A experiência de permanecer soterrada por 69 dias, a 700 metros de profundidade, muda a vida de qualquer pessoa. No caso dos 33 mineiros chilenos que passaram por isso em 2010, no desabamento da mina San José, no Atacama, o episódio trouxe aprendizados e traumas. Cada um deles lidou de uma maneira.
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No caso de Mario Sepúlveda, de 54 anos, ele já exercitava uma nova visão de mundo lá embaixo, enquanto mantinha o espírito otimista, para liderar seus companheiros na luta pela sobrevivência.
“Passamos muitos momentos de tristeza e de alegria, tivemos de nos unir, tivemos de trabalhar em equipe”, disse ele a Oeste. “Fomos obrigados a aprender muitas coisas que não sabíamos, tivemos de colocar em prática muitas situações aprendidas na hora.”
Ele se tornou uma referência no grupo, ao se colocar no papel de líder. Foi obrigado a vencer o sofrimento e o medo para atuar como um dos representantes com as autoridades. Passados quase 14 anos, Mario tem a convicção de que aquele episódio simbolizou o que é a própria vida: uma busca diária pela superação.
Três anos depois do resgate da mina, ovacionado pela opinião pública mundial, ele se deparou com uma nova missão, longe dos holofotes: cuidar de seu filho, Marito, que nasceu com um autismo severo e hoje tem 11 anos. Mario, que tem outros quatro filhos já adultos, divide a função com a esposa, Katy.
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“É uma situação que traz muita preocupação e necessidade de dedicação máxima”, conta Mario. “É mais uma missão na minha vida, na qual sempre há situações para que eu me mantenha vivo, com necessidade de encontrar força, gana, ânimo.”
De quinta-feira a domingo, ele dedica todo o seu tempo ao filho. Nesta divisão de tarefas, Katy fica com a maior responsabilidade nos outros dias.
“O autismo dele é severo, de 88% em uma escala até 100%”, observa ele. “Ele ainda não tem autonomia para fazer suas coisas, o ajudamos em tudo. Mas luto para que ele evolua, para que eu possa ajudá-lo ao máximo a ter uma boa vida. Sei que ele pode.”
Gratidão e dificuldades
No restante da semana, Mario passou a se dedicar às palestras de motivação e a obras sociais, depois de se afastar de sua antiga profissão. Nestas, ele organiza jogos de futebol, com veteranos ou jogadores voluntários, e destina grande parte da arrecadação a entidades de assistência.
É uma maneira, segundo ele, de agradecer a algo que ainda está impregnado em sua vida, que é a lembrança daquele período na escuridão do fundo da terra.
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“Pensava todo dia que iria sobreviver, mas foi difícil”, lembra, em tom de alívio. “Nunca me esquecerei de toda a solidariedade que recebemos naquela época. Muita gente se mobilizou. Sou grato por isso e hoje meu trabalho é tentar retribuir às outras pessoas, de alguma maneira.”
O colapso da mina ocorreu no início de agosto de 2010. O local era um pequeno depósito que ficava entre colinas próximas à cidade de Copiapó, cerca de 800 quilômetros ao norte de Santiago.
Os mineiros só deram sinal de vida 17 dias depois do soterramento. Os funcionários foram salvos por cápsulas de metal, inseridas na mina através de dutos. Mario foi o segundo a ser içado. Com seu espírito alegre e comunicativo, tornou-se uma celebridade em seu país.
O desabamento da mina virou tema de filme. O longa-metragem The 33, de 2015, trouxe o acontecimento para as telas. Dirigido por Patricia Riggen, tem o ator espanhol Antonio Banderas no papel de Mario Sepúlveda.
Mas, assim que subiu à superfície, a fama forçada e involuntária não resolveu as questões que viriam depois: o medo do desconhecido, a insônia, a dificuldade de recolocação profissional.
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“Depois daquela experiência na mina, tudo ficou mais complicado para mim em termos sociais, econômicos, de saúde”, conta, ciente de que não pode se apegar a ilusões. “Aprendi lá embaixo a necessidade de buscar força para superar os obstáculos. Aqui em cima o desafio continuou, já que a vida é assim: expõe o problema para você encontrar a solução.”
Ele revela que precisa se manter sempre em atividade, para o dia a dia da família e para conseguir dar suporte às necessidades do filho.
“Sou trabalhador muito esforçado” diz, sem esconder as dificuldades. “Dedico-me a dar palestras motivacionais. Quando não tenho palestras, faço o trabalho que tenho maior prática: obra, reforma e construção de casas.”
Até hoje os mineiros ainda não foram indenizados pelo ocorrido, diz. A espera tem sido longa por uma definição da Justiça.
“Não recebemos ainda indenização”, conta. “Estamos aguardando um julgamento, que já foi adiado. Já vamos para 14 anos e continuamos esperando. Enquanto isso, temos de nos virar para resolver nossas questões econômicas. Com saúde e trabalho, vai dando para levar. É assim que estamos.”
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Ele, no entanto, se desliga do trauma quando fala de sua antiga, e dura, profissão. Neste momento, prevalece o carinho. Mario a compara a uma família. Tornou-se mineiro na tentativa de encontrar uma realização pessoal e profissional.
