(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 29 de maio de 2024)
O governo Lula começou a errar antes do primeiro dia, continuou errando depois de ter começado e não parou mais. Tinha mesmo de ser assim. Em primeiro lugar, é humanamente impossível acertar alguma coisa com a multidão que o presidente levou para o ministério e o resto da máquina pública; é querer ganhar a Champions League com o time do Madureira. Finge-se em escala nacional, há um ano e meio, que o Brasil tem um governo que sabe o que está fazendo, que os ministros são mesmo ministros e que o Rei está vestido. Não é nada disso, e uma hora as pessoas começam a perceber que não é. Em segundo lugar, o presidente da República tem certeza de que o seu governo está fazendo tudo certo e que ele próprio é um dos maiores gênios políticos que a História já conheceu. Não há nenhuma possibilidade, neste quadro clínico, de se melhorar nada — mesmo porque, em volta de Lula, e no seu sistema de propaganda, só existe gente encantada com a bem-aventurança de concordar com ele em tudo. Em terceiro lugar, por mais esforço que os analistas políticos façam para tratar o governo a sério, continua a valer uma regra fundamental da lógica — do nada só pode sair o nada.
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A fantasia pela qual se imaginava que as coisas iriam continuar assim por tempo indeterminado sofreu nesta terça-feira, enfim, uma colisão frontal com a realidade. O governo, num dia só, levou uma sova histórica no Congresso Nacional — o pior concentrado de derrotas que já viveu desde o começo do Lula 3. Eles faziam questão, como “ponto de honra”, de manter o veto de Lula contra a lei que os parlamentares aprovaram para restringir a libertação periódica de criminosos que cumprem pena de prisão. O veto foi aniquilado. Eles também queriam, já aí ao contrário, derrubar o veto do governo anterior à lei estabelecendo até cinco anos de reclusão para punir crimes que não existem no Código Penal e no restante da legislação brasileira: a divulgação de “notícias falsas”. O veto foi mantido por uma votação humilhante – 317 para a oposição e 139 para o governo. É uma escrita que já vem lá de trás, mas tem sido tratada como parte normal do “jogo político”. Foi assim, por exemplo, no caso das reservas indígenas, onde o Congresso passou uma motoniveladora em cima de Lula. Agora, e de novo apesar das análises em banho-maria, o desastre ficou grande demais. Ele prova o que sempre existiu: o governo é um anão no Congresso. Fala como se fosse uma bomba de hidrogênio. É um busca-pé.
A questão a responder, agora, é a seguinte: quantas vezes mais Lula vai ser derrotado no Congresso? Não adianta falar em “melhoria do clima”, “distensão” e outros vapores. É claro que o governo vai se acertar muito bem com a maioria dos parlamentares sempre que a questão for a partilha de dinheiro público — “emendas orçamentárias”, verbas escolhidas, essas coisas. Mas os desejos do sistema Lula, essa constelação que vai do MST à “Arrozbras”, do incentivo ao crime aos projetos de censura, do STF às “políticas identitárias”, estão em franco processo de baixa. O novo Brasil que eles imaginaram construir com base na “vontade política” e em outras miragens não está dando partida. Lula poderia mudar esse jogo? Não há sinais de que possa. Teria, primeiro, de mudar de ideias — e ele não muda, nem de ideias e nem de assunto. Teria de mudar a equipe, e isso só levaria a chamar para o governo gente igual ou pior do que essa que já está aí. Teria de perceber que o seu governo está tendo problemas porque é muito ruim, e ele não vai admitir, nunca, nada de parecido.
As derrotas de Lula
A surra que o governo Lula levou no Congresso, como sempre acontece, não se deve às razões que foram apresentadas. Falam que o líder do governo falhou feio, inclusive porque nem tem partido — e, de fato, não poderia liderar desse jeito nem uma equipe de bolinha de gude. Falam que a culpa foi do ministro encarregado das relações com o Congresso, que não conversa desde novembro com o presidente da Câmara. Fazem teoremas complexos sobre isso e aquilo. Falam de tudo, menos do essencial: Lula e o seu consórcio querem um Brasil que os brasileiros não querem. Estão em minoria — e não só na Câmara, onde mal conseguem juntar 120 votos num total de 513. Estão em minoria na população — e aí só dá para se impor pela força bruta, o que exige, em primeiro lugar, que se tenha mesmo a força bruta. Vivem, cada vez mais, dentro de uma nave espacial sem contato com a base. Como é possível, racionalmente, o governo ficar contra o povo, direto, com seu veto ao fim das “saidinhas” — uma das coisas mais odiadas pelo povo brasileiro? Por isso perdem e vão continuar perdendo.
O governo tem ideias fixas com questões que não fazem parte, nem remotamente, das preocupações reais da população deste país. Falam o tempo todo de “controle das redes sociais”. Falam da Faixa de Gaza. Falam do Banco Central, que denunciam como o pai e a mãe de todos os problemas do Brasil. Falam que se paga pouco imposto no Brasil. Quem está ligando para isso tudo na fila do ônibus — ou concordando com o que o governo acha? Lula briga contra os Estados Unidos. O país que o brasileiro mais admira, tanto que a maioria dos imigrantes quer ir para lá, são os Estados Unidos. Lula briga com Israel. O cidadão comum é a favor de Israel. Lula gosta do Irã — e quem está lá ligando para o Irã? O governo, em suma, perdeu contato com o Brasil que existe na vida real. Não adianta, aí, achar que é tudo um “problema de comunicação”, e que socando dinheiro público em propaganda as coisas vão melhorar. O problema central do governo Lula não é falar pouco de si, ou de não estar explicando direito para o povo como o “Brasil voltou” e outras maravilhas imaginárias. O problema é fazer o que faz.