Na minha zona de conforto, estou sentado no sofá da sala assistindo a nossa TV Invictus (preto e branco). Acabou mais um programa Jovem Guarda e logo mais o doutor Zachary Smith vai colocar o resto da tripulação em perigo na série Perdidos no Espaço. Minha mãe aparece sorridente com um copão de Choco Milk geladinho. Eufórico, meu pai conta que comprou uma nova radiovitrola para a sala. Comemoro indo para o quarto montar mais algumas partes do mais novo aeromodelo da Revell. (É um Starfighter F-104 com carrinho para transporte de mísseis Sidewinder.)
Um cara de 69 anos como eu já esqueceu de muita coisa que passou na vida. Mas jamais vou esquecer que a nave de Perdidos no Espaço se chamava Jupiter-2. (“Perigo, Will Robinson!”, gritava o robô, agitando os braços mecânicos.) Ou que no Velho Oeste o Bat Masterson nasceu e entre bravos se criou. Esta é o mundo perfeito e acolhedor filtrado de problemas que conhecemos como zona de conforto.
As minhas zonas de conforto se embaralham no tempo. O arrepio da primeira paquera, as grandes festas lotadas de gente dançando sem parar, a primeira neve, os bailes de bandas cover aos domingos no clube, o trem noturno para Barcelona, os épicos Natais em família na casa do meu tio Ramon, o show do James Brown.
Todos temos lembranças de um passado em que fomos especialmente felizes. E eles mudam a cada geração. Zona de conforto para meu pai eram as rumbas de Xavier Cugat em discos de 78 rotações. Para meu filho será o Jaspion combatendo o Satan Goss para evitar o apocalipse da Via Látea. A criança de hoje vai lembrar daqui algumas décadas todos os detalhes da dancinha do Baby Shark.
https://www.youtube.com/watch?v=uf8Nl4aRqqo
O cérebro consegue armazenar muito bem e para sempre esses momentos top de prazer. Ao mesmo tempo, deleta o lado negativo dessas experiências como quem aspira a sujeira de um tapete. Essas lembranças e sensações (quase sempre meio falsificadas pelo filtro de nosso cérebro) se tornam casas mentais seguras, onde podemos nos abrigar em tempos psicologicamente mais difíceis.
30 músicas no meio de 80 milhões
O comentarista Chris Richards escreveu um artigo para o jornal Washington Post comentando sobre a onda de nostalgia que tomou conta da música durante 2021. E coloca uma razão para que ela tenha chegado com tanta força: a pandemia de covid, que foi também uma pandemia de depressão, conflito e insegurança. A trilha sonora dessa época foi mais nostálgica que o normal.
Além disso, estamos vivendo um momento tecnológico que beneficia a busca dos prazeres do passado. Um disco querido que você conheceu há décadas ressurge na sua vida remasterizado, em altíssima qualidade, mostrando detalhes que você nunca havia percebido. As músicas que você conhece de cor agora aparecem em novas versões. O que era um CD único vira uma caixa com oito. E assim a gente escuta tudo de novo.
Para Johannes Hofer, a nostalgia deveria ser curada “com ópio, sanguessugas e um passeio pelos Alpes suíços”
Cada vez que abro um aplicativo de streaming musical, volto à mesma encruzilhada. Tento procurar algum artista novo? Ou ouço aquele disco de rock psicodélico pela milésima quinta vez? Spotify, Tidal e outros serviços nos oferecem 70, 80 milhões de músicas. E muitos de nós só tocam uma playlist de 30 ou 40 favoritas. (Existe um motivo adicional para essa volta ao passado. Para quem gosta de música brasileira, por exemplo, o fato de nos empurrarem “ídolos” do nível de Anitta, Pablo Vittar e Emicida nos leva correndo para o berço fofinho das músicas já conhecidas.)
O ritmo de nossos sonhos
A expressão “nostalgia” foi criada por um estudante suíço de medicina, Johannes Hofer, em 1688. (Hofer sugeriu outra palavra para descrever o fenômeno, mas felizmente ela não pegou: “philopatridomania”). Para ele, a nostalgia era uma “doença neurológica de causa essencialmente demoníaca”. Deveria ser curada “com ópio, sanguessugas e um passeio pelos Alpes suíços”. A “dor da ausência” seria causada pela distância do paciente de sua pátria. Havia até um surto de “nostalgia fingida”, popular entre soldados cansados de servir em outros países.
A professora Svetlana Boym (morta em 2015), da Universidade Harvard, achava que a nostalgia não era um pertencimento a um lugar (como sugeria Johannes Hofer), mas a saudade de um tempo diferente. “O tempo de nossa infância, o ritmo mais lento de nossos sonhos. Num senso mais amplo, a nostalgia é uma rebelião contra a ideia moderna do tempo, o tempo de história e progresso. O desejo nostálgico é transformar a história numa mitologia particular ou coletiva, de revisitar o tempo como o espaço, negando-se a se render à irreversibilidade do tempo que contamina a condição humana.”
