(Por J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 10 de novembro de 2021)
O Brasil está vivendo o que talvez fique conhecido, em algum momento do futuro, como a época do ilusionismo, ou, em linguagem mais direta, a época da falsificação pura e simples — falsificação como prática corrente e diária do exercício da atividade política. É como nos teatros tipo “lanterna mágica”: o público vê uma coisa, através do jogo de luz e de sombras, e da dificuldade do olho humano para enxergar no escuro, mas, logo em seguida, quando o palco se ilumina, todos descobrem que a realidade é outra. Essa ilusão, nas artes cênicas, é um divertimento. Na política é uma contrafação.
O Supremo Tribunal Federal, no momento, é o centro mais ativo do Brasil na aplicação dessa trapaça: opera em tempo integral pretendendo sustentar as “instituições”, mas o que faz, na vida real, é anular de forma sistemática os princípios básicos da democracia e do Estado de Direito. Nas sombras, o STF aparece como um magistrado que nos defende, a todos nós, das ameaças que os Poderes Executivo e Legislativo representam para a Constituição. Quando acende a luz, a realidade que aparece é o contrário: dez pessoas que não receberam um único voto estão ditando o que o Congresso e o governo têm de fazer, sem prestar contas a ninguém e sem ter nenhuma responsabilidade pelas decisões que tomam.
A anulação da lei que estabelece novas regras para o pagamento das emendas parlamentares é o último ato desse espetáculo de prestidigitação com que o STF engana o país. Faz de conta que fiscaliza se a Constituição está sendo cumprida, enquanto, na prática, exerce as funções de governo — naquilo que lhe interessa governar, é claro. A lei foi aprovada, de modo indiscutível e legítimo, pela Câmara dos Deputados; deveria, pelo que está escrito na Constituição, entrar em vigor. Mas os ministros não gostaram. Acham que a lei é ruim e, por isso, não pode valer. Façam outra. Essa não pode.
Não interessa se a lei das “emendas do relator” é boa ou ruim — ela foi aprovada legalmente pela maioria dos deputados e, segundo está previsto nas “instituições” que o STF diz defender 24 horas por dia, só poderia ser anulada ou modificada por outra lei da mesma Câmara. Se o STF dá a si próprio o direito de decidir quais as leis que valem e quais as leis que não valem, a independência de Poderes foi para o saco. Não se trata mais de uma exceção; virou a regra. O Congresso Nacional não sabe mais se as suas decisões valem ou não. O Executivo sabe menos ainda. As instituições, tão sagradas para o STF, estão indo para o diabo.
O STF não é o filtro pelo qual se aprovam ou se rejeitam as medidas de governo; não cabe a ele decidir o que é o “bem” e o que é o “mal” no país e na sociedade. Também não lhe cabe dar ordens aos outros Poderes, eleitos pelo voto direto do povo brasileiro, nem governar o Brasil. Os ministros estão se exibindo, cada vez mais, como justiceiros de faroeste.
Tudo o que conseguem é desmoralizar as noções de justiça, de democracia e de legalidade. Acham-se o remédio. São a doença.
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