O escritor Fábio Gonçalves, 32 anos, é um símbolo do brasileiro comum. Nasceu em Diadema (SP), uma das cidades mais perigosas do país, e vivenciou experiências próprias daquele ambiente: a pobreza, a desordem, o caos. Ele também pertence a uma espécie em extinção no mundo, o grande literato, que consegue absorver as mazelas da realidade e descrevê-las por meio da alegoria, da metáfora, da ironia.
“O ambiente em que cresci era semelhante ao que tentei retratar em Um Milagre em Paraisópolis: traficantes, crentes mais ou menos caricatos, funk, uma feiura e uma desordem generalizadas, com a criançada abandonada à própria sorte”, disse Gonçalves, em entrevista a Oeste. “No fim, tive ali uma vida sem grandes sobressaltos — pelo menos se tomarmos como base e medida aquilo que um diademense considera sobressalto.”
Na entrevista, Gonçalves contou sua experiência universitária, revelou a influência dos clássicos da literatura em sua carreira, avaliou o cenário da literatura moderna e comentou o papel da religião em sua formação intelectual. A seguir, os principais trechos.
— Como o senhor virou escritor?
Por causa do professor Olavo de Carvalho. Conheci o Olavo, na época do cursinho, por intermédio de um outro professor, o Éder, que era seu aluno. Desde cara me impressionei com o velho e me matriculei no seu curso de filosofia. Acontece que, nas primeiras aulas, ele insiste, com toda a diligência que a mensagem merece, que não dá pra ser filósofo sem antes dominar a linguagem. Então, ele dá como que um itinerário para se conquistar o tal domínio, recomendando, acima de tudo, a leitura constante e a contínua imitação dos nossos grandes escritores. Pois comecei a fazê-lo e parei aí. Descobri que escrever, e não filosofar, é a minha vocação.
— O senhor passou pela universidade brasileira. Como descreve aquele período?
Quase não me teve importância senão para confirmar aquilo que já pressentia e escutava: a educação nacional vai muito mal das pernas. Além do mais, não sirvo para ser aluno. Pelo menos não de longas jornadas. Quatro ou cinco anos estudando alguma coisa que não me seja de vital interesse, para mim, é absolutamente impossível. Admiro muito quem tem a fibra moral e o vigor físico para completar um curso universitário. Eu, mal e mal, venço cursos de verão. Mas não foi por falta de tentativa. Como durante alguns anos fui professor de dança de salão (bolero, gafieira e outros que tais), achava uma boa o curso de educação física. Saí dali após um mês com a firme ambição de me tornar médico, fisioterapeuta. No curso pré-vestibular, percebi que me dava melhor com as humanidades e cogitei filosofia ou sociologia. O viés político dos cursos e as desalentadoras promessas de ordenado me demoveram da ideia. Consegui então uma bolsa no curso de Direito na PUC e desisti por causa da linguagem. Me perdoem os amantes do ramo, mas não sei se há literatura de pior gosto do que a jurídica. Livros de doutrina, acórdãos, códigos. Não me desceu. Mais ainda porque tinha, há não muito tempo, travado os primeiros contatos com a grande literatura universal. O contraste me pareceu insuportável.
— O senhor abandonou a universidade?
Como supostamente precisava de um currículo, sob pena, achava eu, de perder a humanidade e o Céu, fui para o curso de história na USP. A distância e o estalinismo me fizeram largar após três sofridos semestres. Mas a experiência uspiana me valeu o primeiro impulso de escritor. Nas primeiras semanas, fiquei colega de um rapaz mineiro, jovem que, diferentemente dos demais, ainda tinha alguma flexibilidade ideológica. Conversávamos sobre história e filosofia e discutíamos com alguma liberdade a escrachada tendência marxista de professores e veteranos. No entanto, houve uma greve de meses e nesse entretempo ele se alojara no campus. Quando as aulas retornaram, ele já estava consoante aos radicais do centro estudantil. O fenômeno me pareceu interessante e, como estava lendo, na mesma época, Os Demônios de Dostoiévski, pensei em também retratar o processo de radicalização revolucionária, mas tomando como cenário uma das nossas universidades. O romance não vingou, mas me deu o Pastor Josenildo, protagonista do meu livro de estreia [Um Milagre em Paraisópolis].
— O senhor venceu o Prêmio Literário do Bicentenário da Independência do Brasil, organizado pelo Ministério das Cidades. De que trata o Peroba, romance que lhe rendeu a premiação?
Peroba é um romance alegórico. Se passa numa Bahia de carnaval interminável. Peroba era um menino de rua, que teve sua mãe brutalmente assassinada e que foi cooptado por um tal de Janjão, homem que coordenava uma gangue de pivetes e vendia o sexo das meninas. Peroba consegue fugir-lhe e vai cair na mata baiana. Ali, depois de passar por aventuras selváticas, conhece uma espécie de ermitão, que lhe conta a história de um outro Brasil — que não o do carnaval e do Janjão. Aí, como que se abre um livro dentro do livro. O eremita lê ao menino um velho alfarrábio em que um parente distante, jornalista no século XIX, narra a história da sua família, desde a vinda do primeiro descendente escravo até a proclamação da Independência, da qual teria sido testemunha ocular. O menino resolve passar alguns anos aprendendo com o velho sábio antes de voltar à sua cidade. Daqui para diante não conto. Mas o livro ainda não foi publicado. Como o escrevi a toque de caixa, preciso fazer muitas emendas e ainda não tive tempo. Pretendo fazê-lo ainda este ano.
