LVIV — A invasão na Ucrânia fez a política de imigração mudar radicalmente na Europa central. Depois de anos mostrando resistência à recepção de refugiados, países como Polônia, Hungria, Romênia e Grécia abriram completamente suas fronteiras para receber mais de um milhão de ucranianos em fuga. Segundo a agência de refugiados da Organização das Nações Unidas (ONU), a Acnur, podemos estar diante da maior crise de refugiados deste século na Europa.
“Até 24 de fevereiro eu vivia em Kharkiv (nordeste da Ucrânia), mas naquele dia acordei às cinco da manhã com as bombas explodindo”, disse a refugiada Alina, 24 anos, que pediu para não divulgar seu sobrenome por questão de segurança. “Então empacotei tudo o que consegui e fugi para a cidade de Kremenchuk [região central do país]”. Kharkiv, a antiga capital soviética na Ucrânia, foi uma das cidades mais bombardeadas na invasão russa até o momento. Foi uma das primeiras localidades onde instalações civis, como praças e hospitais, foram alvos de bombardeios supostamente deliberados.
“Mas não acho que poderei voltar para Kharkiv, a cidade foi totalmente destruída”
A jovem e sua mãe estavam entre as centenas de pessoas que tentavam embarcar em um trem lotado partindo da cidade de Lviv, na Ucrânia, para Przemysl, na Polônia, na última quinta-feira, 3. “Não é justo o que está acontecendo, nós não merecemos isso. Estou com muito medo do que vai acontecer”, afirmou. Alina torce muito para que o exército ucraniano vença, e para que um dia possa retornar em segurança a seu país. “Mas não acho que poderei voltar para Kharkiv, a cidade foi totalmente destruída”.
Como Alina e sua mãe, refugiados de todos os pontos da Ucrânia estão se dirigindo para Lviv, a maior cidade do oeste do país. Além do trem, de lá saem dezenas de ônibus, diariamente, para a Polônia e para a Eslováquia. Segundo a ONU, a Polônia havia recebido mais de 500 mil refugiados só na primeira semana de guerra. Parte deles tem a intenção de se dirigir para a fronteira da Alemanha. A Hungria recebeu quase 140 mil pessoas, Moldova, 97 mil, e Romênia, 50 mil. A Rússia também recebeu refugiados ucranianos — cerca de 50 mil.
Quem apostaria em ver a Europa de braços abertos para milhares de imigrantes há quatro meses? Entre outubro e novembro de 2021, ao menos 17 mil imigrantes do Iraque, Síria e Afeganistão tentaram cruzar a fronteira polonesa. Chefes de Estado e autoridades da União Europeia acusaram o presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, de ter incentivado a imigração, fazendo a promessa falsa de que imigrantes ilegais viveriam facilmente na Europa. Tropas polonesas e a polícia de fronteira foram mobilizadas e milhares de imigrantes ficaram encurralados entre os guardas ucranianos e as forças polonesas. Lukashenko acabou levando os imigrantes de volta a seus países de origem, mas o episódio reforçou uma posição anti-imigração que já vinha sendo difundida há anos em países como Polônia, Hungria e Grécia.
Solidariedade em tempos de guerra
O que se vê hoje é o contrário. Centenas de voluntários poloneses surgiram sem nenhum tipo de convocação ao longo de toda a fronteira no terceiro dia de guerra. Eles trouxeram toneladas de comida, roupas, cobertores e brinquedos doados pelas comunidades locais. O Estado também se organizou. O processo de imigração foi facilitado com a suspensão de regras da pandemia de covid e a simplificação da análise de documentos. Além disso, todos os trens da Polônia foram colocados à disposição dos refugiados gratuitamente, hotéis foram reservados só para imigrantes, escolas e prédios públicos foram transformados em centros de acolhida. Quem necessita tem acesso imediato à assistência médica.
