Hoje é ponto pacífico — assustadoramente até mesmo entre alguns socialistas confessos — que a Coreia do Norte é uma espécie de terra arrasada, um malfadado experimento político em todos os níveis e sentidos possíveis. O que se sabe, hoje, da vida cotidiana dos norte-coreanos, quase tudo foi revelado por meio de dissidentes, que conseguiram se refugiar em países vizinhos, ou por especialistas que se basearam nos relatos desses dissidentes e de espiões.
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A acusação, livro assinado por um tal de Bandi — que, em norte-coreano, quer dizer “vaga-lume” —, é uma peça única na literatura crítica ao regime norte coreano, já que não é uma obra de um dissidente refugiado, mas de um atual morador da Coreia do Norte, alguém que denuncia o totalitarismo por meio de seus contos com uma propriedade singular, com uma força ainda não vista as brutalidades do regime ditatorial dos “Kim”. Os sete contos que compõem a obra expõem as situações rotineiras e os dramas existenciais dos cidadãos daquele país. Esse é, literalmente, o único relato de um morador da Coreia do Norte que, ainda hoje, vive lá.
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Pouco se conhece de Bandi, sabe-se apenas que ele nasceu por volta de 1950 e faz parte da Liga de Escritores Chosun, uma espécie de sindicato de escritores autorizados e rigidamente controlados pelo governo central norte-coreano. Se é homem ou mulher, não sabemos, já que os detalhes biográficos do autor foram modificados pelos editores de sua obra a fim de ajudá-lo a não ser identificado pelo governo déspota. Aliás, é verdade também que sequer sabemos se, devido à sua ousadia de vazar contos críticos ao governo ditatorial, já foi rastreado e “expurgado”.
Da Coreia do Norte para um país livre
Seus sete contos foram levados a Do Hee-yun após este ajudar uma parente de Bandi que desertou para a China e depois para a Coreia do Sul. Ela, depois de assegurada, contou ao chinês sobre os textos críticos do escritor norte-coreano e sua intenção de vazá-los para um país livre. A refugiada então fez Do prometer que tentaria buscar os escritos no país vizinho — pois ela mesmo antes tinha prometido a Bandi que, após sair do território totalitário, faria o possível para trazer a sua obra para o exterior de alguma maneira. Por um daqueles golpes do destino, o ativista chinês logo tomou conhecimento de que um amigo iria à Coreia do Norte visitar uns parentes que moravam na mesma cidade de Bandi.
“Uma exposição crua do cotidiano norte-coreano, contos que mostram a Coreia do Norte a partir dos olhos dos cidadãos comuns daquele país”
Do, então, pediu ao amigo para se encontrar com Bandi, mostrar a ele uma carta de sua parente garantindo a segurança da operação e, depois de receber os contos, contrabandeá-los dentro de obras clássicas do comunismo norte-coreano. Ironicamente, assim, os contos brilhantes de Bandi, que mais tarde revelariam a perniciosidade do regime da Coreia do Norte ao mundo, foram transportados sob a proteção dos livros que defendem o totalitarismo comunista naquele país.
Fato é que A acusação se tornou um relato primário, ainda que ficcional, sobre como funciona a Coreia do Norte para além das propagandas do governo de Kim Jong-un e seus simpatizantes — sim, acredite, há simpatizantes. É um relato não meramente político, ainda que, sob uma ditadura bizarra como a norte-coreana, as dimensões privada e pública se entrelacem numa sopa nojenta de despotismo. Contudo, é antes uma exposição crua do cotidiano norte-coreano, contos que mostram a Coreia do Norte a partir dos olhos dos cidadãos comuns daquele país. Isso é de uma riqueza histórica e literária singular para tais tipos de escritos.
Mais sobre os sete contos do livro
São sete contos profundos, bem articulados e capazes de nos fazer asfixiar com os personagens sob o peso estafante do Estado totalitário norte-coreano. O pano de fundo que une todos os contos é o drama dos homens comuns, indivíduos que se encontram condenados a uma miséria existencial sob um totalitarismo vil que retira diariamente a vitalidade de qualquer arroubo de liberdade, além do óbvio teor crítico aos ditadores que hereditariamente revezam na vilania política naquele país.
