Certa vez, um professor universitário me disse que George Orwell era um autor superestimado pelos críticos, que as suas obras eram realmente boas, mas que encontrava, em pelo menos dez outros autores, melhores motivos para lê-los antes de Orwell. Naquela altura da vida, eu já havia lido os dois grandes textos do autor, 1984 e A fazenda dos animais ‒ ou Revolução dos bichos, como ficou mais popularmente conhecido.
Apesar da afirmação instigante e provocativa do catedrático, confesso que, num primeiro instante, apesar de gostar bastante Orwell, usando-o, por vezes, em meus ensaios acadêmicos, não encontrei motivos para desacreditar o professor; mais tarde, porém, em sua matéria, tudo ficou mais claro, ele era do tipo socialista fideísta, um daqueles apologetas ‒ ao estilo Sartre ‒ prontos para justificar as mais diversas bizarrices da sua ideologia em troca de segurança argumentativa, conforto psicológico, segurança política e pose moral. Isto é, o professor era o exato oposto do que foi o socialista esclarecido George Orwell.
Orwell era um socialista cético e, levando em conta que considero o socialismo uma religião política, um socialista cético costuma não só colocar dedos em feridas hipócritas, mas, como que por diversão, rodá-lo dentro da chaga… quando não, escreve livros para desmistificar a propaganda e estratégias ditatoriais dos eclesiásticos de punho cerrado.
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No prefácio à edição ucraniana de 1947 de A fazenda dos animais — heroicamente traduzido num campo de refugiados por dissidentes e críticos ucranianos do regime soviético —, Orwell fez questão, mais do que falar sobre o livro editado ineditamente naquela língua, mostrar suas convicções políticas. Em suma, caso nunca se deparem com a possibilidade de ler o prefácio, ele fala de sua juventude relativamente abastada na Índia administrada pela Inglaterra, seu encantamento pela ideia socialista por meio de desilusões com o sistema imperial britânico e castas indianas, sua revolta moral ante às condições dos mineiros ingleses e, após casado, sobre seu alistamento para a guerra espanhola.
Um convicto socialista…
Como ele afirma no referido artigo, ainda que convictamente um socialista, quase morrendo pela causa depois de levar um tiro na garganta, após ser confundido com trotskistas, foi violentamente rechaçado e caçado pelos soviéticos que lideravam as tropas comunistas na Espanha. Segundo o escritor, ele e sua mulher só saíram da Espanha por mera sorte ou milagre, pois, após o expurgo soviético contra os supostos seguidores de Trotsky, incontáveis amigos socialistas que foram lá lutar pelo comunismo foram mortos, presos ou simplesmente sumiram.
Ao que tudo indica, foi ali o despertar do escritor para a realidade crua, sem maquiagens, sobre o que era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas na prática. Após alguns anos, em 1943, ele então decide escrever A fazenda dos animais a fim de denunciar, e esclarecer para si mesmo, a deturpação do socialismo soviético feita por Stálin.
Liderou — ainda que mudamente — aquela ala conhecida como “socialismo esclarecido” ou “socialismo democrático”
No mesmo prefácio, ele se declara “pró-socialista”, definindo-se assim com um certo orgulho, ainda que, parece-me, também com certa angústia. Como jornalista e colunista, escreveu nos principais jornais socialistas ou “à esquerda” da Inglaterra. Por sua clareza de escrita e ideias, além da coragem de ser um dissidente dentro da própria esquerda inglesa, liderou — ainda que mudamente — aquela ala conhecida como “socialismo esclarecido” ou “socialismo democrático”.
George Orwell morreu um socialista e, como ele gostava de enfatizar, definiu-se justamente por ser um crítico do lado de dentro. Um socialista que analisava sem amarras e preciosismo os erros do socialismo prático e teórico. Paradoxalmente, ele fundamentava suas obras em dois valores que, a ele, eram indispensáveis:
- a liberdade de expressão — plenamente defendida, como poucas vezes na história moderna, em 1984; e
- a igualdade social — o que, por sua vez, é o ponto central de sua crítica em A fazenda dos animais.
Uma luta na alma de George Orwell
Fica claro, assim, que havia uma luta quase que metafísica na alma de Orwell. Luta essa plenamente revelada em sua escrita. Ele compreendia que o socialismo só seria alcançado se, de fato, houvesse igualdade social, a extinção da exploração de classes e da propriedade privada, eis os fundamentos mesmos da causa marxista mais tradicional. Entretanto, de nada adiantaria a igualdade social plena sem a garantia da liberdade de falar livremente, pensar, agir e empreender, pois isso é natural do homem racional. E assim como a igualdade no trato social é condição mínima de dignidade, é condição mínima de humanidade a autonomia individual, a liberdade de crítica e todas as demais que, num fio esticado de valores basais, logo esbarrarão na liberdade de posse de propriedades privadas.
Compreendia bem Orwell, todavia, que, na subsistência entre esses dois valores, liberdade e igualdade, o Estado — agente indispensável para que o socialismo se faça — sempre tenderia à igualdade forçada e à supressão das liberdades individuais, pela planificação central da sociedade. Isso porque o Estado é essencialmente um ente centralizador de poder.
Orwell era um socialista idílico com relação às intenções declaradas pela teoria socialista
Na Inglaterra, por exemplo, uma de suas lutas mais árduas foi pela irrestrita liberdade de imprensa, direito que costumava ser um dos primeiros a caírem após a revolução socialista. Assim sendo, Orwell era um socialista idílico com relação às intenções declaradas pela teoria socialista. Mas, paradoxalmente, um realista determinado, um cético distinto para seus dias de comum fé em ideologias.