Medidas semelhantes foram tomadas pelos outros países vizinhos. A Hungria e a Romênia estão dando dinheiro para que os refugiados comprem comida e roupas. As crianças podem ser matriculadas em escolas locais, se os pais assim o desejarem. Todos os refugiados de guerra da Ucrânia poderão passar ao menos três anos na União Europeia, de acordo com o planejamento que está sendo colocado em prática pelo bloco.
Mas uma grande parte deles, se pudesse, voltaria antes desse prazo. Os ucranianos não estão imigrando em busca de melhores condições de vida. Eles estão saindo de seu país porque estão com medo. “Eu vim aqui na estação para colocar a minha mulher e minha filha em um trem para Berlim, onde eu tenho familiares”, disse Alex, que também pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome. “Quero ficar e lutar. Temos de defender nosso país”, afirmou. Ele trabalhava em uma empresa de transportes e logística e nunca teve treinamento militar. Saiu de sua casa, em Odessa, um dia depois do início da invasão e chegou na quinta-feira, 3, na estação de trens de Lviv.
Assim como muitos ucranianos, Alex não culpa a população russa pela guerra, mas sim o presidente Vladimir Putin, a quem considera um louco fascista. “Tenho muitos amigos na Rússia que perderam dinheiro e seus trabalhos por causa dessa guerra”, disse. “Eles não sabem o que fazer, estão sofrendo também”. A moeda russa desvalorizou 30% com as sanções ocidentais impostas ao país e depois se recuperou um pouco. A desvalorização final ficou na casa de 20%. O país foi desligado do sistema Swift de transações bancárias internacionais e não pôde utilizar suas reservas de US$ 630 bilhões para conter a desvalorização.
Recepção aos refugiados
Cruzar a fronteira da Ucrânia para a Polônia não tem sido uma tarefa fácil. O tempo de espera em filas para passar pela imigração ucraniana para a Polônia tem sido de aproximadamente 60 horas. Na fronteira com a Romênia, as filas estão durando cerca de 20 horas. “Estamos há vários dias viajando”, afirmou o jovem Kostczka com a família a caminho de um trem. “Deixamos tudo, meu computador, meu cachorro, agora só temos essas malas aqui”.
Quando chegam nos países vizinhos, a maioria dos refugiados está faminta e exausta. Eles recebem ajuda de “exércitos” de voluntários desses países. Famílias polonesas estão se organizando para alugar casas ou oferecer suas próprias residências para os refugiados. A explicação para isso está na solidariedade e na identificação cultural com os ucranianos. Mas também na rivalidade histórica da Polônia em relação à Rússia, que invadiu o país e o anexou à União Soviética após a expulsão dos alemães na Segunda Guerra.
Analistas militares têm opiniões divididas se a Rússia esperava ou não que a onda atual de refugiados desestabilizasse a Europa. Por enquanto, os refugiados têm feito a Europa mais forte moralmente em sua união contra a invasão russa. Mas, se o conflito se arrastar por anos, não é possível saber se a presença dos refugiados vai causar algum tipo de desgaste para governantes europeus. A Alemanha e a Grécia estão mandando tendas, cobertores e máscaras para a Eslováquia, e a França enviou suprimentos médicos para a Polônia.
Além de garantir a permanência por três anos nos países do bloco, a União Europeia estuda medidas para oferecer políticas de bem-estar social aos refugiados durante esse período. A ideia é que eles tenham acesso a moradia, assistência médica e educação, provavelmente de forma gratuita. A União Europeia estima que cerca de 4 milhões ucranianos procurem refúgio nos 27 países do bloco durante a guerra e disse que os receberá “de braços abertos”.
Deslocados internos
A ONU também estima que, além das ondas de refugiados que deixam o país, a Ucrânia terá de lidar com pelo menos 160 mil deslocados internos. Essas são as pessoas que decidiram deixar suas casas e procurar áreas mais seguras dentro da própria Ucrânia. Enquanto as tropas russas avançam em um possível movimento de pinça para isolar todo o território ucraniano a leste do rio Dnieper, milhares seguem para o oeste para escapar do cerco.