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No conto que mais me marcou, Cidade de espectros, os pais de um garotinho, que gozam de certa sorte de morar na cidade central do país, Pyongyang, amotinados em apartamentos que mais parecem caixas organizadoras pensadas por arquitetos fanáticos por uma ciência humana exata que escraviza através das formas, compram cortinas novas para tapar as imagens de Karl Marx e Kim Il-sung expostas na praça central, pois tais imagens assustam o seu pequeno filho. Não demora nada para que a polícia de Estado veja em tal atitude dos pais uma clara e indiscutível prova de traição e espionagem. O resto vocês podem imaginar sem precisar de meus spoilers.
Os contos abordam temáticas diversas, como o drama de um filho prestes a perder sua mãe, pois se encontra incapacitado de viajar de trem depois de o “Líder supremo” fechar a cidade de sua mãe em uma visita surpresa. Afinal, sob a mente doentia de qualquer ditador, evitar estranhos viajantes que podem ser assassinos de alguma conspiração estrangeira é o que importa. Ou os dilemas morais de um agente da polícia do Estado que se encontra consciente da brutalidade de seu governo, mas não tem meios, sequer retóricos, de reagir. Há ainda uma mulher de meia idade que se percebe escravizada por um suposto crime de seu pai, condenada a viver num gulag (campo de concentração) norte-coreano a fim de expiar a culpa de seu progenitor, numa espécie de teologia grotesca de uma visão política doentia.
Uma obra sobre “distopia”
A obra, assim, ombreia as grandes distopias do século passado, como Lasca, de Vladímir Zazúbrin, Nós, de Iêvgueni Zamiátin, e o sempre citado 1984, de George Orwell, mas não pode ser exatamente assim denominado “distopia”, pois, ainda que ficção, A acusação é um relato direto, sombreando a realidade por trás de roteiros metafóricos, mas ainda sim deixando propositalmente à vista dos leitores atentos à realidade que ela denuncia.
Lançado em 2018 pela editora Biblioteca Azul ‒ selo da Editora Globo ‒, a obra não consiste em uma tradução direta do coreano, nem uma novidade do universo editorial nacional propriamente dita, mas em nada perdeu seu brilho atual e relevância literária por isso. Seria um tolo se perdesse a oportunidade de escrever sobre este magnífico livro nesta coluna.
“Mesmo se não gostasse desse tipo de literatura, eu o leria por respeito humano, por honrar a coragem e autonomia de um escritor que, à sua maneira, não dobrou sua consciência”
Muito já foi escrito sobre a Coreia do Norte por dissidentes, como no famoso Para poder viver, de Yeonmi Park, ou por especialistas, como em Nada a invejar, da jornalista Barbara Demick, especialista em Coreia do Norte — livro que também indico com muita veemência —, mas nada no mundo editorial havia se apresentado sob as penas de um atual morador, escritor e sobrevivente da Coreia ditatorial. Mesmo se não gostasse desse tipo de literatura, eu o leria por respeito humano, por honrar a coragem e autonomia de um escritor que, à sua maneira, não dobrou sua consciência.
A acusação é a prova que Bandi poderá apresentar, diante do júri da História, a evidência final de que seu caráter não foi consumido por uma ideologia brutal e desumana, mesmo sob pressões que nós brasileiros sequer conseguimos mentalmente emular. É um manifesto de que seus raros e arriscados momentos de liberdade, num dos países mais asfixiantes do mundo, foram usados para denunciar o que seus irmãos de nação sofrem diuturnamente para mostrar a quem ainda tiver fetiches políticos com o comunismo o que realmente o comunismo é quando levado a sério.
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Achei essa parte muito linda: “Mesmo se não gostasse desse tipo de literatura, eu o leria por respeito humano, por honrar a coragem e autonomia de um escritor que, sua maneira, não dobrou sua consciência.”
Ótima reportagem sobre tal regime nefasto e há muito tempo, aliás como nós tínhamos um, agora são vários, na américa latina, estou falando do um em Cuba, lamentável o povo estar sobre tal jugo por mais de 60 anos e ainda estarem sujeitos aos tais iluminados de sempre.
Mas o que quero dizer, pois nos tempos atuais está um tanto complicado, é ver quem fez tal tradução, que ideologia segue, o ideal seria ser alguém sem ideologia alguma – disse alguma – pra fazer a tradução nua e crua, aí sim seria uma obra um tanto memorável.