(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 15 de junho de 2022)
Desde o dia 3 de dezembro do ano passado está rolando no Supremo Tribunal Federal, sob o comando do ministro Alexandre de Moraes, um desses inquéritos dementes que só a Justiça extrema do Brasil de hoje poderia produzir — mais uma alucinação, ao lado da alucinação-mor do inquérito ilegal para investigar “fake news” e “atos antidemocráticos”. É difícil acreditar que estejam fazendo uma coisa dessas, mas estão: o presidente da República, numa de suas “lives”, disse que podia haver uma relação entre as vacinas anticovid e a aids, e por causa disso foi indiciado num processo formal no STF. O presidente disse um disparate? Disse, porque foram aplicados mais de 400 milhões de doses de vacina no Brasil e, ao que se saiba, ninguém pegou aids até agora. Mas e daí? Entra na cabeça de alguém que o cidadão diga uma bobagem e isso seja levado à Suprema Corte do país? Não têm mais o que fazer, lá? Estão com todos os processos em dia? É pior do que sem propósito; é uma piada. Mais do que espanto, produz deboche.
Já estaria suficientemente ruim se fosse apenas isso, mas fica pior; o ministro Moraes acaba de prolongar por mais dois meses o inquérito, pois segundo ele é necessário “aprofundar” as investigações. Mais dois meses? E para “aprofundar” o quê? Será que de dezembro até agora, mais de seis meses depois, o ministro ainda não descobriu o que a investigação se propunha a descobrir? É francamente incompreensível, em primeiro lugar, que haja alguma coisa a investigar de fato. O presidente não disse o que disse? Sim, disse. Que raios estão investigando, então? Além disso, não dá para entender direito qual o crime que ele teria cometido — e muito menos porque seriam precisos oito meses inteiros, de dezembro a agosto, para se saber o que aconteceu. Ou seja: é um mistério o que houve de tão monstruoso, porque o STF tem de se meter nisso, e para que o ministro está querendo prolongar essa aberração por mais 60 dias.
O inquérito, supostamente, causa “constrangimento” para o presidente da República e sua campanha eleitoral — e por isso interessa ao Supremo, cada vez mais envolvido nas suas atividades de partido de oposição, manter essa história em aberto até o mais próximo possível da eleição. O ministro Moraes, por sinal, acaba de assumir a presidência do TSE, a quem cabe decidir sobre eleições. Estaria ele disposto a cassar a candidatura do presidente por ter dito que vacina pode dar aids? Em matéria de STF já se viu de tudo. É possível que se veja mais.
Leia também: “Constituição em frangalhos”, artigo de capa publicado na Edição 116 da Revista Oeste