Os clássicos de nossa literatura têm uma riqueza diversa em sua composição. Por isso, apesar de todos os problemas ideológicos que rondam as nossas universidades, a Academia Brasileira de Letras, os críticos de revistas e os jornais especializados etc., podemos dizer que principalmente os clássicos sobreviveram a essas moléstias cansativas. O clássico por excelência de nossa literatura, para mim, ainda que haja contendas sérias nesse tema, é Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Entendo, porém, quem argumenta que esse posto é antes de Os Lusíadas de Camões — apesar do problema etnológico envolvido aí —, outros ainda, também com certa razão, dão tal cadeira a Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Mas Memórias Póstumas de Brás Cubas é diferente em muitas frentes que não são tangenciáveis por outros livros; deixe-me dizer algumas.
Ainda hoje, ao lermos Memórias Póstumas de Brás Cubas , percebemos um teor de “experimento” ali. Trata-se de uma obra cujo narrador e protagonista, já morto, conta-nos a sua vida, literalmente VIDA, pregressa; não como uma obra espírita, mas como uma narrativa de bar, tal como se estivéssemos sentados com o próprio morto, e ele nos contasse, de lembrança, como foi sua existência. Não, ele não está num Céu qualquer, muito menos no Limbo ou Inferno. Isso não é sequer vislumbrado na narrativa, e todo esforço que fizermos para solucionar tal dilema não passará de especulações que nem o próprio autor se interessou em vasculhar.
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Qual seria a vantagem de uma narrativa de alma? A sinceridade analítica de sua existência. Uma autobiografia que não se preocupa com posição social, colocação literária ou manchas no caráter. No entanto, ao mesmo tempo que a sinceridade do morto salta aos olhos no texto, ele ainda é cercado de certa característica típica dos vivos, como o esquecimento de alguns detalhes, o nome exato de um ou outro personagem, ou a sequência real dos acontecimentos narrados. Não raro, sentimentos se misturam àquela sinceridade desencarnada, deixando uma espécie de lamento no ar. O texto corre numa linha temporal crescente, mas que, assim como numa conversa qualquer, vez ou outra, é interrompido por uma lembrança de um passado já ultrapassado pela narrativa, ou por um adiantamento de um futuro ainda não alcançado pelo narrador.
Memórias Póstumas de Brás Cubas foi uma nova fase de Machado de Assis?
Há inúmeras edições — atuais e antigas — desse romance de Machado. Li a edição da Ateliê editorial, editora da qual sou confessamente um fã — e, mais de uma vez, elogiei aqui. Recomendo aos senhores(as) essa edição em particular também. Segundo Antônio Medina Rodrigues, dono de uma crítica cansativa e ideológica, há dois — talvez até três — Machados: um jovem liberal que se transformou em conservador católico, reafirmador do statu quo imperial, um moralista defensor do matrimônio tradicional. Para Antônio — e o sempre citado no ensaio, presente ao final da edição da Ateliê Editorial, Roberto Schwarcz —, isso fica claro na fase romântica de Machado, isto é, em seus quatro primeiros romances, Ressurieção, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia. O outro Machado seria o que se tornou novamente um liberal realista e cético, quase um protossocialista revolucionário, a partir de Memórias Póstumas e seus demais romances vindouros, pois, de acordo com o crítico, o romancista envergou seus romances a uma análise social moderna, vencendo aquela moral medieval dos quatro primeiros romances, fazendo de Nietzsche e Schopenhauer, ainda nessa nova fase, a sua pena e tinteiro.
Esse tipo de crítica me recorda muito a célebre frase do bruxo mulato em seu conto O Espelho: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”; espantam-se sempre os ideólogos críticos que numa só consciência possa existir um homem que consegue abarcar críticas sociais determinadas e apreços morais tradicionais que consideram elementares; um homem coeso, que consegue se importar com políticas e virtudes individuais, sem ser, todavia, duas ou três personalidades esquizofrênicas num só corpo.
Talvez, por não praticarem e nem apreciarem tais virtudes, consideram-nas impossíveis e irreais. O mais espantoso, no entanto, é criticar literaturas sempre sob a perspectiva de que um escritor deva caber em camisas de força ideológicas, que deva, para além de fazer arte literária, usar suas canetas, envergaduras textuais e personagens para militar pró ou contra algo, sequer consideram a possibilidade de que um escritor possa abarcar a descrição e reflexão criativa do regional tradicional e do universal simbólico, ou, quiçá, como próprio Machado faz, de ambas as coisas sem precisar se render a sindicatos e grupos ativistas de qualquer lado.
Memórias Póstumas de Brás Cubas foi um experimento literário de Machado, por isso não é tão simples encaixotá-lo nas celas ideológicas dos críticos contemporâneos. A obra não foi nem naturalista ao estilo de Zola, em que o narrador trazia consigo a missão de ditar os detalhes e contextos quase à exaustão, nem foi também realista ao estilo de Flaubert, em que o narrador era sublimado pelo próprio contexto narrativo. O referido romance de Machado tem um estilo pessimista e cítrico próprio com relação à realidade que narra. Afinal, Brás Cubas era um cidadão da elite carioca do século 19, que não deixava de permear sua vida com críticas sociais e morais; há espaço no livro até para a criação de uma filosofia por Quincas Borba, o “humanitismo”, por isso o livro como um todo é, ao mesmo tempo, de alguma maneira, realista e simbólico — apesar de não afogar o narrador no anonimato, como esperavam os realistas.
