(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 26 de abril de 2023)
O Brasil acaba de dar um dos passos fundamentais que o manual para a montagem de ditaduras apresenta já na sua primeira página — encaminhou, em mais uma dessas trapaças que colocam as mesas do Congresso entre as coisas mais desmoralizadas da sociedade brasileira, um projeto de censura. Não perca seu tempo achando que não é bem isso, porque é exatamente isso. Dizem, é claro, que se trata de uma lei para “combater a desinformação”, acabar com “notícias falsas”, banir as “mentiras da internet” ou do “noticiário”, e outros disparates. É pura tapeação — aí sim, notícia falsa em estado integral. O projeto, no mundo dos fatos concretos, cria e entrega para o governo um mecanismo de censura no Brasil; através dele, o “Estado” passa a dar ordens a respeito do que o cidadão pode ou não pode dizer na internet, ganha o direito de punir quem se manifesta nas redes sociais e transforma num conjunto de palavras inúteis, para todo e qualquer efeito prático, o artigo da Constituição Federal que estabelece a liberdade de expressão neste país.
A lei que se propõe para aprovação não quer “pôr ordem nessa baderna da internet”, proibir que as pessoas “mintam” ou reprimir a imprensa — ela se destina a calar o cidadão que quer manifestar o que pensa através das redes sociais. Não pune, como em toda sociedade civilizada, os atos que uma pessoa pratica — como em toda ditadura, reprime o que ela pensa. Não tem o propósito de tornar a sociedade brasileira mais limpa, ou mais justa, ou mais organizada, nem de combater os crimes que podem ser cometidos através da palavra livre. O seu único propósito é entregar ao governo uma ferramenta de repressão, para censurar a circulação de pontos de vista ou informações que ele, governo, não quer que circulem. Não tem nada a ver com a ideia de ordem.
Essa ordem já é plenamente garantida pelo Código Penal e outras leis em vigor, que punem todos os delitos que podem ser praticados com o uso da liberdade de expressão — calúnia, difamação, injúria, golpe de Estado, incitação ao crime, racismo, nazismo, ameaça. Está tudo lá; não há nada de fora. O cidadão brasileiro é responsável, sim, por tudo o que diz em público, e não só do ponto de vista penal. Está sujeito, o tempo todo, a pagar indenizações e a ressarcir prejuízos, se a justiça assim decidir. É falso, simplesmente, afirmar que “a liberdade de expressão não pode ser exercida sem limites” ou “ferir o direito de outros” — ela tem limites claramente marcados na lei, e pune quem violar quaisquer direitos do demais cidadãos.
A lei dá a si própria o título de “Lei da Liberdade (…) na Internet”, o que já diz tudo. Todas as vezes que se faz alguma lei sobre a liberdade, sem exceção, a liberdade acaba ficando menor do que era, ou some de vez; todas as ditaduras, de Cuba à China, estão repletas de lei sobre a “liberdade”. No caso brasileiro, não há no projeto uma única palavra que sustente objetivamente a liberdade de expressão; é o exato contrário, o tempo todo. O fato essencial é que a nova lei cria um “Conselho”, a ser formado por 21 membros da “sociedade civil”, com o poder explícito de fazer censura — uma aberração que nunca houve no Brasil, nem no tempo do AI-5. Alguém acha que esse Conselho, a ser montado pelo governo Lula, vai buscar a verdade, ser imparcial e garantir “a liberdade na internet”?