A polarização política tem inúmeras consequências na sociedade, e, por vezes, por estarmos envoltos no véu constante de ataques ideológicos, lados partidários e brigas de tribos, tendemos a nos esquecer que enxergar a realidade para além das propagandas e acusações de turbas deveria ser um exercício diário de sanitização mental. Os polos políticos têm o pleno direito de existir numa democracia —, aliás, é bom que eles existam —, mas a independência interpretativa, a já referida sanidade da consciência analítica, deveria ser sempre a prática virtuosa dos indivíduos ante a esse vespeiro sócio-político.
E entre todos os profissionais que lidam diuturnamente com essa realidade tribal da política contemporânea, aqueles que, por princípio, deveriam buscar uma análise sóbria e factual da realidade, os jornalistas, acabam sendo os mais expostos aos males da infecção ideológica e ao sensacionalismo imediato de seus trabalhos. Essa é a temática do excelente e curto romance do alemão Heinrich Böll, A honra perdida de Katharina Blum; uma das obras mais polêmicas lançadas pelo ganhador do prêmio Nobel de 1972 e, infelizmente, ainda pouco conhecida no Brasil. Apresentado ao grande público em 1974, A honra perdida de Katharina Blum conta-nos o drama de Katharina Blum, uma jovem mulher divorciada que, após ser convidada para uma festa casual na casa de amigos, tem um breve flerte com um homem misterioso, os dois dançam na frente de todos e, ao final, acabam no apartamento de Blum. Pela manhã ela acorda — sem a presença do homem — e com a polícia batendo em sua porta, perguntando sobre o referido homem que havia dormido com ela. Segundo os policiais, o homem era um criminoso perigoso que estava sendo vigiado pela polícia durante dias — inclusive no fatídico dia anterior, quando ela e ele estavam juntos na festa e em seu apartamento.
A partir desse momento — e desse enredo —, Heinrich Böll constrói uma competente trama sobre como a mídia, em especial O Jornal — assim mesmo escrito —, começa a criar ilações e a construir narrativas paralelas ao acontecido a fim de culpar Katharina por um suposto acobertamento do criminoso. Dia após dia, a cada novo detalhe revelado da vida pessoal de Blum, através de vazamentos seletivos da polícia aos jornalistas, O Jornal conecta tais particularidades íntimas a conclusões ficcionais pré-estabelecidas pela redação e pelo sensacionalismo esperado pela população. Os fatos não importam. A história que Katharina tem a contar não importa. Em dado momento, parece-nos que nem mesmo o criminoso importa mais. Importa tão somente aquilo que o jornal quer editar e aquilo que os leitores querem ouvir: “Katharina é uma desonrada mulher que encobertou um perigoso criminoso”, se isso é ou não verdade, novamente, não importa, a questão agora é que isso tem que ser a verdade, custe o que custar.
Os contornos que circundavam Böll na Alemanha ocidental naqueles dias não eram totalmente diferentes do que ele relata no romance; na verdade, o romance é uma crítica sagaz a um dos tabloides alemães mais famosos daquele momento — e ainda hoje existente —, Bild. Böll seria vítima dos redatores sensacionalistas do referido veículo, que o acusava de ser comunista e um agitador intelectual infiltrado, ideologicamente afetado pelo lado oriental do muro. O romance é tão bem construído pelo autor alemão que, à medida que avançamos as páginas, começamos a sentir uma angústia misturada à raiva, dados os absurdos perpetrados pelos jornalistas; somente alguém que sofreu isso na pele saberia dar-nos a sensação exata dessa pira consumidora de honras. O que relata Böll, ao fim, é o que hoje costumeiramente chamaríamos de “cultura do cancelamento”, ainda que com detalhes, meios e operários do cancelamento, por vezes, diferentes daquele que talvez ele vislumbraria na década de 1970.
A crítica ao jornalismo irresponsável, parcial e incompetente é uma das melhores que pessoalmente li no mundo literário até hoje, pois, o que por vezes podemos considerar “exageros de liberdade poética” de Böll no romance, assustadoramente assistimos a acontecer hoje no mundo real. Não sei se tecnicamente A honra perdida de Katharina Blum pode ser denominado “distopia” — para mim, ele é estruturalmente mais um romance crítico genial —, todavia, se hoje ele se aproxima dos textos distópicos do século XX é muito mais por culpa do jornalismo militante e ideológico do século XXI do que pela vontade do autor em si.
Certa vez, conversando sobre o livro com um professor emérito da Universidade Federal de São Paulo, dizia a ele que achava que Heinrich Böll mirou a mídia sensacionalista e irresponsável de sua época e acertou em cheio uma cultura autoritária de emudecimento seletivo que as ideologias modernas utilizariam para calar e desacreditar seus adversários. Não é nada incomum isso acontecer nas literaturas do século XX, diga-se de passagem. Por exemplo, George Orwell fez o mesmo que Böll com a “novilíngua” em seu 1984, Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo, com o “Soma”, a droga que trazia prazer e entorpecimento instantâneo a fim de sublimar as aporias e depressões da existência, tudo isso pode ser paralelamente ligado a pelo menos uma dúzia de novos dispositivos, e a outros tantos novos vícios contemporâneos… e voilà, estou eu aqui comparando o romance de Böll às distopias.
Com uma edição primorosa da editora Carambaia, tradução direta realizada por Sibele Paulino, e posfácio de Paulo Soethe, professor da Universidade Federal do Paraná e estudioso das obras de Heinrich Böll, a obra contém 136 páginas de um romance digno e profundo, apesar de curto e direto. Se vocês procuram um bom romance para o final de semana, para ler “numa sentada só”, um que mostrará até onde pode ir um jornal sensacionalista e parcial na destruição da vida dos indivíduos que eles escolhem como “bodes expiatórios” para engordarem seus contracheques, aumentarem seus assinantes ou simplesmente para darem razão às insanidades de suas ideologias, eis o texto que indico. Não irão se arrepender.
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