Quando estava na universidade, passei por algumas crises que transitavam entre as familiares, existenciais e religiosas; minha família era formada por trabalhadores braçais da indústria automobilística e de lavouras do sul de Minas. Imagina eu, um gordinho nerd estudante de filosofia, num churrasco de família no final de semana dando razão da minha escolha de vida, a filosofia e a literatura. Uma das minhas preocupações mais graves era o meu sustento, afinal, filosofia não é uma daquelas profissões que um bacharel já sai com promessas de emprego e sob assédios empresariais. Lá no 3º ano do bacharelado — um ano antes do término — um amigo, dos poucos que sabiam das minhas angústias, enviou-me um vídeo de Olavo de Carvalho falando sobre a vida intelectual, ao final do vídeo ele recomendava o livro O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa.
No dia seguinte, comprei o livro num sebo próximo à universidade e comecei a lê-lo no mesmo dia. Foi uma leitura de dois dias apenas; o livro é apaixonante e, desde o primeiro instante, prendeu minha atenção. Impressionante, penso agora, ao reler minhas anotações de época ao mesmo tempo que releio o livro, como um autor profundo consegue criar uma literatura que responde e compõe as angústias e males de um grupo ou, até mesmo, de nossa espécie como um todo. A trama do livro gira em torno de José Campos Lara e Maria Rosa; Maria é a sensata e racional da relação, calculista e uma eterna preocupada com o conforto material e segurança financeira; seu marido, José, é um poeta que, agora casado, deve se preocupar não somente com a literatura que produz, e suas aspirações estéticas, mas com a subsistência de sua família.
Quando José resolve abandonar seu emprego formal, que o pagava de forma ridícula honorários que mal davam para comer, a fim de se dedicar à sua vocação de escritor, o caos matrimonial e a crise de consciência afloram nas páginas do livro: o que fazer? A arte ou o pão? Deixando o plano da abstração para materializar-se em diálogos profundos sobre o que é bem existir e quais as obrigações naturais do homem na sociedade moderna, Lessa consegue unir toda uma extensão do problema em pouco mais de 100 páginas. Narrado em terceira pessoa, a conceituação da psique e caráter de José e Maria vão além da mera escrita comum, são antes diferenciados logo na construção descritiva de ambos os personagens; o alargamento e expansão das descrições de José são típicos de seu caráter artístico; por outro lado, as diretas e curtas explanações de Maria, a portadora fiel da razão e da prudência no romance, traz aos leitores a sensação de uma reprimenda justa aos devaneios fora de hora do poeta.
A construção da narrativa se desenvolve através das crises, alentos e dificuldades que essas duas consciências díspares passam e repisam no dia a dia. Calúnia bairresca, fofoca paroquial, gravidez em hora inoportuna, miséria e mesquinharias típicas e naturais do homem nadam a braçadas na obra. Dos vários embates que o livro traz, o mais interessante e eternamente atual é a necessidade de conciliar o que se ama fazer com o que se deve fazer, feliz do homem que vive bem e feliz com o que faz, e faz aquilo que o torna feliz e ainda o sustenta. Do homem parece vir a natural inclinação ao matrimônio e outras convenções sociais, porém, de alguns indivíduos vêm também a reticente inclinação vocacional à arte que pede a solidão, o afastamento, e, por vezes, o sacrifício das comodidades e dos benefícios das riquezas desse mundo.
Esse paradoxo tratado em O feijão e o sonho é perene, na medida em que sempre haverá tal intriga na consciência humana: a busca da felicidade pessoal e a necessária segurança financeira no mundo moderno que, não raro, trilham caminhos opostos; o recorte do romance de Lessa, assim, é perfeito, findando em um dos melhores escritos relativo a uma das crises do espírito menos exploradas pelos escritores mundiais; a crise da vocação vs. dever; felicidade vs. subsistência, sentimento vs. razão, utopia vs. realidade, sonho vs. feijão, a inovação do escritor brasileiro foi o fato de retratar tal crise humana num realismo desconcertante, ao mesmo tempo profundo, sob um retrato prático e um enfoque completamente translúcido. Um roteiro de romance, mas que poderia ser também de uma biografia fidedigna de muitos poetas e homens das letras.
Lessa foi combatente na Revolução Constitucionalista e, por isso, prisioneiro de Getúlio. Tinha fortes opiniões políticas, mas difíceis de serem plenamente categorizáveis em nossos planos atuais de visão ideológica. Ele tendia sempre a condenar o poder concentrado do getulismo e, não raro, se via boicotado por isso; foi também um imortal da Academia Brasileira de Letras — quando tal título era dado por motivos literários mais do que políticos.
O livro foi um dos sucessos editoriais mais estrondosos da primeira metade do século passado, lançado inicialmente em 1938, edições e reedições da obra já passaram pelo menos por umas cinco ou seis editoras, inclusive pela saudosa edição da coleção Saraiva de 1949 e da coleção Vaga-Lume da editora Ática dos anos 1990. Eis um clássico do nosso país que foi pouco explorado, as obras de Lessa, inclusive, são mal exploradas num sentido mais amplo. Talvez sua escolha em se dedicar à literatura infantil tenha colaborado, talvez sua escrita realística o tenha afastado do romantismo revisitado da primeira metade do século em nosso país. Se um dia me contratarem em uma consultoria editorial sobre quais clássicos brasileiros deveriam ser publicados em línguas estrangeiras, O feijão e o sonho estaria certamente na primeira folha, entre os primeiros livros citados. Seu caráter simples, em edições feitas sem nenhum tipo de luxo, esconde um tratado denso e acessível sobre a consciência humana que se digladia com o paradoxo da vocação vs. sustento. Profundo, contudo, cotidiano; citadino, no entanto, civilizacional; é um texto que se vestiu de banal, todavia, carrega uma realeza dos grandes.
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Desculpe, mas, na primeira linha do terceiro parágrafo, o correto não é “…que LHE pagava…”, ao invés de “…que O pagava…”? Afinal, quem paga para alguma coisa A alguém. Dito de outra forma, o correto é “…que pagava A ele…”, e não “…que pagava ele…”. No mais, meus cumprimentos pelo texto.
Caro Pedro, suas análises e dicas de obras são excelentes. Parabéns pelo trabalho!
Eu assisti a novela em 75 e até hoje sou apaixonado pela Nívia Maria.