O jornal Gazeta do Povo encaminhou, na quarta-feira 12, uma manifestação à Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). No texto, o veículo destaca o protagonismo das instituições nacionais em relação à censura e à violação da liberdade de imprensa.
A Gazeta protocolou a manifestação em decorrência da visita do CIDH ao Brasil, que ocorre nesta semana. O jornal alega que, “nos últimos anos, testemunhamos um processo de restrição crescente à liberdade de expressão, com medidas tomadas em total contrariedade à Constituição”.
“A normalidade institucional, que deveria ser assegurada pelas instâncias jurídicas, tem sido sistematicamente ameaçada por decisões judiciais que restringem o debate público, silenciam vozes dissidentes e estabelecem um clima de insegurança para jornalistas, analistas e cidadãos”, ressalta a Gazeta.
+ Leia mais notícias de Imprensa em Oeste
Segundo a Gazeta, o Supremo Tribunal Federal (STF) mantém a prática de abrir processos sigilosos, nos quais os magistrados atuam “simultaneamente como vítimas, investigadores e julgadores”. O veículo considera essa conduta um exemplo claro de ação persecutória.
O veículo recorda que, em agosto de 2024, a Folha de S.Paulo denunciou a existência de um grupo informal ligado ao ministro Alexandre de Moraes dentro do STF.
Na ocasião, a Folha notificou que a unidade, composta do magistrado, de assessores e de integrantes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), usava o setor de combate à desinformação da Corte Eleitoral como um braço investigativo do STF contra críticos e opositores.
“Em agosto de 2024, o jornal Folha de S.Paulo revelou que o ministro Alexandre de Moraes criou uma unidade informal dentro do Judiciário para produzir e modificar relatórios que embasavam decisões em casos do STF sob sua supervisão”, escreve a Gazeta.
Além disso, o veículo destaca o caso do ex-deputado federal Daniel Silveira, que teve sua imunidade parlamentar violada. Naquela circunstância, o tribunal condenou Silveira a oito anos e nove meses de prisão em regime fechado por declarações ofensivas aos ministros da Suprema Corte.
De acordo com a Gazeta, os magistrados “poderiam, no máximo, justificar uma sanção política aplicada pelo Legislativo, mas jamais uma punição criminal imposta pelo Judiciário”.
Gazeta do Povo cita perseguição a Guilherme Fiuza e Flávio Gordon
A Gazeta também ressalta o banimento de perfis em redes sociais de indivíduos que questionavam decisões do STF em diferentes contextos. Para o jornal, “essas decisões judiciais têm o evidente cariz de censura prévia”, que “só aumenta o efeito inibidor sobre o trabalho da imprensa e de analistas políticos”.
Nesse contexto, o veículo destaca o caso do jornalista Allan dos Santos, que teve sua casa invadida pela Polícia Federal (PF) em maio de 2020 depois de criticar instituições e parlamentares.
“Além de ter normalizado a derrubada de páginas em redes sociais e a desmonetização de canais, o Judiciário brasileiro chega a determinar que alguns cidadãos não têm o direito de criar perfis nas redes, como nos casos do jornalista Allan dos Santos e do influenciador Monark”, afirma a Gazeta.
Leia também: “Bolsonaro relata conduta de Moraes em reunião com comitiva da OEA”
As decisões persecutórias afetaram, inclusive, o jornalista Guilherme Fiuza e o antropólogo Flávio Gordon, ambos colunistas de Oeste. Eles tiveram suas redes sociais banidas por medidas que evidenciam a parcialidade política das instituições nacionais.
“Flávio Gordon foi banido do X por determinação do TSE, unicamente por questionar a segurança das urnas eletrônicas”, lembra a Gazeta do Povo. “Guilherme Fiúza também teve suas redes sociais banidas e só pode reavê-las no último dia 7 de fevereiro.”
