2024”, reportagem de Dagomir Marquezi publicada na Edição 249 da Revista Oeste
Permita-me discordar ,pois vislumbrei outra abordagem, que modestamente me pareceu interessante. Entendi, entre outras coisas, a precariedade da convivência , da comunicação e das interpretações pelas pessoas , em face do colapso da internet e seus whatsApp’s , X e outras redes. Ninguém soube exatamente o quê estaria acontecendo devido à extrema dependência das pessoas atualmente desses mecanismos de comunicação, sem salvaguarda ou qualquer mecanismo de redundância que os substituam. Os personagens retratam os estereótipos atuais e seus apegos à essas verdades, nas quais acreditam sem que se necessite que expliquem ou justifiquem suas existências e pior, como o mundo poderá funcionar sem elas. Hoje, é sabido- e não é teoria de conspiração- essas grande empresas que dominam esses satélites e esses conhecimentos, possuem o poder de paralisar o planeta e seus arsenais são mais perigosos que os bélicos, pois simplesmente determinam quando e como tudo, absolutamente tudo, poderá parar de funcionar. Depois de nós é depois do fim dessas tecnologias: como seremos?