(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 19 de setembro de 2021)
Os múltiplos assassinatos que a Câmara de Deputados vem cometendo contra a reforma administrativa são a manifestação mais recente de uma das taras mais velhas da vida pública brasileira — a compulsão permanente para decidir contra os interesses da população e a favor dos interesses de grupos particulares bem organizados sempre que é preciso fazer uma escolha entre os dois. O brasileiro comum raramente ganha uma — ou é tão raro ganhar, mas tão raro, que acaba dando na mesma. Essa reforma é um primeiro e moderadíssimo esforço, depois de séculos, para conter no futuro — atenção: só no futuro — algumas das aberrações mais escandalosas que fazem do serviço público brasileiro um espetáculo mundial em matéria de privilégio, injustiça e desigualdade. Aos funcionários públicos se dá o máximo, e muito mais do que um país com população tão pobre como o Brasil tem condições de dar. Aos demais cidadãos se impõe a obrigação de sustentar um por um, com os impostos que pagam todos os dias, cada benefício, vantagem e extravagância exigidos por eles. Fica assim: no Brasil não é o servidor público quem serve a população. É a população quem serve o servidor. Como diria um procurador do MP do Trabalho, é uma situação análoga ao estado de escravidão.
A reforma proposta pelo governo, e destruída peça por peça por deputados que passam a vida de joelhos diante do funcionalismo público, é uma tentativa muito modesta, racional e realista de segurar um pouco a progressiva privatização do Brasil em favor dos servidores, e a consequente entrega dos recursos de todos para o desfrute de uns poucos — mais ou menos uns 5% da população, incluindo-se as três áreas da administração. (O pior é que a imensa maioria dos funcionários ganha muito pouco; o grosso do dinheiro e dos privilégios vai para as castas superiores. É a desigualdade dentro da injustiça) A intenção da reforma, note bem, era deixar tudo como está para os atuais servidores; ninguém perderia um milímetro do que já tem, daqui até o fim da vida. Tudo o que se pretende é criar regras mais justas para os que entrarem no serviço público a partir de agora — só a partir de agora. Nada feito, decidiram os deputados. É proibido tocar no presente. É proibido melhorar o futuro.
Nada revela tão bem essa perversão quanto a tentativa de se limitar a estabilidade no emprego para os funcionários — um presente, pago com o seu dinheiro, que nenhum dos demais 220 milhões de brasileiros tem, ou jamais terá. A intenção era deixar a estabilidade só para os que exercem “funções de Estado”, como diplomatas, militares ou servidores da Justiça. Pode haver alguma proposta mais razoável do que essa? Num país em que os políticos se manifestam histericamente em favor da “igualdade”, a cada minuto do dia e da noite, a criação de regras iguais, em matéria de segurança no emprego, para os novos funcionários e todos os demais brasileiros seria realmente um mínimo. Nem isso eles deixaram fazer. Esqueça, então, as tentativas de reduzir outras vantagens absurdas. Todas elas são “direitos adquiridos” e, portanto, sagrados — mesmo para quem ainda nem adquiriu o direito de entrar no serviço público.
Eis aí como os políticos brasileiros, com a Constituição que os protege e com as leis que eles mesmos aprovam, acabaram se tornando geneticamente incapazes de defender qualquer interesse da maioria quando isso desagrada às minorias a quem prestam servidão. No caso, o perigo é acabarem fazendo uma contrarreforma, que pode deixar a situação ainda pior do que já está agora. É o que costuma acontecer a cada vez que os deputados ganham a oportunidade de proteger ainda mais os seus senhores.
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