— Posteriormente, o senhor lançou dois livros: um de contos, chamado O Retrato Doente, e um romance, intitulado Um Milagre em Paraisópolis. O segundo, especialmente, recebeu diversas avaliações positivas. Como foi escrevê-lo?
Esse livro foi como que retirado do malogrado romance sobre os rebeldes brasileiros. Tirei dali uma família, a de um pastor protestante, desses de periferia, que tocava os negócios da igreja por métodos estranhos e pouco cristãos — como não raro acontece. As boas avaliações devem ter vindo do bom trabalho de marketing e do fato de eu ter retratado um cenário muito comum a quem vive em grandes cidades e tem contato com favelas. Aliás, certa vez, fui convidado por um clube de leituras de Paraisópolis para falar sobre o livro. As pessoas tanto se afeiçoaram aos personagens e tanto se identificaram com eles que uma das participantes, com ares de indignação e impaciência, me intimou a contar quem era, na vida real, o tal pastor, pois tinha a vívida impressão de conhecer um sujeito tal e qual o Josenildo. Quando disse, intimidado, que jamais pisara em Paraisópolis e que o religioso era cem por cento inventado, a mulher, como diria o Nelson Rodrigues, caiu das nuvens. Uma outra, na mesma reunião, tão indignada quanto a primeira, jurou ter feito meticulosa investigação no bairro a fim de descobrir onde morava a família da minha novela. Foram os principais elogios ao livro. Quanto ao processo de escrita, foi mais ou menos fácil. Já tinha a história na cabeça e os personagens não custaram a ganhar certa vivacidade e independência. Tudo correu ao natural.
— Como o senhor avalia a literatura moderna?
Se por moderno entendermos o Fernando Pessoa, o Jorge Luís Borges, o Hemingway, o Faulkner, o Manuel Bandeira, o Jorge de Lima, o Gerardo de Melo Mourão, o José Lins do Rego, a Rachel de Queiroz, a Lygia Fagundes Telles, o José Geraldo Vieira etc., avalio muitíssimo bem, se é que, anão, posso avaliar gigantes. Agora, as atualidades, a literatura dos anos 2000, não sou capaz de avaliar porque não a conheço suficientemente. Sei que ainda temos ótimos poetas mais velhos, como o Alexei Bueno e o Carlos Nejar, e sei de alguns mais recentes de excelente valor, como o João Filho, o Wagner Schadeck e a Mariana Machado. Na prosa, vai um elogio paroquiano e clubista aos autores da Editora Danúbio: o Alexandre Soares Silva, o Diogo Fontana, o Luiz César de Araújo, o Douglas Lobo e o Eliseu Xavier.
— Quais autores contemporâneos têm qualidade para se tornar clássicos?
Talvez o mais evidente candidato a clássico seja o Michel Houellebecq. Acho que está pintando como ninguém o decadentismo pós-moderno.
— Por falar em clássicos, quais autores influenciaram sua aventura literária?
Ainda leio muito e me deixo influenciar por quase tudo. Mas, para ficar com as mais marcantes: Dom Quixote, Odisseia, Os Lusíadas, A Trilogia Tebana, de Sófocles, as peças de Shakespeare e tudo do Machado de Assis.
— Qual é a importância da religião em seu desenvolvimento intelectual?
Ter uma religião tradicional, como o cristianismo, e se esforçar por entendê-la, implica se conquistar, também, uma cosmovisão, uma visão de mundo bem estabelecida. Para o artista, acredito eu, ter ou não uma visão ordenada do mundo, ou ter essa visão ordenada desde princípios diferentes, é fator determinante. Um cristão e um materialista não veem o homem do mesmo jeito. Para um é a imagem de Deus; para o outro é um acidente bioquímico — e um inconveniente planetário. É claro que essa diferença de perspectiva terá impacto decisivo no retrato que um e outro faça do homem, seja numa escultura, num quadro ou num poema. Além disso, claro, a religião tem seu aspecto prático, uma certa ritualística da vida em que o trabalho se encaixa. E, inclusive, a depender do trabalho, como uma obra de piedade.
— A filosofia também foi um de seus focos de interesse. Quais autores contribuíram para a sua formação como escritor?
Platão, Aristóteles, Eric Voegelin e Olavo de Carvalho.
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Sempre fui um ávido leitor e fico maravilhado quando vejo novas promessas surgindo na literatura. Esse rapaz tem muito futuro.
Aguardo o lançamento do livro para conhecer na íntegra a história do menino Peroba igual a muitos Brasil afora.