O cheiro do quiabo frito
Se você se sente nostálgico não tente um tratamento com ópio e sanguessugas, como recomendava o doutor Hofer no século 17. Nostalgia nem está sendo mais vista como doença, mas como cura — segundo um estudo internacional coordenado pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Southampton, Inglaterra.
Esta é a definição de nostalgia, segundo o estudo: “A emoção muitas vezes desencadeada ao encontrar um cheiro, som ou lembrança familiar, envolver-se em conversas ou sentir-se solitário. Ao se tornar nostálgico, a pessoa se lembra, pensa, relembra ou se detém em uma memória do passado — geralmente uma lembrança carinhosa e pessoalmente significativa, como a infância ou um relacionamento próximo. Muitas vezes vemos a memória através de óculos cor-de-rosa, sentimos falta daquele tempo ou pessoa, ansiamos por isso e podemos até desejar voltar ao passado”.
O estudo da Universidade de Southampton, segundo reportagem do New York Times, começou num almoço. Um dos professores, o grego Constantine Sedikides, conversava com um colega sobre os sentimentos cada vez mais nostálgicos que o assaltavam. As casas em que havia morado no passado, os encontros com velhos amigos, o cheiro de quiabo frito, etc. Antes que o almoço acabasse, o colega já havia diagnosticado Sedikides como vítima de depressão.
O grego negou que estivesse em uma condição depressiva. Ele não queria voltar para suas velhas casas e nem mesmo para o país natal. “Eu disse a ele que vivi minha vida, mas às vezes não conseguia deixar de pensar no passado, e foi gratificante”, disse Sedikides, ao New York Times. “A nostalgia me fez sentir que minha vida tinha raízes e continuidade. Isso me fez sentir bem comigo mesmo e com meus relacionamentos. Isso deu uma textura à minha vida e me deu força para seguir em frente.”
A prisão do passado
O experimento da Universidade de Southampton descobriu que lembranças nostálgicas faziam os voluntários se sentirem menos deprimidos e abandonados. “As histórias nostálgicas geralmente começam mal, com algum tipo de problema, mas tendem a terminar bem, graças à ajuda de alguém próximo a você”, diz o doutor Sedikides. “Então você acaba com um sentimento mais forte de pertencimento e filiação e se torna mais generoso.”
Outras pesquisas realizadas na Holanda e na China mostraram que, ao ouvir músicas que remetiam a sentimentos nostálgicos, os voluntários se sentiam — fisicamente — mais aquecidos. A lembrança aquecia seus corpos. Tanto que esses sentimentos nostálgicos aconteciam mais frequentemente em dias frios.
Nostalgia nos traz conforto, uma pausa às aflições, um intervalo aos traumas. Existe um grande problema de entrar na zona de conforto e não querer sair mais dela. E esse é um caminho para a criação de personalidades amarguradas, agressivas, presas a um passado que não conseguem mais reconstruir.
Zona de conforto é para visitar
A nostalgia, como todo remédio, deve ser tomada na dose certa. “Se você não é neurótico ou evasivo, acho que vai se beneficiar sentindo nostalgia duas ou talvez três vezes por semana”, diz o doutor Clay Routledge, da North Dakota State University. “Experimente-a como um bem valioso. Quando Humphrey Bogart diz (em Casablanca): ‘Sempre teremos Paris’, assim deve ser a nostalgia para você. Nós a temos e ninguém pode tirá-la de nós. É o nosso diamante.”
Mesmo com uma eventual “nostalgiaterapia”, existe um fator que não pode ser esquecido. Uma coisa é ser nostálgico, outra é ficar preso no passado por se negar a ir para a frente. Quem é do tipo que acha que jornal só pode ser de papel, que continua comprando DVD e disco de vinil, que prefere a fila do banco a um aplicativo no celular não é nostálgico, é reacionário. Vai ter problemas na profissão e na vida como um todo.
Viver numa permanente nostalgia significa renunciar à dinâmica da vida, seus desafios, o prazer do risco bem-sucedido. Significa se negar a descobrir algo de bom nos 80 milhões de músicas fora de sua miniplaylist. Nostálgicos compulsivos renunciam às suas capacidades produtivas e criativas. Vagam mentalmente por um passado que não existe mais e que de certa forma nunca existiu.
A melhor coisa a fazer é visitar de vez em quando suas zonas de conforto. Mas não morar nelas.
PS: que lembranças do passado te dão mais alegria e bem-estar? Como é a sua zona de conforto? Que músicas você ouve? Que programas de TV, ou filmes ou livros te fazem voltar aos “bons tempos”? De que fase de sua vida você se lembra mais? Se você quiser dividir algumas dessas lembranças, use o espaço para comentários abaixo. Podemos criar aqui uma espécie de nostalgia coletiva.
Leia também “A vez do podcast”
Chegar em casa não depois das dez da noite, vindo de um Hi Fi onde dancei de rosto colado ouvindo Waldir Calmon e alguns boleros, entre um cuba libre e outro (mas sem exagero), sentar diante da TV preto e branco pra assistir Ted Boy Marino, e depois ir dormir pedindo “bença pai, bença mãe “, nostalgia que me faz sentir um privilegiado. Obrigado Dagomir e me desculpe se minha máquina do tempo recua um pouco mais do que a sua. Mas o importante é que vamos lá atrás e voltamos para o aqui e agora. Amanhã o hoje é que será nostálgico, assim é a vida.
