Ninguém é obrigado, ou tem a necessidade, de assumir as mazelas ideológicas de nossa geração. G. K. Chesterton dizia constantemente, de inúmeras formas, que a história sempre era salva por aqueles poucos que insistiam em não serem atuais. Confesso que não sei em que medida isso é uma verdade universal, mas, em nosso tempo, ela tem uma gradação especial de realidade — principalmente quando a questão gira em torno da causa de gênero.
A pugilista argelina Imane Khelif, cujo nome pulsou nas telas de todo o mundo na última quinta-feira, 1º, venceu a italiana Angela Carini depois de uma luta brevíssima — 46 segundos. Depois de Khelif acertar um soco no rosto de Carini, a italiana pediu assistência técnica e, logo em seguida, desistiu da luta, dando assim a vitória à argelina. A italiana declarou: “Nunca tomei um soco tão forte em minha carreira.” Até aí, tudo bem, mas há uma polêmica identitária nisso tudo — como já se tornou comum em nosso tempo.
Em 2023, Imane Khelif havia sido desclassificada do Campeonato Mundial de Boxe pela Associação Internacional de Boxe (AIB), organizadora do evento. Testes de DNA feitos na argelina mostraram que ela tinha um padrão cromossômico XY. Ou seja, Khelif era geneticamente um homem. Depois desse episódio, a AIB se desentendeu com o Comitê Olímpico Internacional (COI) e foi banida da organização das lutas de boxe na Olimpíada de Paris 2024. O próprio COI se encarregou de organizar a modalidade. Sabe-se que o COI se mostrou recentemente mais permissivo na inclusão de transexuais nos esportes olímpicos, desde que a transição do atleta tenha se iniciado antes dos 12 anos — fase pré-puberdade a partir da qual as disparidades corporais entre homens e mulheres se acentuam e tornam quase inigualáveis posteriormente. Para esse assunto, recomendo o ótimo texto de 2021 “Transexuais no esporte feminino”, de Eli Vieira, para a Gazeta do Povo.
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Muitas pessoas partidárias das causas identitárias vêm defendendo Khelif nas redes, mostrando para isso uma suposta foto da lutadora quando ainda era uma pequena menina, provando assim que a boxeadora argelina não é uma transexual, mas uma mulher real. Essas publicações também dizem que a exclusão da AIB — associação que havia testado Khelif como portadora do cromossomo XY — pelo COI seria indício de sua má gestão das questões de gênero.
Isso não é verdade. Foram os escândalos de corrupção de juízes ligados à associação e desordens gerenciais a causa da destituição da AIB. A questão de gênero não foi a causa. O próprio Comitê Olímpico Argelino, em nota, depois da repercussão da vitória de Khelif sobre Carini, acusou a mídia internacional de desinformação e preconceito, mas não desmentiu ou esclareceu a questão do teste da AIB de 2023.
The IOC has sanctioned male brutality against women for amusement. Remove men from women's sports. #IStandWithAngelaCarini who should never have been forced to step into a boxing ring with Imane Khelif.
— Sophie Rain Thread 🔥❤️ (@SophieRainForum) August 1, 2024
This is all about male dominance. They actually endangered a woman's life.… pic.twitter.com/eYpKUGT26n
Fato é que, até o momento, não se sabe ao certo se Khelif é de fato uma transgênero stricto sensu, isto é, um menino que sofreu o processo de transição de gênero em suas diversas camadas. Pessoalmente, não acredito nisso, por dois motivos. O primeiro é que a Argélia é um país de maioria muçulmana, e eles definitivamente não são favoráveis ou permitiriam a proeminência — salvo por qualquer teoria da conspiração maluca que pudesse cortar essa análise — de uma transsexual numa disputa internacional, representando seu país. Seus documentos confirmam o seu sexo “feminino” declarado. No entanto, há outra tese — essa, na minha opinião, extremamente crível — que é a do “intersexo”, ou como antigamente era denominado, “hermafrodita”, que se refere àquelas pessoas que nascem sexualmente ambíguas, costumeiramente com duas genitálias, masculina e feminina, e, em alguns casos, com os dois padrões genéticos detectáveis, XX e XY, chamado de “mosaico” pelos especialistas da área.
Segundo o Dr. Leonard Sax, no livro por mim já resenhado aqui Por Que Gênero Importa?, isso ocorre quando “dois espermatozoides diferentes — um com o cromossomo X e o outro com o cromossomo Y — alcançam o óvulo no mesmo instante, e os dois fertilizam o mesmo óvulo”.
Quem trouxe a informação de que Khelif seria uma pessoa intersexo, e não uma transexual, foi Rosario Coco, presidente da Gaynet Communications, uma associação italiana de jornalistas e ativistas da causa LGBTIQ+. E, até o momento da redação desta coluna, de fato, é o que faz mais sentido diante das diversas informações que pululam na grande internet.
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A importância da testosterona
A grande revolta global diante desse caso se dá pela clara sensação de injustiça. O que é completamente compreensível, diga-se de passagem. Um homem adulto considerado saudável ostenta taxas de testosterona entre 300 a 1.000 nanogramas por decilitro (ng/dl) de sangue, enquanto as mulheres têm de 12,09 a 59,46 ng/dl; durante toda a sua vida, um homem terá de 15 a 20 vezes mais testosterona que uma mulher saudável. A diferença é brutal. Mas por que isso é importante? Porque a fase da puberdade masculina, onde esses hormônios banham o corpo para transformá-lo naquilo que a biologia determinou que ele deve ser, diferencia fisicamente homens e mulheres numa escala grandiosa.