O porto seguro desses deslocados é Lviv e seus arredores. É possível achar pessoas de todo o país na cidade, que já está com a maioria de seus hotéis lotados. Paul viajou com a mãe da vila de Sumy — uma das primeiras a ser invadida pelos russos – foi para a capital Kiev e depois para Lviv. “Vou colocar ela agora em um trem para a Polônia e ver se consigo ser voluntário aqui em Lviv para ajudar na saída das pessoas”, afirmou o rapaz de 25 anos.
Os alarmes de ataque aéreo soam quase diariamente na cidade, mas a sensação geral da população é que a região está a salvo dos russos. O músico Iann (que também só se identificou pelo primeiro nome) estava começando uma viagem para a Grã Bretanha para estudar quando a guerra começou. “Tenho 20 anos, então não vou mais conseguir cruzar a fronteira”, contou o jovem. Iann se refere ao fato de que autoridades de fronteira da Ucrânia estão tentando evitar que homens entre 18 e 60 anos deixem o país. Eles estão em idade militar e devem ficar para combater os russos. “Decidi ficar em Lviv para atuar como voluntário internacional. Como falo inglês posso ajudar refugiados de outros países que estão morando aqui e não falam ucraniano. Eles são de países como Marrocos e Índia”, disse.
Apesar da restrição de saída do país e de não querer pegar em armas, Iann se mostra animado. Ele é a caricatura de um outro sentimento, bem diferente do que move os refugiados, e que está ganhando corpo da pacífica Lviv: a euforia de guerra. “A Rússia cometeu um erro terrível. O mundo vai tirar tudo o que eles têm. Eles não vão ter Spotify, Netflix, companhias que vendem roupas. Tudo vai ser fechado, companhias aéreas não vão voar para outros países, vão ficar lá fechados sozinhos e viver suas vidas”, disse ele se referindo a sanções impostas pelos Estados Unidos e seus aliados europeus à Rússia.
Além da estratégia global de asfixiar o país invasor, Iann atribui o otimismo à qualidade das tropas ucranianas e acredita que seu país vai integrar a União Europeia. “A Ucrânia tem um exército realmente profissional. A Rússia manda jovens de 18 anos para lutar na Ucrânia e eles simplesmente morrem”, disse. “Eu não vou dizer que me sinto mal por isso, mas eles tomaram a decisão deles. Tenho certeza de que a Ucrânia vai ganhar, nosso presidente vai nos levar para a União Europeia e nos tornaremos superpoderosos”.
Mas a realidade não é bem assim. O exército ucraniano vem se modernizando desde 2014, quando províncias do leste (Luhansk e Donetsk) foram invadidas por rebeldes patrocinados por Moscou. As forças armadas russas vêm passando por um intenso processo de modernização desde a invasão da Geórgia em 2008, segundo dados do think tank Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS). Nessa época, o modelo de alistamento militar que funcionou para o Exército Vermelho foi substituído por um que se baseia em militares profissionais.
Em número de combatentes, cerca de 200 mil, as forças russas e ucranianas estariam em equilíbrio. Isso em tese, pois não é possível ter estimativas precisas de força de combate e baixas que cada país sofreu. Além disso, a guerra moderna não é vencida por meio de número de combatentes, mas sim com tecnologia e abastecimento logístico, entre outros fatores. Com seu litoral quase todo tomado, a Ucrânia vai depender cada vez mais de armas e suprimentos fornecidos por países estrangeiros. Não será possível levá-los de avião, pois a Rússia já tem o controle do espaço aéreo do país. Possivelmente, o único ponto em que esses materiais de apoio vão poder entrar na Ucrânia será pela fronteira da Polônia, exatamente na região de Lviv. A Rússia não vai querer que isso aconteça. Assim, no futuro a região pode deixar de ser um ponto de passagem calmo para refugiados e um porto seguro para deslocados internos.
Até agora não vi imagens de nenhuma cidade “completamente destruída”. O jornalista está entusiasmado. Qual o interesse da Rússia em destruir um país que será depois um aliado?