Um padre beberão, sodomita, fraco e de fé dúbia. Esse é o personagem central do romance de Graham Greene, O Poder e a Glória. No entanto, se você é um católico e já ficou incomodado com essa pequena descrição, calma, o livro é ótimo. Mas, antes de falar da profundidade e das qualidades do livro, tenho de dizer que há ainda mais uma profanação a ser aclarada: Greene era um confesso comunista e um católico dito “de IBGE”.
Pois bem, e vejam só a magia da literatura se materializando, esse homem, que pelo adesivos sociais por ele mesmo autocolados não pareceria, num primeiro instante, alguém digno de nota pela parcela conservadora e católica da sociedade, conseguiu brotar um dos romances mais belos já escritos na modernidade sobre o embate entre a fraqueza humana e o dever da honradez, entre a concupiscência — diriam os “zé teologuinhos” — e o desejo de santidade, ou seja, entre o sagrado e o profano, entre o bem e o mal. Como disse a um amigo, se eu pudesse dar um título para o que achei da obra de Greene, eu daria “Uma bela homenagem ao ser mais desprezível e encantador que existe: o homem”.
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O Poder e a Glória é um romance ambientado no México, durante os anos 1930, num período de perseguição religiosa intensa após a Revolução Mexicana, conhecida popularmente como Guerra Cristera. Aliás, fica a dica do ótimo filme de 2012 sobre esse tema: Cristiada, dirigido por Dean Wright.
“Nesse imbróglio civil-religioso, padres, freiras e fiéis católicos se viam num êxodo dentro de seu próprio país”
Mas, voltemos ao livro de Greene, nesse contexto de repressão, o governo mexicano toma medidas severas contra a Igreja Católica, buscando eliminar sua influência, seja por meio da presença mesma dos padres, bispos e religiosos consagrados, seja pelo aspecto cultural. Igrejas eram constantemente queimadas, quando não, usadas pelo Estado para outros fins. Nesse imbróglio civil-religioso, padres, freiras e fiéis católicos se viam num êxodo dentro de seu próprio país. Mas calma, como verão adiante, o livro é muito mais sobre questões existenciais do homem do que uma crítica social pura e simples, ainda que, como sempre, ela também exista.
A trama de O Poder e a Glória
A trama de O Poder e a Glória acompanha um sacerdote alcoólatra e em conflito com a fé que, apesar do risco envolvido em simplesmente estar naquela região de perseguição, continua exercendo seu ministério clandestinamente em aldeias e fazendas. Ele é conhecido apenas como o “padre fugitivo” ou “padre whisky”, apelido dado em virtude do vício em álcool que o aflige. Embora atormentado por seus próprios pecados e falhas pessoais — bebedeira, sodomia, covardia etc. — ele se vê compelido a continuar sua missão pastoral, administrando os sacramentos para as pessoas em necessidade, mesmo sabendo que a perseguição está cada vez mais perto.
O padre é perseguido por um ateu fanático e incansável, o tenente da polícia, um homem que enxerga na religião um obstáculo para o progresso da sociedade, um “ópio moral” que impede as pessoas de serem livres e dignas. Para o tenente, a captura do padre simboliza a luta do Estado contra a superstição e a ignorância, contra o cadeado religioso de mentes. Greene não explora muito esse aspecto, mas deixa entrever que a ira do tenente se dá por desilusão moral com o clero local durante sua juventude, seguido de uma consciência social crítica ante a extrema pobreza da região, contrastada pela abundância material da igreja.
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Durante sua jornada, o padre passa por várias provações que o levam a refletir sobre a própria fé, a mortalidade e o sentido do sacrifício. Os pontos altos dos diálogos e reflexões da narrativa estão em relacionar a apatia da fé do sacerdote, e um constante senso crítico de dever que ele carrega pelo seu cargo ordenado. Sua fé, ainda que fraca e fugidia, porém nunca totalmente esgotada, ininterruptamente o constrange por meio de sua consciência, em especial, naqueles momentos de maior angústia e desânimo.
Alerta de spoiler
No fim, o padre é traído por uma das pessoas que ajudou enquanto passava por um vilarejo, ele é denunciado e entregue ao tenente. Sua execução iminente o coloca diante de um dilema existencial: sente-se indigno e falho, mas também percebe que seu sofrimento e suas imperfeições pessoais fazem parte de sua missão de vida. Não há caminho para a glória que não passe pela penumbra cotidiana das escolhas morais, que não passe pelo autojulgamento, pela pobreza em seus inúmeros âmbitos e, por fim, pela morte.
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Ainda que o mais afortunado e santo dos homens pise esta terra, ele terá em seu encalço o dilema da incerteza, a corrosão da fragilidade moral humana, o medo do final. O fim do padre é angustiante, pois o único padre que restou na cidade além dele, o padre José, é um traidor da Igreja Católica, que, em troca de não ser morto, renunciou ao seu sacerdócio e, conforme mandado pelo Estado, se casou e não pode mais expressar sua fé publicamente e nem realizar nenhum rito, entre eles a confissão de um moribundo e a unção dos enfermos.
No entanto, mesmo sem a certeza de redenção, o “padre whisky” encontra paz ao aceitar seu destino. Seu último vislumbre não passa de uma profunda incerteza da salvação devido aos seus erros morais, mas segue a isso a certeza de uma misericórdia divina não plenamente explicável e um arrependimento profundo e sincero de seus passos até ali. No final, ainda havia fé no padre.
“Não é uma crítica social”
Assim, o livro não é uma crítica social ou apologética católica. Explora antes temas de fé, culpa, redenção e o sentido do martírio, abordando a complexidade da natureza humana e a tensão entre o sagrado e o profano. Greene, por fim, levanta questões profundas sobre a moralidade e a virtude, mostrando que o caminho para a glória espiritual é, muitas vezes, contraditório e marcado por imperfeições constantes.
Aí jaz o paradoxo profundo explorado pelo autor: o céu chama os imperfeitos à santidade, porém, o chamado encontra a debilidade moral dos homens que, não raro, se doam livremente aos erros e praticam-nos como se fossem bens infinitos, ainda que, no fim do dia, conscientemente ou não, desejem ser melhores e expurgar tais pecados pegajosos e vergonhosos. Ou seja, a contradição mesma do ser humano, um ser complicado e quase perfeitinho.
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O Poder e a Glória, um grande romance
O Poder e a Glória é considerado o grande romances do autor, refletindo seu próprio questionamento sobre religião e a fragilidade do ser humano. Como dito acima, Greene foi um católico débil que, na juventude, viu-se invadido pela inquietude das verdades infinitas, todavia, como bom militante esquerda, era materialista o bastante para criar dentro de si uma contradição latente e praticamente invencível entre o desejo do espírito e o da cerne, entre o sagrado e o estritamente profano, entre a justiça eterna e justiça social.
Esse é o melhor dos livros de Greene, sem dúvida, os demais não se destacam nos aspectos de escrita, reflexão profunda e descrição apurada, aspectos muito bem trabalhados nesse que aqui resenhamos. O Poder e a Glória alcançou o patamar das grandes obras literárias do século passado por méritos incontestáveis. É mais um daqueles clássicos esquecidos no Brasil e, ainda que conte com adaptações para o teatro e o cinema, raramente encontra-se nas listas dos “inteligentinhos” da literatura ou naquelas indicações pops no Instagram.
Por fim, leiam sem medo, trata-se de uma obra profunda, instigante e completa, com reflexões atemporais, pois, daqui a 200 anos, ou melhor, daqui a mil anos, o drama do “padre whisky” continuará sendo o drama de todos nós.
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