(J.R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 21 de julho de 2024)
O Brasil que deu a si próprio as funções de vigilante do “processo civilizatório” faz de conta, há anos, que não existe nada de realmente errado com nosso sistema de justiça. Sim, é possível que haja algum exagero aqui e ali, admitem os integrantes do Conselho Nacional de Fiscalização do Estado de Direito e da Democracia. Talvez haja decisões polêmicas por parte do Alto Judiciário — e uma ou outra dúvida sobre a conduta moral de magistrados que participam de “eventos” pagos por magnatas com causas a serem julgadas nas cortes de Brasília. Pode-se debater se está certo julgarem processos defendidos por escritórios de advocacia onde as suas mulheres trabalham. Mais do que tudo, é preciso tomar o máximo de cuidado diante de casos em que a lei é indiscutivelmente violada, na letra e no espírito, pelos supremos juízes da nação. Não se pode esquecer que eles agem assim porque entendem que estão salvando a democracia — missão que, do seu ponto de vista, não pode ser atrapalhada por detalhes formais.
Tudo bem, mas o STF e as suas dependências, definitivamente, não estão reagindo de maneira construtiva a essa tolerância toda. Ao contrário: quanto mais os guardiães do bem mostram compreensão com os ministros, a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público e o resto da máquina judiciária, mais todos eles se convencem de que têm o direito e o dever de mandar para o diabo que os carregue a Constituição, o Código Penal e tudo o que estiver estorvando os seus projetos. Olhe-se, a qualquer hora do dia e da noite, para o que estão fazendo — é certo que vai se encontrar algum absurdo em estado bruto. Olhando um pouco mais, fica muito pior. Há literalmente centenas de casos em que a lei foi diretamente desrespeitada.
O fato é que o “processo civilizatório” aceitou, como a coisa mais normal da vida, que o Poder Judiciário do Brasil gire em torno do ministro Alexandre de Moraes. O resultado direto dessa anomalia é a multiplicação descontrolada de casos em que vale qualquer coisa para não se contrariar o ministro. Acontece o tempo todo. No último espasmo desta Justiça de psicose, a PGR, nada menos que a PGR que se coloca à mão direita de Deus, rebaixou-se a tomar partido numa miserável briguinha de aeroporto — só para mostrar serviço a Moraes. Fez uma denúncia contra desafetos pessoais do ministro por um crime que não foi cometido, o de calúnia, em que mais de um ano de investigação da Polícia Federal não encontrou nenhuma prova e que, de qualquer forma, nunca poderia estar sendo tratado pela PGR e pelo STF. Mas isso tudo é a lei — e na Justiça brasileira de hoje não há nada mais suspeito do que a lei.
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