“Entrei para a mineração pelas circunstâncias da vida, em busca de trabalho, de melhorias, de sonhos, de estabilidade profisisonal”, revela. “Isso me levou para as minas e me deu a oportunidade na família mineira. Quando entrei no meu primeiro trabalho, sendo muito jovem, me acostumei, gostei, a família mineira é muito boa, os companheiros de trabalho também, a mineração, em geral, paga muito bem.”
Com um solo rico em minérios, o setor de mineração é responsável por cerca de 20% do Produto Interno Bruto do Chile, de acordo com Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).
“O Chile é uma referência em mineração, tem grandes, médias e pequenas empresas no setor”, afirma Mario, sobre esse ofício que é conhecido como “o salário do Chile”. “A maioria de meus companheiros está trabalhando em diferentes empresas do setor. Outros ficaram independentes, souberam o que fazer. E há aqueles que estão com dificuldades por diferentes motivos. O importante é que até agora estamos todos vivos.”
Drama em Gaza
Mario tem acompanhado com apreensão os acontecimentos no mundo depois do episódio da mina. A impressão que ele tinha de que o exemplo dos mineiros seria uma ferramenta de transformação, se tornou, em parte, ilusória. Muitas guerras foram desencadeadas desde então.
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A mais recente, entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, o leva a experimentar novamente o sufoco pelo qual passou. Os reféns do grupo terrorista, afinal, também estão enclausurados, provavelmente em túneis, em uma realidade fora do controle. O ex-mineiro se identifica com a situação e tenta usar seu exemplo para passar uma mensagem positiva aos familiares.
“Essas situações que temos visto no mundo são dolorosas”, avalia ele. “Traz angústia, dor, não gosto de violência, o sequestro é uma atitude brutal.”
Mario ressalta que a dor de uma vítima nestas condições acaba sendo compartilhada com as pessoas próximas.
“É muito triste, não deveriam estar passando por isso”, observa. “Gostaria que os líderes do mundo resolvessem os problemas através dos canais diplomáticos, através do diálogo e não da violência. Porque não é só você um refém, a família também é refém, que te ama, os seus filhos, o pai, a mãe, o irmão, o tio. O dano causado é enorme. É muito difícil para eles, fico muito triste que o mundo não esteja olhando para isso.”
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Mario afirma que o drama deles deveria receber maior atenção das autoridades e de entidades internacionais. A começar pelas do seu país.
“Não se tem dado a força que merece essa notícia” ressalta. “É preciso maior mobilização pelos reféns. Se há algum grupo, alguma entidade ou alguém fazendo ou querendo se manifestar em relação a isso, não vejo aqui no Chile.”
Ele envia uma mensagem aos familiares dos reféns.
“Digo para os familiares e para os reféns orarem muito, terem esperança de que tudo isso vai passar, existe algo maior que fará sempre o melhor.”
Na comparação entre a situação dos mineiros e dos atuais reféns, ele vê alguma semelhança, mas uma grande diferença também. Estar soterrado não é como ser sequestrado, diz ele.
“Nosso caso foi um acidente” afirma Mario. “Eles estão presos porque os forçaram, um grupo os obrigou a entrar em túneis e os levou como prisioneiros. É terrível. Não posso, por alguma razão, procurar a diferença entre uma coisa e outra. O que está acontecendo em Gaza é algo diferente. Eles estão sendo subjugados à força. Eles não procuraram estar lá, nem estavam trabalhando lá.”
Para o ex-mineiro, todo aquele clamor durante a sua própria libertação ainda precisa de uma continuidade. Necessita ser efetivado na prática, a cada dia e não, segundo ele, se acomodar depois de momentos de empolgação, de flashes dos fotógrafos e das manchetes do resgate, para assistir à barbárie de forma passiva.
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“O mundo precisa de coisas boas e temos a obrigação de ir buscá-las na prática”, observa Mario. “O ser humano tem mudado para pior e muitos têm se desviado para a violência, há uma energia ruim no universo atual, e precisamos fazer algo para que ela não prevaleça.”
Todos os dias, segundo ele, as manchetes sobre a guerra em Gaza o atormentam. A experiência na mina, diz, o fez ver com mais clareza como estão enganados aqueles que insistem na guerra.
“Vi de perto como é importante sermos humildes, não nos apegarmos tanto aos bens materiais, à competição desenfreada e à obsessão de abrir mão da ética para deixar os outros para trás”, ressalta ele. “Muitas coisas podem ser descobertas na escuridão de uma mina.”
Segundo ele, são mais do que urgentes um cessar-fogo imediato e o fim dos bombardeios. Somente desta maneira será possível, para o chileno, trazer de volta uma sensação de esperança semelhante ao momento em que o mundo se mobilizou pela salvação dos mineiros.
“Penso diariamente nisso, acho que esta guerra na Faixa de Gaza precisa ser resolvida com soluções diplomáticas”, afirma Mario. “Situações como a que eu vivi não podem passar e ser esquecidas. Eu não me esqueci.”