Leia a manifestação da Gazeta do Povo na íntegra:
A Gazeta do Povo saúda a vinda da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil para acompanhar de perto os desafios enfrentados pela democracia brasileira. A presença desta Comissão representa uma oportunidade importante de reafirmar os princípios do Estado de Direito e contribuir para que a normalidade institucional seja restaurada em nosso país. A vigilância internacional sobre o respeito aos direitos humanos é decisiva para que abusos sejam corrigidos e não se consolidem como práticas institucionalizadas.
Como jornal comprometido com os valores democráticos, com a informação de qualidade e com o debate público responsável, a Gazeta do Povo, que completou 106 anos no último dia 3 de fevereiro, sente a necessidade de contribuir com o trabalho da Comissão, oferecendo um relato fidedigno e equilibrado, embora sucinto, do que entende serem os abusos que vêm sendo perpetrados contra a liberdade de expressão no país.
Embora o Brasil tenha uma tradição de imprensa livre e vibrante, nos últimos anos testemunhamos um processo de restrição crescente à liberdade de expressão, com medidas tomadas em total contrariedade à Constituição. A normalidade institucional, que deveria ser assegurada pelas instâncias jurídicas, tem sido sistematicamente ameaçada por decisões judiciais que restringem o debate público, silenciam vozes dissidentes e estabelecem um clima de insegurança para jornalistas, analistas e cidadãos.
No conjunto, trata-se de restrições extraordinárias, em geral tomadas sem transparência e com uma fundamentação, quando existente, incompatível com os critérios legais e políticos que regem as nações democráticas. As medidas ferem diferentes princípios constitucionais ligados à liberdade de expressão. Dentre eles, podemos citar:
– Desrespeito ao devido processo legal: A abertura, pelo STF, de sucessivos inquéritos sigilosos sem objeto específico, permitindo que ministros atuem simultaneamente como vítimas, investigadores e julgadores, violando o sistema acusatório, ofereceu o arcabouço central que facilitou todos os demais abusos. O chamado inquérito das fake news é o mais longevo, tendo sido aberto há quase seis anos. Inúmeros cidadãos, incluindo críticos ao STF, em razão dessas críticas e em situações muito diversas, foram objeto de investigação, em um modus operandi que, independentemente das disposições dos ministros, pode ser caracterizado como perseguição. Não há nenhuma previsão oficial quanto ao seu encerramento.
Além disso, investigações sigilosas e decisões judiciais que afetam a liberdade de expressão têm sido implementadas sem permitir amplo direito de defesa, comprometendo a previsibilidade do sistema jurídico e gerando um ambiente de medo. Em agosto de 2024, o jornal Folha de S.Paulo revelou que o ministro Alexandre de Moraes criou uma unidade informal dentro do Judiciário para produzir e modificar relatórios que embasavam decisões em casos do STF sob sua própria supervisão. Esses documentos eram usados para justificar medidas restritivas contra indivíduos previamente selecionados por Moraes, que determinava até mesmo quais postagens em redes sociais deveriam ser alvo de investigações. Sua equipe pressionava servidores do tribunal a cumprir ordens fora dos trâmites judiciais normais.
– Violação da imunidade parlamentar: A liberdade de expressão mais ampla assegurada pelo princípio da imunidade parlamentar material, prevista no art. 53 da Constituição Federal, foi relativizada e desconsiderada em casos como o que envolveu o deputado Daniel Silveira. Ele foi condenado a oito anos e nove meses de prisão em regime fechado por declarações agressivas contra ministros do STF, que poderiam, no máximo, justificar uma sanção política aplicada pelo Legislativo, mas jamais uma punição criminal imposta pelo Judiciário. O mesmo abuso ocorreu com o deputado Roberto Jefferson, preso preventivamente no inquérito das “milícias digitais” sem foro privilegiado e sem um crime tipificado de forma clara, quando a lei determina que casos desse tipo devem ser processados na primeira instância.
– Violação do princípio da tipicidade penal: Conceitos como “desinformação” e “discurso de ódio”, que não têm previsão legal e não caracterizam por si sós tipos penais, têm sido usados para investigar e processar cidadãos, em um evidente abuso judicial.