A genialidade do autor brasileiro
Há também ali uma espécie de desprendimento narrativo, um ar de conversa comum que dispensa a rigidez descritiva — pousando a perla, por vezes, na indiscrição, na incerteza, o que afasta o texto de “naturalismo” literário típico daqueles dias; e mais ainda, há outro elemento literário ao qual muitos críticos dão menor importância em Memórias Póstumas, e eu, ao contrário, julgo de importância primeva: o romantismo idílico faz parte do alicerce textual é o tempero que une a narrativa como um todo, pois é na ilusão saborosa do amor proibido de Virgília, que foi diluída no pessimismo de Brás Cubas ante o desenrolar daquele adultério, que o ceticismo irônico machadiano ganha teor de realismo desencantado, que o autor parece ter abraçado como norte do texto. Por isso sou contrário à tese dos dois Machados, há para mim uma clara continuação entre os quatro primeiros romances e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ou seja, havia um refinamento novo que Machado apresentava ao mundo nesse livro, uma mistura de estilos que parecia até mesmo sondar o modernismo norte-americano e inglês do início do século 20.
Memórias Póstumas de Brás Cubas foi o início da maturidade literária de Machado de Assis, como o próprio escritor disse no prólogo da segunda edição de Helena. Lançado em dezembro de 1880 em forma de folhetim na Revista Brasileira, no ano seguinte pela Tipografia Nacional. Nesse sentido, foi, de muitas formas, um espanto editorial. Apesar de muitas críticas positivas, o teor geral das análises do livro então lançado foi de estranhamento, pois o novo conceitual que a obra trazia era diruptivo de muitas maneiras. Com o passar do tempo, todavia, as inovações passaram a ser incorporadas por outros escritores. Para alguns críticos de renome, como Harold Bloom, Machado de Assis “foi um milagre”, pois nascia em um ambiente propício ao regionalismo literário e se libertou dessas amarras se entregando às influências modernas daqueles dias — tal como as de Laurence Sterne e Jonathan Swift.
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A genialidade do brasileiro agora está cada dia mais sendo investigada fora do Brasil também. Não são poucos os especialistas que o colocam na primeira prateleira dos expoentes mundiais da literatura de língua portuguesa, acima até mesmo de Eça de Queiroz, Joaquim Manuel de Macedo, Fernando Pessoa e Euclides da Cunha. A nova edição norte-americana de Memórias Póstumas: The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, de 2020, traduzida por Flora Thomson-DeVeaux — norte-americana radicada no Rio de Janeiro —, saiu pelo gigante dos clássicos Penguin Classics. A nova edição recebeu críticas positivas de renomados analistas literários do mundo inteiro. Eu mesmo li algumas partes da tradução e só posso me render ao fabuloso trabalho de Flora, seja pelos arranjos linguísticos, dadas algumas lacunas irrefreáveis das duas línguas, seja pelas notas de rodapé que dão os contextos históricos e até mesmo geográficos, além das explicações gramaticais necessárias, ao leitor de língua inglesa. (Caso procurem o livro na Amazon, olhem os comentários dos leitores, muitos expressam o espanto de nunca antes terem escutado algo sobre o nosso Mago, além de rasgarem elogios à obra).
Machado de Assis versus Flaubert
Minha releitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas foi uma delícia. O li primeiramente aos 19 anos para o famigerado vestibular; agora o li porque quis — e como isso faz diferença! Saboreei cada descrição psicológica de Brás Cubas, cada inclinação cética de Cotrim, cada influxo filosófico de Borbas e o romantismo delicioso — me julguem — do relacionamento adúltero do protagonista com Virgília.
Se me permitem, Machado não foi o maior romancista brasileiro, ele ainda o é.
Fez mais que contar estórias e construir realidades paralelas. Colocou a literatura e toda sua teoria para bailar em seus textos em língua portuguesa, dignificando nossas raízes e maneiras. Descreveu ainda o Brasil do século 19 e a mentalidade de seu povo com brilhantismo e com uma profundidade que nenhum historiador poderia fazê-lo.
Quis escrever sobre a obra antes de seu aniversário (21 de junho), data que todos do ramo aparecem para incensá-lo, pois julgo que, infelizmente, os brasileiros perdem a chance de ler com vontade Machado, porque geralmente são levados a fazê-lo por força de vestibulares e provas bimestrais. Se entendessem antes que Machado foi um alquimista das palavras, um genuíno mulato, neto de escravos, que através de esforço e inclinação intelectual meritório erigiu monumentos literários a serem figurados entre os grandes do mundo, aí talvez leríamos Machado menos como dever e mais como um genuíno orgulho patriótico. Iríamos nos deliciar pelas vielas da sua escrita do século 19 — um pouco atravancadas —, mas só para darmos de cara com as belezas de uma vastidão de riquezas literárias, psicológicas e humanas que somente a alta literatura pode nos oferecer.
Para finalizar, certa vez cheguei a um professor amigo balançando o volume de Madame Bovary, de Flaubert. Estava orgulhoso por tê-lo lido em um fim de semana, sentindo-me mais respeitável e inteligente por esse fato. Descrevia a ele, com aquela típica pompa dos mesquinhos que se acham inteligentes, que o realismo do autor francês chegava a ser desconcertante em determinadas passagens daquele livro. O professor então me olhou com certo desdém e disse-me, “Muito bom, mas não chega aos pés de Memórias Póstuma de Brás Cubas. Flaubert teria recomendado o livro de Machado ao seus alunos, ao invés do seu próprio”.
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‘Memórias Póstumas’ e ‘Dom Casmurro’ são obras primas, sem dúvida. Mas, na minha opinião, nada se compara a “Grandes Sertões Veredas”, de João Guimarães Rosa, em cujo discurso de posse de 16/11/67 na Academia Brasileira de Letras, três dias antes der morrer fulminado por um ataque cardíaco afirmou: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”.
Belo artigo!