Discreto, o ex-presidente da Americanas, gigante do varejo brasileiro, era praticamente desconhecido para o público. Miguel Gutierrez evitava entrevistas à imprensa, mantinha-se distante de investidores e analistas e há poucas fotos públicas do executivo. Mesmo assim, ele acabou ficando famoso.
Em janeiro de 2023, quando o escândalo que envolveu uma fraude contábil de R$ 25 bilhões eclodiu na empresa, de 95 anos, e manchou a reputação de seus acionistas bilionários, o carioca se mudou para a Espanha, enquanto as investigações continuam no Brasil.
Um inquérito interno realizado por um comitê independente contratado pela Americanas aponta diretamente para Gutierrez como mentor de um esquema que levou a varejista à recuperação judicial e tirou o emprego de 5 mil funcionários.
Ex-presidente da Americanas e investigação
Uma investigação do Congresso trouxe a público documentos revelados pela companhia que alegam que Gutierrez e membros de sua diretoria-executiva falsificaram contratos publicitários e ocultaram empréstimos tomados por meio de uma estrutura chamada de risco sacado. O intuito foi esconder dívidas da Americanas e aumentar os lucros.
Os investidores da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), da Polícia Federal, do Ministério Público (MP) e do comitê interno independente da Americanas ainda tentam descobrir o funcionamento interno do esquema.
Dois executivos seniores aceitaram acordos de delação premiada e concordaram em cooperar com as autoridades. Gutierrez negou qualquer irregularidade.
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, um repórter bateu na porta da casa do ex-presidente da Americanas em Madri, mas saiu sem resposta.
Se Gutierrez for acusado em processos judiciais, ele seria a primeira grande figura interna da varejista a enfrentar graves consequências da investigação.
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Quando o escândalo veio à tona no início do ano passado, alguns credores e até mesmo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriram que os três maiores acionistas da Americanas — os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira — tinham conhecimento do suposto esquema ou até mesmo participaram dele.
Os três negaram qualquer conhecimento ou envolvimento na fraude. Embora tenham enfrentado perdas com seus investimentos na Americanas, eles representam uma fatia pequena das suas participações que cada um deles fechou 2023 mais rico, com um aumento de cerca de 10% nas suas fortunas, segundo o Índice de Bilionários da Bloomberg.
Eles adquiriram a Americanas em 1982, o que torna a empresa um dos investimentos mais antigos dos bilionários. A sua participação mais valiosa é a Anheuser-Busch InBev, a maior cervejeira do mundo.
Em e-mail enviado à agência Bloomberg, os advogados de Gutierrez “negaram veementemente” que ele tenha participado de quaisquer atividades ilícitas enquanto trabalhava na Americanas.
Eles afirmaram que os atuais executivos estão usando documentos fora de contexto na tentativa de criar uma narrativa falsa para proteger o conselho de administração e os maiores acionistas.
Trajetória de Gutierrez na empresa
Gutierrez avançou na hierarquia da empresa durante três décadas, ocupando cargos em operações e logísticas. Ele foi preparado por Sicupira, que primeiro comandou a Americanas como presidente, quando ele e os outros dois bilionários compraram a empresa.
Gutierrez era discreto, eficiente e sempre encontrava formas de cortar custos.
Com o tempo, os três bilionários depositaram cada vez mais confiança em Gutierrez, enquanto passavam a maior parte do tempo fora do Brasil e se concentravam em muitos outros investimentos.
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No começo de 2022, o conselho da Americanas resolveu substituir Gutierrez pelo conhecido executivo Sergio Rial.
O executivo carioca ficou chateado, porque alguém de sua própria equipe não sucederia a ele, segundo Rial durante a investigação do Congresso. Ele também afirmou que o período de transição de quatro meses foi difícil.
Depois de apenas dez dias no cargo, Rial anunciou as “inconsistências contábeis” e pediu demissão.
Na época, o trio bilionário emitiu um comunicado em que dizia que “nunca teve qualquer conhecimento e nunca teria tolerado quaisquer manobras ou truques contábeis na empresa. A nossa atuação ao longo de décadas sempre foi de rigor ético e legal”.
As ações da Americanas caíram quase 80% em um único dia, e os títulos de dívida externa caíram para menos de US$ 0,20.
Durante a investigação do Congresso, que durou quatro meses, o atual presidente da Americanas, Leonardo Coelho, apresentou conclusões que, segundo ele, vieram do comitê interno, sugerindo que Gutierrez e sua equipe criaram contratos de publicidade falsa como forma de reduzir passivos com fornecedores.
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