Segundo o filósofo e economista americano Francis Fukuyama, famoso por sua declaração de que a competição entre as ideologias modernas teria sido concluída com o triunfo da democracia liberal ocidental, a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos significa “uma rejeição decisiva dos eleitores americanos ao liberalismo e à maneira particular como a compreensão de uma ‘sociedade livre’ evoluiu desde os anos 1980”. Ele defendeu essa posição em artigo que foi replicado, em português, pela Folha de S.Paulo.
O argumento de Fukuyama é que a volta de Trump à Presidência da nação mais poderosa do planeta significa a inauguração de uma nova era naquele país e no mundo. O liberalismo clássico, que o autor define como “uma doutrina construída em torno do respeito pela dignidade dos indivíduos por meio de um Estado de Direito que protege seus direitos e de controles constitucionais sobre a capacidade do Estado de interferir nesses direitos”, teria sido enfraquecido por duas grandes “distorções”, que, em parte, explicariam o trumpismo.
A primeira delas seria o “neoliberalismo”, que Fukuyama define como “uma doutrina econômica que canonizou os mercados”. O crescimento desse neoliberalismo, segundo Fukuyama, enfraqueceu o poder dos governos de tomar providências em favor dos menos favorecidos, gerando ressentimentos que ora se manifestam. A segunda seria a ascensão do identitarismo “woke”, “em que a preocupação progressista com a classe trabalhadora foi substituída por proteções direcionadas para um conjunto mais restrito de grupos marginalizados: minorias raciais, imigrantes, minorias sexuais e afins”. Esse processo levou o eleitorado a optar por “populistas de direita” que conseguem se comunicar melhor com os trabalhadores e os estratos mais vulneráveis às transformações do mercado na era tecnológica contemporânea.
Donald Trump representa, na visão de Fukuyama, uma ameaça protecionista, um radicalismo anti-imigração (que exigiria gastos altíssimos, na avaliação do autor, para implementar as deportações em massa de imigrantes ilegais prometidas) e um isolacionismo que enfraqueceria as instituições supranacionais. Em resumo, Trump “transformou os EUA de uma sociedade de alta confiança para uma de baixa confiança”, “demonizou o governo e enfraqueceu a crença de que ele representa os interesses coletivos dos americanos” e “tornou o discurso político mais grosseiro”.
Primeiro: o identitarismo realmente é um grande problema ao erodir a importância do indivíduo, diluindo-o em “tribos” barulhentas que procuram privilégios através do Estado, e é um acerto de Fukuyama diagnosticar isso. Ao culpar Trump por deixar o discurso político mais “grosseiro” e estimular a erosão social e a divisão, porém, Fukuyama minimiza a responsabilidade original desse discurso identitário na promoção do fenômeno. Sempre houve polarizações e fraturas políticas; estamos, porém, com a sensação de um ambiente mais inóspito porque fomos tão divididos em identidades grupais cada vez mais artificialmente fabricadas por ideólogos raivosos e grupos de pressão que vemos progressivamente dificultada a capacidade de identificar o Estado-nação como o “nós”, o “coletivo” principal das sociedades modernas de que falava o escritor conservador Roger Scruton. A esquerda “progressista” é a principal responsável por isso. Os aspectos mais negativos daquilo que se chama de “populismo de direita” só ganharam força em resposta.
Segundo: Donald Trump realmente não é um liberal efetivo. Isso jamais foi dito. Podem-se criticar seu protecionismo e vários aspectos de seu discurso, o que não é nosso foco aqui. Contudo, por que razão declarar, sempre que alguém como ele vence uma eleição, que só então o liberalismo clássico está sendo erodido? O que exatamente a alternativa oferecida por Kamala Harris e o Partido Democrata tem a ver com o “liberalismo clássico”? Não aprecio esse tipo de especulação, pois soa como anacronismo, mas alguém é capaz de imaginar Adam Smith ou Alexis de Tocqueville defendendo lei federal para o aborto, controles de preços, aumentos exorbitantes de impostos para empresas e uma série de expansões de gasto público previstas no programa de Harris? Se for para concluirmos que o liberalismo não está na crista da onda entre as alternativas políticas do momento, isso se referiria ao estado de coisas que leva as opções nos EUA a serem apenas essas duas, não à simples identidade do vencedor.
O mais nauseante, contudo, é esse discurso, que contagia alguns intelectuais brasileiros, de seguir responsabilizando o tal “neoliberalismo” por tudo. O que realmente aconteceu, principalmente sob governos como os de Ronald Reagan e Margaret Thatcher a partir da década de 1980 e com o Consenso de Washington em 1989, foi um reconhecimento mais amplo pelo mundo, em graus bastante variados, de certos princípios básicos para a administração pública, a saber: a disciplina fiscal, a preferência por investimentos em áreas como educação e saúde, a privatização de empresas estatais, o fortalecimento da segurança jurídica, entre outras — basicamente respeitar, nos governos, regras de economia que, inclusive, precisamos respeitar em nossos orçamentos domésticos.
Utiliza-se para condenar esse fenômeno um recorte específico no tempo e uma equivocada “universalização” de seus efeitos, olvidando-se que assistimos a ampliações significativas de dívida pública e que boa parte do mundo ainda precisa lidar com as robustas máquinas de welfare state desenvolvidas ao longo do século XX. Se olharmos para o caso brasileiro, por exemplo, seria necessária uma boa dose de imaginação para acreditar que o “neoliberalismo” acabou com o “liberalismo clássico” em nosso país (?) e provocou o ódio e a polarização… A inflação e o aumento dos gastos nos EUA mostram que também esse “receituário” básico não pode ser responsabilizado pelas dificuldades enfrentadas em função das irresponsabilidades e faltas de autocontenção dos governos. Ademais, autores como Friedrich Hayek e Milton Friedman, que inspiraram do ponto de vista teórico essas políticas, não promoveram nenhuma ruptura fundamental com as teses do liberalismo clássico. O mundo muda, surgem novos problemas e ocorrem reformulações de propostas, mas sua linha geral é a mesma da maioria dos autores liberais clássicos anteriores: a crença em que segurança e justiça são os papéis fundamentais do Estado, admitindo-se a provisão de outras áreas em algum nível, especialmente saúde e educação, sob aprovação do sistema representativo legitimamente gerado pelos cidadãos e, de preferência, sem função gerencial dos serviços. Qual a grande diferença essencial que Fukuyama enxerga? Em que o “neoliberalismo” representou uma traição ao “liberalismo clássico”, mas o voto no Partido Democrata teria sido a sua manutenção?
Leia também: “A democracia falou”, reportagem publicada na Edição 242 da Revista Oeste
Ótimo artigo. Parabéns.
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