– Confusão entre fato e opinião e o uso indevido do conceito de fake news: O conceito de “desinformação” tem sido utilizado também para justificar remoções de conteúdo e sanções, transformando tribunais em árbitros da verdade, sem transparência nos critérios adotados, e ferindo o princípio de que o direito de crítica, sobretudo de autoridades e atuações públicas, é o mais amplo possível. Com efeito, etiquetar uma manifestação opinativa como “desinformação”, em uma evidente e inaceitável confusão entre fato e opinião, tem o efeito de reduzir o alcance da liberdade de crítica. Durante as eleições de 2022, o TSE ordenou o banimento de perfis e conteúdos que questionavam a integridade do sistema eleitoral. O economista Marcos Cintra, por exemplo, foi alvo dessa censura apenas por apontar, com base em dados oficiais do próprio TSE, que Bolsonaro teve zero voto em centenas de urnas, questionando se havia uma explicação para o fenômeno. Apesar do tom moderado e da ausência de qualquer acusação direta de fraude, o STF determinou a exclusão do tuíte, classificou-o como “fake news”, impôs censura prévia a Cintra proibindo novas postagens suas sobre o tema, sob pena de multa diária de R$ 20 mil reais, e ordenou que a Polícia Federal fosse à sua casa para notificá-lo e interrogá-lo. Sua conta no X foi bloqueada e a plataforma foi obrigada a fornecer seus dados ao tribunal. Inúmeros outros conteúdos, como, por exemplo, análises futuras sobre a possível atuação de candidatos se eleitos – algo que jamais poderia ser caracterizado como factual –, foram retirados em período eleitoral.
– Sanções desproporcionais e arbitrárias: Medidas como bloqueio de redes sociais, desmonetização de canais e remoção de perfis têm sido aplicadas sem previsão legal e em evidente ofensa ao princípio da proibição de sanções excessivas (pelo efeito inibidor que têm no âmbito da liberdade de expressão). Jornalistas e cidadãos têm sido vítimas de uma verdadeira “morte civil digital”, sem direito ao contraditório. Um inegável ambiente de repressão do discurso no mundo digital tem sido instaurado no país.
– Avanço da censura prévia: Além do caráter desproporcional dos “banimentos” de perfis em redes sociais, essas decisões judiciais têm o evidente cariz de censura prévia, por impedirem quaisquer manifestações futuras de seus titulares. Excessivas, portanto, e incompatíveis com o princípio da proibição da censura prévia, o que só aumenta o efeito inibidor sobre o trabalho da imprensa e de analistas políticos. Além de ter normalizado a derrubada de páginas em redes sociais e a desmonetização de canais, o Judiciário brasileiro chega a determinar que alguns cidadãos não têm o direito de criar perfis nas redes, como nos casos do jornalista Allan dos Santos e do influenciador Monark. Em outubro de 2022, o TSE proibiu a exibição do documentário “Quem Mandou Matar Jair Bolsonaro?”, produzido pela Brasil Paralelo, até o final do segundo turno das eleições. A decisão foi tomada antes mesmo da veiculação do conteúdo.
– Violação do Marco Civil da Internet: O avanço das cortes superiores sobre a regulação do ambiente digital não se deve a uma lacuna legislativa, mas sim a um ativismo judicial que ignora os limites estabelecidos em lei. O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece que plataformas digitais não podem ser obrigadas a remover conteúdos sem ordem judicial específica e fundamentada. No entanto, o STF e o TSE inovaram juridicamente ao criar normas próprias para remover conteúdos de ofício, sem necessidade de provocação externa. Em 2022, por sugestão de Alexandre de Moraes, o tribunal aprovou uma resolução concedendo à presidência do TSE o poder de ordenar a remoção de conteúdos sem pedido de candidato, partido ou Ministério Público Eleitoral. Além disso, impôs multas de até R$ 150 mil por hora para descumprimentos e permitiu a suspensão preventiva de perfis e canais acusados de “desinformação”, mesmo sem decisão judicial específica. A aplicação dessas medidas em desacordo com o Marco Civil da Internet abriu um precedente perigoso para a censura de conteúdos jornalísticos e políticos.