Tenho 24 anos, e sou simplesmente apaixonado por tudo aquilo que é antigo. Desde músicas das décadas de 70/80, até os carros da década de 60, até a forma de agir e o cavalheirismo da década de 40.
Acredito sentir um apreço e uma imensa admiração pela beleza e simplicidade que um dia habitou o mundo, e que em minha geração quase inexiste. Para mim, ver artefatos antigos, relatos de pessoas mais velhas e correlatos é uma maravilha.
Os almoços aos domingos com a família. A sessão de músicas portuguesas no final de domingo, ao redor da vitrola com as “bolachas” de 78 rotações, com a matriarca (Bisa) ao centro.
Dagô
Que beleza de artigo.
Aqui vai minha contribuição:
Na música, volto ao twist todas as manhãs no meu bailinho aeróbico particular. Fujo da esteira e caio no balanço do tempo. Na comida, tenho muitas madeleines deliciosas, sedutoras e irresistíveis. Mas nada, nadica, em tempo algum, se iguala ao arrepio do primeiro beijo. Este, para o meu bem, trago de volta 3 vezes ao dia.
Há um tempo atrás ouvi uma música que marcou minha pré-adolescência e início da adolescência. Como uma filhote dos anos 2010s que sou, costumava acompanhar uma série de TV chamada “Big Time Rush”, sobre uma banda fictícia (que até tentou virar uma banda de verdade, mas não deu certo). Era uma boy band, daquelas bem clichês, comédia pastelão, e era uma programa bem infantil, na verdade. Eram 4 meninos que cantavam (um deles, inclusive, uma das minhas primeiras paixões platônicas kk) e a música mais famosa deles começava com um memorável “Oh, oh, oh, oh, ouuu”.
Ouvir esse som simplesmente me transportou pra os meus 12 anos! rsrs Pura nostalgia.
Brilhante!
Muito bom o texto. Parabéns. Descobri depois da leitura que sou nostálgico e reacionário, pois ainda compro DVD e vou ao banco pagar as minhas contas. Não uso aplicativo bancário e não tenho playlist.
Quadrinhos e música.
Quadrinhos até hoje, aumentam minha imaginação.
Música, aquece o Coração.
Parabéns. Belíssimo texto.
Minha zona de conforto passa pela solução dos mais intrincados problemas pelo Dr. Benton Quest, pelo Jim das Selvas e pelo professor Masaoata, o National Kid. Boas lembranças que me trazem o doce sabor da Nostalgia… Excelente artigo.
Faltou falar, no meu ponto de vista, das visitas que dão errado na nostalgia.
Outro dia revisitei, por pura nostalgia, um filme que eu adorava, dirigido por Richard Lester, que também havia dirigido os Rapazes de Liverpool – esses visito permanentemente.
O filme A Bossa da Conquista revelou-se chatérrimo, insuportavelmente pretensioso, datado como poucos.
Foi uma bad trip pra valer.
Texto sublime! Sempre me pego voltando ao meu passado, dos tempos da infância e adolescência, principalmente. Mas o que mais me dá saudade é do tempo que as pessoas eram “normais”, ainda não existia essa desgraça do politicamente correto dos dias de hoje. Tempos sombrios esses que estamos vivendo.
Esse texto fez muito sentido pra mim. Nos últimos 2 anos, junto com a pandemia veio um combo de dificuldades e projetos que deram errado e de repente me vi querendo voltar ao passado, assistindo programas da minha infância, desviando rotas e passando em frente a casas em que vivi no passado e me apegando a objetos antigos herdados enquanto uma profunda sensação de tristeza me vêm quando vejo que não posso mais deixar esse presente de imensas responsabilidades e simplesmente voltar àquela época em que, na minha mente, tudo era perfeito e feliz.
Bom dia!
Nostalgia, para mim, é algo doloroso, na verdade.
Está voltada à sensação de perda e irreversibilidade.
Realmente muito bom o texto! Nao tem como evitar a nostalgia apos a leitura, que alem de prazerosa explica alguns sentimentos que vem com o tempo.
Para mim, que estou 20 anos “atras de voce”, zona de conforto tem a ver com familia reunida para o jantar todos os dias, com o Jornal Nacional na TV e aquela dinamica familiar com mil coisas acontecendo ao mesmo tempo de forma tao “normal” e corriqueira.
Essa revista Oeste realmente eh um brinde semanal!
Obrigada por mais um texto maravilhoso, Dagomir. Eu entendo completamente o que o Dr. Sedikides quis dizer com sua nostalgia.
Meus momentos estão ligados à minha adolescência, entrada na faculdade, nascimento dos meus filhos e um ano particularmente significativo em que morei fora do país. São meu porto seguro mental. Momentos que trazem significado à minha vida.