Homeschooling. O termo em inglês ainda pode soar estranho aos ouvidos brasileiros, mas o significado é fácil: educação domiciliar. Em vez de enviar os filhos à escola e submetê-los ao sistema de educação obrigatório, com um extenso — e tedioso — currículo, os pais homeschoolers (adeptos do ensino em casa) alfabetizam os filhos no conforto e na segurança do lar. Esse é o escopo do projeto Mães Educadoras, um bem-sucedido programa de educação domiciliar sediado na cidade de São Paulo.
O projeto, que também está presente em outras cidades da Grande São Paulo, nasceu em 2012 pelas mãos de Frances Mugnaini, formada em relações públicas, tendo atuado com planejamento e realização de eventos sociais e acadêmicos. Seu objetivo não era somente possibilitar às suas filhas adolescentes, Amanda e Vitória, uma educação fora dos moldes rígidos do sistema de ensino compulsório. Não. Frances queria atender à sua vocação de mãe: ensinar e proteger. E, com a ajuda de seu marido, professor universitário, ela despertou outras mães para o projeto de educação que valoriza em primeiro lugar o indivíduo.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O combate à excessiva regulamentação estatal no âmbito da educação foi um dos principais objetivos do projeto?
Nossa motivação em realizar o ensino domiciliar não tinha como enfoque principal a objeção à intromissão do Estado, mas, sim, o aprendizado de uma maneira mais livre. Tínhamos o interesse em um sistema de educação que não viesse de um sistema de fábrica, onde todos são nivelados igualmente. Nosso interesse estava na observação individual, com o objetivo de perceber individualmente as inteligências múltiplas, avaliando as diversas habilidades. A possibilidade da educação nesses moldes foi a nossa grande motivação.
Qual foi a reação de seus parentes e amigos depois de saberem que vocês não enviariam suas filhas à escola?
No início, quando nossa filha mais velha tinha 4 anos de idade, não tínhamos pretensão alguma em realizar um trabalho em grupo no âmbito do homeschooling. Minha filha ouvia dos seus primos que iam à escola que lá era “bom”, que era “interessante”. Nossa filha nos disse que gostaria de ter ido para a escola desde bebê. Foi quando demos início ao projeto, buscando por apoio de outras famílias educadoras. Tivemos de conversar com amigos e parentes, que, com o tempo, perceberam que nossa escolha havia sido a melhor. Havia parentes que diziam que não concordavam com nossa escolha, mas que respeitavam nossa decisão; no início houve bastante respeito nesse sentido.
Já havia projetos de homeschooling no Brasil quando nasceu o Mães Educadoras?
Naquela época não havia tantos modelos de educação no lar no Brasil, mas tínhamos muitos amigos em outras regiões do país que nos ajudaram, dentre os quais Rick Dias, fundador da Aned (Associação Nacional da Educação Domiciliar). Ele fez um trabalho belíssimo de desmistificação desse modelo de ensino, e nos mostrou as vantagens desse método. Sanamos dúvidas jurídicas, porque o Rick explicou que a educação domiciliar não era um crime, porque crime seria abandono intelectual — ao contrário do que estávamos fazendo.
As pessoas que são críticas ao homeschooling afirmam que esse método de ensino encerra as crianças em uma “bolha”, sem contato social. Como o seu projeto mostrou que isso não é verdade?
Nada mais longe da verdade do que dizer que a educação domiciliar encerra as crianças em uma “bolha”. A criança que faz homeschooling se relaciona bem não só com crianças da mesma idade, mas com colegas de outras faixas etárias — inclusive com adultos e idosos. Minha experiência de 12 anos no projeto mostra que aqueles que estão inseridos em grupos de apoio são bastante acolhedores. A criança e o jovem que são ensinados em casa não têm só uma entidade escolar para se relacionar. Isso porque eles praticam esporte, têm aula de música, fazem artesanato, aprendem culinária; eles estão sempre muito bem envolvidos.
O projeto Mães Educadoras tem alunos destacados? E como é o convívio entre as famílias homeschoolers?
Nós tivemos em nosso grupo jovens que fizeram balé clássico no Teatro Municipal de São Paulo por alguns anos. Temos também crianças que tocam instrumentos musicais — e não são advindas de famílias abastadas. Há também jovens que se dedicam ao esporte e ganham prêmios. Nossa preocupação foi em encontrar crianças que estudassem da mesma forma, e então procuramos por outras famílias que tivessem os mesmos objetivos que nós. Começamos a nos encontrar uma vez por semana para piqueniques, jogos com as crianças; e isso nos fortalecia enquanto mães. Foi assim que o grupo de apoio nasceu, e ele se manteve por conta de um objetivo. Ele começa dessa maneira informal e simples para criar laços, mas depois se torna algo mais concreto. E tudo isso demanda muito esforço. Os grupos se organizavam na semana por meio das mães, com total apoio dos maridos; mas, durante o ano, as famílias tinham cinco atividades: feira de ciências, olimpíadas de inverno, um passeio temático, uma reunião e uma confraternização de final de ano.
Outra crítica contra o ensino domiciliar é que ele supostamente seria tendencioso e de cunho religioso, mostrando às crianças apenas uma versão da História. Seu projeto também mostra que isso não é verdade, como?
