Por que o símbolo do comunismo não é tão vil quanto o do nazismo?
Virou notícia, dias atrás, o fato de estudantes de um colégio do Recife terem praticado a saudação hitleriana. Foram todos suspensos, punição mais do que justificável, como sempre que ocorrem casos de uso de símbolos nazistas. Não dá mesmo para aceitar tamanha ignorância sobre o que o nazismo e o fascismo representaram na história. Nem para tolerar a apologia, ainda que por brincadeira, de uma ideologia responsável pelo assassinato de milhões de seres humanos e a perversão dos mais básicos valores da civilização.
O que espanta é que a logomarca de outra ideologia igualmente totalitária — a foice e o martelo do comunismo marxista-leninista — continue a ser exibida, de forma despudorada, em camisetas, bandeiras partidárias e eventos públicos, sem despertar a mesma indignação.
E que essa ideologia seja glamourizada em salas de aula e discursos políticos, como fórmula mágica para a justiça social, sem que se ressalte seu imenso legado de opressão e morte em todos os países onde foi adotada. A homenagem prestada ao centenário da Revolução Bolchevique, no final de 2017, pela Câmara dos Deputados é apenas um entre tantos exemplos desse absurdo. Não se trata de comparar o número de pessoas assassinadas ou mortas em consequência de um ou outro sistema político.
Mas de interrogar como é possível que, enquanto a cultura ocidental continua a exorcizar, década após década, os horrores atribuídos ao nazismo, pese um silêncio tão acintoso sobre as atrocidades cometidas pelos regimes comunistas na antiga União Soviética, na China e em seus satélites.
Mais surpreendente é que esse desconhecimento aflija até mesmo os jovens russos, cujos antepassados sofreram na pele as consequências do totalitarismo, especialmente sob o jugo do ditador Joseph Stalin, na década de 1930. Segundo pesquisas, quase a metade deles, na faixa entre 18 e 24 anos, ignora a existência do Gulag, o colossal conjunto de campos de trabalhos forçados onde cerca de 20 milhões de prisioneiros, entre opositores do regime e acusados de crimes comuns, foram confinados em condições sub-humanas, com o saldo de pelo menos 4 milhões de mortes, entre o término da Primeira Guerra Mundial, em 1918, e o fim da década de 1950.
Mais da metade da população russa, aliás, admira o sanguinário Stalin, e nada menos do que 70% consideram que sua contribuição à história foi positiva. Pode-se compreender, em parte, esse contrassenso, considerando-se o competente trabalho de supressão de registros da história empreendido pelo regime soviético.
Em especial durante a Segunda Guerra Mundial, quando se apelava ao sentimento patriótico para justificar o assassinato dos chamados “inimigos do povo”. Sem contar o fato de parcela expressiva da intelectualidade do Ocidente ter optado por silenciar diante dos crimes, no contexto da Guerra Fria, em função de seu alinhamento marxista. Ainda assim, é mais que flagrante a diferença de tratamento dado pela indústria cultural às tragédias humanas do nazismo e do comunismo. Quantos filmes você já assistiu sobre o Gulag, por exemplo?
A boa notícia é que, apesar da censura, que por sinal continua ativa na Rússia de Vladimir Putin, a voz das vítimas insiste em voltar à tona para assombrar os indiferentes. E agora com a potência da internet.
Desde o ano passado, a juventude russa começa a confrontar esse capítulo negro da história de seu país por meio de testemunhos de sobreviventes e imagens documentais disponíveis na rede. Com destaque para o filme de um popular blogueiro local, Yuri Dud, que bombou no YouTube: Kolyma — O Berço do Nosso Medo, sobre um dos mais célebres campos do Gulag, o situado em Kolyma, no extremo nordeste da Sibéria.
Mais conhecido como jornalista esportivo e entrevistador de TV, Dud resolveu mergulhar no passado justamente ao se defrontar com a ignorância de sua geração. Queria entender as causas do medo tão entranhado na geração dos seus avós, e como isso tem a ver com a passividade política dos russos no presente. Aos poucos, vários outros documentários sobre o tema começam também a chamar atenção, como a série Geração Gulag, do coletivo de mídia Coda.
E esse interesse não renasce apenas na Rússia. O canal de TV franco-alemão Arte, por exemplo, acaba de pôr no ar outro resgate valioso, uma série de três episódios chamada Goulag — Une Histoire Soviétique, do diretor Patrick Rotman.
Apoiada em raras imagens e depoimentos da época, ela comprova que esse sistema de exterminação — provavelmente “o mais insano da história humana”, nas palavras de Rotman — não foi apenas muito mais abrangente e duradouro do que comumente se supõe, já que o último campo, chamado Perm-36, só foi fechado em 1987, durante a abertura política do governo de Mikhail Gorbachev. Mas tinha uma função também econômica tão importante quanto a da repressão política, pois o trabalho escravo dos prisioneiros foi o sustentáculo do programa de industrialização acelerada de Stalin.
A memória do Gulag — acrônimo em russo de Administração-Geral de Campos — também tem ganho espaço no mercado editorial. Depois da comovente coletânea de depoimentos sobre a vida sob o comunismo da jornalista Svetlana Aleksiévitch, intitulada O Fim do Homem Soviético, e publicada no Brasil em 2016, foi a vez da obra magistral do escritor Alexander Soljenítsyn, o mais contundente testemunho desse sistema de extermínio em massa, ganhar as livrarias brasileiras no ano passado numa primorosa nova edição da editora Carambaia.
Ou seja, com essa nova leva documental ninguém terá mais desculpas para ignorar o significado da foic e e do martelo. Nem o que acontece quando se delega ao Estado e a um partido único o direito de implantar na prática, e a qualquer custo, as teorias da utopia marxista. Em tempo: enquanto parte dos carrascos nazistas e seus crimes foram trazidos à Justiça nos Julgamentos de Nuremberg, os esbirros soviéticos permaneceram impunes.