Homens naturalmente desenvolvem músculos maiores e mais ajustados ao uso da força — um homem saudável costuma ter até 12 quilos a mais de músculos que uma mulher também saudável —, suas estruturas cerebrais, e até mesmo respiratórias, se desenvolvem de forma a dar sustentação a um uso maior e mais acentuado da força física e a garantir uma maior resistência corporal frente aos eventos em que se encontram.
O próprio COI, mais permissivo à cultura transgênero, não admite a equalização forçada dos sexos, seja por meio de tratamentos hormonais, seja pela feminilização cirúrgica. No fim, é ponto pacífico, cientificamente comprovado, que indivíduos XY têm uma estrutura corporal completamente mais forte e funcional para o combate do que indivíduos XX; todo o corpo masculino foi projetado para ser mais resistente e mais funcional em tarefas que exigem majoritariamente o uso da força e da resistência. Novamente, recomendo muito o texto citado anteriormente de Eli Vieira.
O que isso tudo nos mostra? Basicamente, que a ideologia vem vencendo a razão e a ciência. Ainda que exista um laudo apontando que Khelif é um homem, e que isso lhe dá uma enorme vantagem física sobre qualquer mulher em cima de um ringue, ainda assim o COI resolveu aceitá-la como sendo mulher em seu sentido pleno, como as demais boxeadoras, restringindo-se, apenas, a afirmar que ela passou nas nebulosas e politizadas políticas que a comissão julgou serem adequadas para a situação. Quando a ideologia vence a realidade, quem sofre são as pessoas que geralmente sobrevivem dessa própria realidade.
Carini tem regras rígidas de enquadramento esportivo; um comprimido que ela tome fora da norma médica pode lhe custar toda a carreira de pugilista, mas, noutro canto, pode haver um adversário com 15 vezes mais testosterona e estrutura corpórea completamente mais ajustada ao combate que o dela — tudo isso sob a chancela do COI e aplausos da militância progressista. Isso não é normalizável.
É claro que não devemos fazer de Imane Khelif um bode expiatório; possivelmente ela tem uma condição genética raríssima, cuja adequação e resolução no campo do esporte definitivamente não é algo fácil de ser vislumbrada. Principalmente porque, de fato, muito possivelmente ela foi criada a vida inteira como uma menina/mulher, ainda que sua genética não diga isso. Seria simplesmente cruel derrubar sobre sua cabeça nossa indignação moral contra o identitarismo político. O identitarismo é um conjunto de ideias que tenta a todo custo modificar a realidade por meio de uma pregação militante ostensiva, principalmente por meio das mídias e universidades, e se temos que combater tal mal, acredito piamente que esse combate começa antes no campo das ideias.
O caso de Khelif é raro, de tratamento profissional, e não ideológico. Requer muito mais da medicina do que da filosofia ou do jornalismo, ainda que, quando ela tenha sido aceita como pugilista feminina, tenha atravessado claramente uma linha que os profissionais da área, sabedores de sua condição, não deveriam ter permitido que ela cruzasse.
Fato é que, no final, o feminismo radical, a cultura woke e demais grupos progressistas conseguiram uma coisa impensável: a normalização de um homem genético socando a cara de uma mulher diante do mundo inteiro sob um ar de normalidade.
Indignação é vitória contra irracionalidade do identitarismo
Se, como disse, não devemos descarregar ódios em Khelif, é completamente compreensível a indignação popular ante o contexto que a envolve. E isso está muito além da própria argelina; a indignação é antes com a vitória de uma cultura irracional sobre a razão mais elementar, de uma pregação ideológica sobre a ciência mais básica. A indignação popular é a única arma do homem comum contra toda essa patifaria bizarra; é o modo como o seu Sebastião e a dona Ana podem externalizar sua revolta política e humana contra isso tudo, por isso não é censurável.
Antonio Risério, em seu novo livro Identitarismo — que logo resenharei aqui — afirma que a esquerda, no afã de defender minorias, acabou criando uma casta fascista que destila ódio irracional sob uma pintura vagabunda de tolerância. É isso: o identitarismo venceu dentro e fora do ringue, e crueldade não é denunciar tal descalabro, mas sim assistir passivos, com cara de normalidade bisonha, a um homem socar uma mulher às 9 horas da manhã em uma Olimpíada qualquer. Como eu disse no começo do artigo, ninguém é obrigado a aceitar as loucuras de sua geração.
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Interessante que “elu” escolheu o boxe como esporte, no qual seria imbatível. Toda vez que há uma “inclusão ” há uma exclusão.
Muito bem descrita essa condição estapafúrdia à qual foi submetida a atleta feminina, uma atleta de alto nível em sua modalidade sendo afrontada pela militância ostensiva que quer impor sua ideologia de forma egoísta ao extremo impondo um homem feito a socar o rosto de uma mulher em uma luta tosca, nada esportiva e pra lá de desigual… mas a histeria identitária é tão extrema que muita gente ainda acha que isso tá certo e que é “inclusivo”… tempos sombrios!