Isso não é verdade. É possível que haja pessoas que decidiram viver dessa forma, mas não é o que eu tenho visto na maioria dos praticantes de educação domiciliar. Pelo contrário: o que eu tenho observado — e também incentivado — é a conversa com as crianças e com os jovens a fim de mostrar a eles todas as teorias; mostrar o que é opinião do autor e o que é um fato. Nós levamos a criança, e principalmente o jovem, a observar e a discutir a fim de que ele tire as próprias conclusões sobre a realidade. Quanto à formação religiosa, isso é pessoal; cada família segue as suas crenças.
Seu projeto de homeschooling não anula o currículo normal das escolas, como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular)?
A família, a mãe que escolheu educar seus filhos no ambiente doméstico não pode ser desinteressada dos currículos oficiais. A mãe homeschooler é uma mãe que vai estudar bastante, e uma das coisas que ela estuda são os currículos. E há vários tipos de currículos, como os da escola obrigatória, o clássico e outros. A mãe tem de se informar sobre a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), sobre os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). Mesmo que ela tenha uma visão clássica e liberal, ela tem de se inteirar sobre os parâmetros curriculares vigentes no país.
Outro argumento contrário ao ensino das crianças em casa é que, supostamente, esse método seria viável somente às famílias com renda acima da média. Isso é verdadeiro? Por quê?
Essa ideia de que o homeschooling é só para famílias em posição socioeconômica elevada também é falsa. Nós tivemos o privilégio de nos relacionar com famílias de vários níveis, tanto religioso quanto social. E é claro que, para algumas famílias, o projeto exigiu um grande esforço; mas havia também bastante ajuda mútua. Em certa ocasião, uma mãe chegou até mim e disse: “Eu não sei ensinar e escrever como você, mas eu me ofereço para limpar a sua casa”. Isso foi uma grande alegria para mim, porque mostrou que todos nós podemos contribuir de alguma forma. Geralmente, a mãe tem bastante força de vontade; mas falta organização. O ensino domiciliar não é um direito de poucos, hoje temos diversos recursos que podem nos ajudar.
Quais são as principais críticas contra a instituição “escola”? Como essa instituição pode ser mais eficiente?
Eu considero a realidade da instituição “escola” bastante complexa. Mas eu sou uma pessoa um tanto sonhadora, penso em como seria bom se o aprendizado livre pudesse alcançar a todos, independentemente de quem faz homeschooling ou não. Seria de grande valia se a visão de quem organiza a “escola” fosse uma visão voltada para o aluno, individualmente; que despertasse nele o amor pelo aprendizado. Hoje, nós observamos professores cansados, mas doutrinadores; preocupados em inculcar os próprios valores nos alunos — ao invés de se preocupar com o aluno em si, na sua individualidade. O fato é que muitas famílias precisam ter suas crianças nas escolas, e nós precisamos de boas escolas. Penso também em como seria bom se a “escola” pudesse contar com a ajuda da sociedade: a instituição de ensino poderia ser mais aberta, mais atenta às ideias do aluno.
É possível conciliar o ensino obrigatório com o homeschooling?
Não sei como isso poderia ser feito. Na escola, a criança já estuda tanto, então oferecer mais informações para ela pode ser problemático. Seria necessário haver uma escolha. No ambiente do ensino obrigatório não há a possibilidade de olhar para o aluno individualmente, por isso os alunos são colocados no mesmo nível. Assim, eu penso que não dá para conciliar o homeschooling com a escola. Novamente: aqui entra o elemento individual. A mãe precisa observar se o filho consegue ou não. Muitas vezes eu comecei a aplicar um currículo à minha filha, mas ela não se adaptou; então decidi mudar o currículo. A questão da educação domiciliar é olhar o menino, a menina, perceber a forma como ele e ela aprendem — e dar os estímulos de que eles necessitam. Já na escola não dá, porque a criança tem de cumprir aquele currículo rígido.
O marxista Paulo Freire foi declarado em 2012 “patrono da educação no Brasil”. Muitos críticos à educação domiciliar usam as ideias de Freire para sustentar a posição de que somente o Estado, e não a família, deve cuidar da educação. Os resultados da educação obrigatória provam que Freire estava errado?
Não investiguei o Paulo Freire — eu tenho outras coisas para investigar —, mas se os críticos usam as ideias dele a fim de fazer objeções à educação domiciliar porque, segundo eles, caberia somente ao Estado o dever de cuidar desse âmbito, eu discordo. O Estado não tem meios para observar cada criança individualmente. Para os burocratas estatais, a finalidade da educação é alcançar o indivíduo? O Estado é capaz de despertar na criança o encantamento pelo aprendizado? É claro que a resposta é não, porque são muitos estudantes para poucos instrutores — e são instrutores cansados, sobrecarregados. A família é a instância mais capacitada para educar o indivíduo; e mesmo quando ela não tem capacidade, ela decide buscar a capacitação em prol do benefício do indivíduo. A questão é que muitas famílias simplesmente não querem o homeschooling, porque preferem que o Estado cuide da educação dos seus filhos. Eu não vejo problema nessa escolha, se for uma escolha da família.
Por que a educação no lar deve ser legalizada no Brasil?
Se a escolha da família é cuidar da educação dos seus filhos, qual é o mal disso? Qual é o problema dessa escolha? O objetivo não é proporcionar benefícios à criança? Então por que o Estado não permitiria o homeschooling? A educação em casa tem de ser legalizada a fim de que qualquer pessoa, exercendo sua liberdade, cuide da educação dos próprios filhos. Muitos jovens que estudam no lar têm desempenho superior àqueles que estudam na escola em diversos testes.