Como se nota, sob a justificativa de combater desinformação e discursos perigosos, as cortes superiores vêm restringindo o espaço de discussão sobre temas fundamentais para a sociedade brasileira. O resultado é um ambiente em que jornalistas e cidadãos são obrigados a medir cada palavra, temendo sanções que podem ir da remoção de conteúdos ao banimento de plataformas.
Um caso que atingiu diretamente a Gazeta do Povo foi a remoção de uma publicação no X (antigo Twitter), determinada pelo TSE em 2022. A publicação censurada noticiava a suspensão do sinal da CNN pela ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua. O conteúdo fazia alusão ao apoio do presidente Lula a Ortega. O ministro que julgou o pedido, Paulo de Tarso Sanseverino, alegou que houve “campanha difamatória” do jornal contra Lula. O episódio gerou reações de parlamentares, jornalistas e entidades como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), que alertaram para os riscos de se consolidar um ambiente onde a crítica legítima se torna motivo para sanções arbitrárias.
Alguns colunistas da Gazeta do Povo também foram alvos de censura. Rodrigo Constantino teve suas redes sociais e contas bancárias bloqueadas e seu passaporte cancelado por ordem do ministro Alexandre de Moraes, sem que houvesse qualquer acusação formal, apenas por expressar opiniões políticas. Flávio Gordon foi banido do X (antigo Twitter) por determinação do TSE, unicamente por questionar a segurança das urnas eletrônicas. Guilherme Fiúza também teve suas redes sociais banidas e só pode reavê-las no último dia 7 de fevereiro. A inclusão desses jornalistas em inquéritos sigilosos, sem que tenham conhecimento exato das razões ou acesso pleno às acusações contra eles, cria um ambiente de intimidação e reforça o efeito de autocensura na imprensa brasileira.
A censura judicial direta é apenas um dos elementos do problema. Um dos efeitos mais danosos das recentes decisões dos tribunais superiores é a criação de um clima de medo e insegurança, que leva jornalistas e veículos de imprensa a evitar temas considerados sensíveis. Questões como a confiabilidade do sistema eleitoral ou as decisões do STF se tornaram delicadas a ponto de serem tratadas com extrema cautela, não por razões éticas ou editoriais, mas por receio de represálias judiciais.
Esse ambiente representa uma ameaça real à função essencial da imprensa de fiscalizar o poder e garantir que a sociedade tenha acesso a informações relevantes para a formação de sua opinião. Quando jornalistas precisam pensar duas vezes antes de publicar análises sobre instituições públicas, a transparência e a accountability são comprometidas, e a democracia perde um de seus principais instrumentos de controle social.
Embora a Gazeta do Povo não esteja entre os veículos mais diretamente atingidos pela censura, sua cobertura jornalística tem permitido sentir de perto os impactos concretos dessas restrições sobre indivíduos e grupos que enfrentam sanções arbitrárias.
A visita da CIDH ao Brasil ocorre em um momento em que o país precisa urgentemente reafirmar seus compromissos com a democracia e os direitos fundamentais. A liberdade de imprensa e o direito ao devido processo legal são princípios inegociáveis, e qualquer tentativa de relativizá-los deve ser vista com preocupação.
A censura imposta pelo Judiciário brasileiro, seja por meio da remoção de conteúdos, do bloqueio de perfis ou da criminalização da opinião, tem avançado de forma alarmante. Se não for contida, pode se tornar um mecanismo irreversível de controle da informação e de repressão ao debate público.
Agradecemos a oportunidade de apresentar este relato e nos colocamos à disposição para fornecer mais informações e esclarecimentos sobre os temas abordados. Seguiremos firmes na defesa da liberdade de expressão e do direito à informação, princípios essenciais para a preservação da democracia no Brasil e no mundo.