Esse paradoxo revela as análises que se digladiavam no íntimo de sua psique, e dois fatos que revelam isso é sua confessa aderência à ideia socialista na prática da política — e, com isso, a necessidade inerente de planificação central pelo Estado — e a consciência perturbadora de que tal ação estatal tende sempre ao autoritarismo. Ele sabia, pela sua experiência e análise, que a igualdade e liberdade pregadas pela ideia socialista logo se transformavam em uma narrativa para justificar a massificação, prisões e matanças em nome da ideologia.
Compreendendo a contradição socialista
Especialmente em 1984 — ao elucidar o funcionamento da narrativa de dominância psicológica sobre os indivíduos realizada pelo Estado totalitário — , George Orwell criava a máxima que exporia as vergonhas e irracionalidades do comunismo, no livro, o Estado prega que “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”. Relativismo absurdo que ele enxergava como sendo a alma da propaganda socialista, algo que ele genialmente conceituou no referido romance como “duplipensar”.
Orwell, assim, compreendia como poucos a contradição da política socialista, que ao mesmo tempo que pregava ideologicamente a igualdade e a liberdade do proletariado, no ato seguinte gestava uma classe dominante, totalitária e desigual, que precisava dominar a mente e as ações de cada indivíduo a fim de subsistir em uma sociedade despótica.
George Orwell é, de longe, o melhor e mais acessível autor para lermos neste particular momento autoritário por qual passamos aqui no Brasil
Desta maneira, ele compreendeu o núcleo da problemática socialista, isto é: a sua incapacidade de funcionamento na realidade. Após lermos A fazenda dos animais e 1984 é impossível não entendermos que a mensagem de Orwell era de que o socialismo estava fadado a ser eternamente uma motivante teoria social, das modernas, de longe a mais sedutora, entretanto, também a que tinha na prática de suas ideias a sua eterna barreira. A realidade para o socialismo é um entrave sem resolução pacífica. Mas, por algum motivo, Orwell preferiu continuar professando a teoria socialista enquanto, até o último momento de sua vida, denunciava a contradição autoritária gerada na realidade por essa mesma teoria que ele apoiava.
Para mim, George Orwell é, de longe, o melhor e mais acessível autor para lermos neste particular momento autoritário por qual passamos aqui no Brasil. Por isso, aliás, é assunto desta coluna esta semana. Apesar de sua crença quase infantil, desprendida de maiores porquês, no socialismo teórico, o seu heroísmo ao matar diariamente seu egoísmo ideológico para manter a lucidez analítica, sua coragem para não ceder na defesa da liberdade, é, de novo, paradoxalmente louvável em momentos no qual até o conceito de democracia se tornou relativo.
Orwell é o tipo de socialista que você, de fato, não compreende por inteiro ‒ principalmente após ler sua biografia ‒, mas que passa a admirar com toda devoção racional por sua clareza, inteligência e perspicácia.
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Ele DESCREVEU o roteiro seguido pelos socialistas, numa época em que até os Aliados eram comedidos nas críticas à URSS por conta da aliança na 2ª Guerra. Apenas como breve exemplo: no livro “Hitler e Stalin – Os tiranos e a Segunda Guerra Mundial” (capítulo 16), o autor menciona notas escritas pelo próprio Churchill em 1944, em que este não faz muitas críticas a Stálin mesmo depois de praticamente perder a Polônia para os soviéticos no pós-guerra (Polônia que foi justamente o estopim da guerra).
Ou seja, reforçando o que foi dito no texto, precisou alguém de dentro das fileiras do socialismo pra ter lucidez e despertar o raciocínio das pessoas até hoje sobre as engrenagens que o socialismo implementa na prática.
Ele escreveu um roteiro que é seguido pelos socialistas.
Ainda dormindo
Acoooordaaaa Oeste
Resumindo, na prática a teoria é outra, ou seja, os ismos tendem sempre a privatizar o lucro e socializar o prejuízo.
O socialismo é uma forma de menos radicalizar o comunismo, o nazismo e o fascismo, o qual desemboca, também, num Estado gordo, totalitário, absolutista, cujo poder total advém de um homem saído de um núcleo que não admite nada nem ninguém de fora de sua bolha de interesses.
Dessa forma, obviamente, não podem admitir indivíduos livres, abertos a ideias diversas, contraditórias e plurais, de pés no chão e capazes de discernir que, entre o 0 e o 1, existe um infinito de números.
Limitados cognitivamente, complexados, mas revoltados e presunçosos, acreditam poder mudar a Natureza aos seus interesses, onde o indivíduo não vai além de um reles pião em seus jogos de poder para produção para seu consumo e parceiros para sua diversão.
Sendo assim, conseguem cooptar/abduzir os mais frágeis intelectualmente, os mais ignorantes, hipossuficientes, marginais, venais e criminosos, que formarão, à margem dos valores morais e éticos que constroem bases virtuosas para sociedades sãs, sua estrutura popular de poder.
Funcionam, tais filosofias, por lidar com apoiadores alienados e de má formação de caráter, como uma seita sob o domínio de maus-caracteres e que aos poucos vai limitando o indivíduo à nada, a um mero servo do sistema que lhes interessa, a espera de sua própria redenção!
Muito triste e sério essa doença mental que acometeu boa parcela de nossa população!
Mim tem que reconhecer, o Sr escreve muito bem. KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK