Meus pais sempre me ensinaram que há coisas que simplesmente não mudam, e isso sempre foi uma ideia real para mim. É bem verdade que eles diziam isso para justificar suas lições morais sobre minhas inocentes e juvenis, porém reais, falhas de caráter. Posso não gostar do clima tropical — e isso é fato, não exemplo —, mas, por mais abnegado e ativista que eu seja, jamais mudarei esse dado-fato brasileiro. Posso mudar de país, mas não o clima do país. Posso não gostar de samba, mas não posso impedir que outros gostem.
Cada dia mais, torna-se comum ouvirmos que “devemos acabar com o discurso de ódio”, como se o ódio, ou o discurso embasado nele, fosse algo que realmente pudéssemos mudar em nossas entranhas civilizacionais, como se não fosse intrinsecamente humano odiar, ser odioso, nos unirmos para odiar algo ou alguém, odiar em silêncio, militar por ódio e até odiar amar aquela canalha que maltratou nossos corações — “estrupícia”. Poucas coisas clamam mais aos nossos instintos do que o ódio; e, para deixar-vos ainda mais estupefatos, afirmo que não teríamos sequer saído das cavernas se não fosse o ódio: à escassez, à fome, à escuridão, etc.
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Mas, calma lá, temos de contextualizar tudo isso. Posso não gostar do “jeito” do vizinho, mas indiscutivelmente ele tem o direito de ostentar esse tal “jeito”, e, contra tal “jeito”, eu posso apenas me contrariar em silêncio, abstendo-me, de forma altruísta, de jogar nele qualquer tachação indecorosa ou vexatória. Meu preconceito não me autoriza a ser irresponsável ou criminoso, e é a civilização e suas velhas regras morais e judiciais que me dizem isso.
Ao contrário do que os nossos eternos românticos dizem (aqui me voltando aos românticos filosóficos, e não aos amantes de Amado Batista), voltar aos primórdios de nossa espécie não é o mesmo que encontrar nosso ego livremente pelado em uma mata virgem pré-colombiana, cantando Chico Buarque sob palmeiras, enquanto um grupo de alunos de artes da USP compõe uma poesia de linguagem neutra. Nós somos intrinsecamente maus, e aquele índio incivilizado que você crê ser inofensivo após uma palestra da Marilena Chauí provavelmente enfiaria uma flecha afiada em seu coração no mesmo instante em que você heroicamente fosse lecionar para ele uma linda aula sobre o poder revolucionário em Foucault.
A civilização não evoluiu, o iluminismo não aconteceu, sob as bases de um idealismo romântico francês, pautado num humanismo piegas pronto para ser cobertura de picolé. A civilização pós-industrial acontece justamente no ato de canalizar inteligentemente os instintos humanos irrefreáveis, transformando o ímpeto de violência em produtividade social, a irrefreada conduta libidinosa em galanteios decorosos. As regras e costumes normativos ocidentais, tão odiados pelos progressistas, são a própria coluna fundamental da civilização humana moderna; só existe sociedade moderna, ou o que se convencionou chamar de “sociedade”, porque os indivíduos aprenderam a controlar seus ódios, libidos, histerias e arroubos a fim de conseguirem benefícios que vão de angariar apoio militar, conquistar o coração da morena arisca, até conseguir um pouco de carne para o jantar. Para isso, tiveram de temperar seus instintos com o saleiro da prudência virtuosa, tiveram de encontrar vantagens e sentir medo do poder alheio. A diplomacia foi inventada, muito me parece, por um nerd que teve de conseguir seu soldo de um brutamonte que obviamente o venceria numa batalha; foi coagindo o ódio a se enquadrar nas normas morais do grupo e, depois, sob a égide da lei, que a civilização ocidental se tornou um milagre antinatural. O ódio continuará existindo, assim como o amor; a diferença é que socialmente aprendemos como canalizá-los para atos proveitosos e dignos.
Como acabar com a cultura do ódio
Em suma, parece-me extremamente ridículo falar que devemos acabar com o ódio, ou que devemos promover a tolerância, como se fossem os sentimentos que devessem dominar a razão, e não o contrário. Ora, parece-me claro que devemos continuar o caminho civilizatório, isto é: promover a temperança e as virtudes que são capazes de julgar quando temos de ser raivosos ou tolerantes.
Entendo que a tolerância ante um estuprador que violenta sua esposa não é uma qualidade louvável; é antes aquilo que convencionamos chamar de covardia. Assim como o ódio ante um psicopata que invade seu quintal parece ser mais que virtude, mas um instinto de sobrevivência. A civilização não se fez — e não se faz — na anulação ou promoção desenfreada de sentimentos, bem como não é construída por meio de saltos utópicos de ideologias, mas no estímulo à prática abnegada de virtudes. Da mesma maneira que hoje a escravidão surge aos olhos do homem comum como algo inerentemente inaceitável e injustificável; da mesma maneira, qualquer outro avanço ético e moral necessita do inevitável tempo de maturação histórica no caldeirão do senso comum e da consciência grupal. Lembremos que a França acelerou a luta contra o despotismo político, acusando o rei de arbitrariedades e falta de humanidade, para logo depois empilhar cabeças decapitadas em nome da República da “liberdade, igualdade e fraternidade”.
A humanidade é a humanidade da direção dos impulsos e da maturação das ideias; esses dois movimentos acontecem simultaneamente naquilo que Jung chamava de “consciência coletiva”. A sociedade irá negar ou aceitar as pautas propostas seguindo seus sentimentos morais e as racionalizações científicas que os apoiam; nada é mais humano do que matar seu semelhante para conseguir o que ele tem. É a civilização e seus construtos éticos e jurídicos que limitam e inibem isso. Como diz Jonah Goldberg em seu maravilhoso livro O Suicídio do Ocidente:
“A história da civilização é, literalmente, a [de] domar, dirigir, canalizar ou refrear a natureza humana. É a natureza humana que pega o que você quer, particularmente de estranhos, se você pode se safar. É a natureza humana que mata — novamente, particularmente estranhos — se você não gosta de alguém ou se sente ameaçado por ele. É a natureza humana que concede favores à família e aos amigos. As civilizações — todas elas — estabelecem regras de um tipo ou outro para dirigir ou canalizar a natureza humana para fins produtivos.”
Sempre leio seus textos. As vezes me perco, as vezes não entendo tudo, mas leio. E faço minhas anotações. Mas aprendo sempre, um pouco.
Vi a seleção de livros que vc indica. E já vi na Amazon resumo, quantidade de paginas e preços. Obrigada.