(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 4 de setembro de 2024)
A vida política do Brasil de hoje está na dependência de uma ficção e de uma teologia — e enquanto não se livrar de uma e da outra não vai sair do ponto morto em que está travada há pelo menos dois anos. A ficção é que houve uma tentativa de golpe armado em janeiro de 2023.
A teologia, que veio diretamente dessa ficção, manda acreditar que o STF, e especialmente o ministro Alexandre de Moraes, foram os responsáveis pela derrota do plano golpista. Por conta disso, nenhuma de suas decisões pode ser contestada de lá para cá, sobre nenhum assunto. Mais: qualquer discordância é automaticamente excomungada como “ataque ao Supremo”, “atentado contra a democracia”, “pregação de golpe”, “bolsonarismo”, “fascismo”.
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Não houve golpe, pela observação mais elementar dos fatos efetivamente ocorridos, e as armas mais perigosas descobertas em 19 meses de investigação são dois estilingues. Também nunca se explicou como pode ter havido uma tentativa de golpe se as Forças Armadas estavam a favor do governo e contra os golpistas — sua participação no episódio foi ajudar a polícia a prender gente. Enfim, não se sabe como, exatamente, Alexandre de Moraes “derrotou o golpe”, e nem porque é descrito como o criador da democracia brasileira em sua atual encarnação.
É em função desses teoremas, porém, o do “golpe” e o do “salvador da pátria”, que se tomam todas as decisões na política brasileira desde janeiro do ano passado. Nas questões que realmente interessam a eles, como a privatização do Orçamento federal em favor das gangues partidárias do Congresso, tudo continua a ser feito segundo os procedimentos-padrão da política nacional. Mas todo o resto está submetido à miragem segundo a qual o Brasil vive perpetuamente sob a ameaça da “extrema direita” — e sob os mandamentos da religião oficial do STF, a única que nos salva do mal.
É uma contrafação gigante, uma das venenosas que a política brasileira já viveu em toda a sua história. Por conta dessa fraude ficam excluídos do debate o argumento racional, a lógica comum e a possibilidade de que possa haver mais de um ponto de vista sobre a mesma questão. O cidadão é forçado a pensar, agir e reagir em obediência ao dogma pelo qual tudo o que Moraes e o STF decidem é essencial para manter a democracia de pé no Brasil. Ganham o direito, assim, de dar ordens que vão ao contrário das leis em vigor, pois o bem maior do Estado de Direito deve estar acima de “formalidades legais”. Como na religião católica de outros tempos, é o “Plano de Deus” — não existe para ser entendido, mas para ser cumprido.
As leis de Alexandre de Moraes
De acordo com o plano divino em vigor, é obrigatório acreditar, por exemplo, que a cassação do direito de 20 milhões de cidadãos brasileiros a se manifestarem através do X foi uma vitória da democracia. Todo mundo, a propósito, tem de agradecer o ministro Moraes por ter feito isso — ou agradece, ou é um traidor da pátria que está articulando um golpe de direita.
É proibido lembrar que nenhum dos punidos era parte da disputa judicial entre o ministro e o X. É “fascismo” afirmar que milhões deles, para dizer o mínimo, nunca escreveram uma única mensagem propondo golpe, ou ditadura, ou “discurso do ódio”, nem espalharam qualquer tipo de “notícia falsa” ou “desinformação. Discordar da expulsão do X é atacar a “soberania nacional”.
Nada disso faz o menor nexo. Mas qual o nexo de negar, com indignação, que haja censura no Brasil quando o ministro Moraes proíbe a Folha de S. Paulo de fazer uma entrevista com Filipe Martins, ex-assessor de Jair Bolsonaro, que não foi denunciado, processado ou condenado por nada? A Constituição não permite a censura de nenhuma declaração à imprensa. E censurar declarações que ainda não foram feitas — o que seria isso?
Da mesma forma, é uma aberração legal, moral e racional levar cidadãos a julgamento direto no STF, privando todos eles, mecanicamente, do direito universal ao recurso a instâncias superiores. É incompreensível dizer que “decisão judicial não se discute, se cumpre” quando qualquer coisa que Alexandre de Moraes diga, escreva ou pense é “decisão judicial”. Nicolás Maduro diz que tudo aquilo que está fazendo é em cumprimento a decisões judiciais; até na Coreia do Norte tudo é feito por decisão judicial.
O mundo político no Brasil deixou de pensar. Pior ainda, o pensamento oficial exige que o cidadão não pense — e considera que o ato de raciocinar é uma agressão à democracia. O regime militar classificava como “subversão” toda discordância com suas decisões. Estamos de volta, hoje, às práticas de 50 anos atrás.