A cena abaixo aconteceu há poucas semanas, em 12 de fevereiro.
Alguns milhares de brasileiros desgostosos assistiam das arquibancadas a um russo sorridente posar para fotos no campo do Estádio Mohammed Bin Zayed, em Abu Dhabi. Era uma rara concessão do bilionário Roman Abramovich à tradicional discrição de sua imagem pública. Naquele momento, com o troféu de campeão mundial em mãos, mais do que a vitória sobre o Palmeiras, o dono do Chelsea vivia a consagração de um projeto que iniciara 19 anos antes, quando começou a transformar um clube insignificante da Inglaterra numa potência.
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— Chelsea FC (@ChelseaFC) February 12, 2022
Abramovich foi o pioneiro de um modelo de negócio que mudou o futebol e acabou replicado em toda a Europa. A nova modalidade de investimento abriu as portas para que fortunas de origem nem sempre clara buscassem influência — incluindo nessa brincadeira as famílias reais do Catar e da Arábia Saudita — no meio esportivo.
Contudo, menos de um mês depois de conquistar o Mundial nos Emirados Árabes, Abramovich perdeu a licença de dirigente esportivo na Inglaterra. Esse foi só um dos golpes recebidos. Em razão de sua conhecida intimidade com o presidente russo, Vladimir Putin, o empresário de 55 anos enfrenta retaliações por causa do conflito na Ucrânia. Em poucos dias, o homem que injetou cerca de € 2,5 bilhões (R$ 14 bilhões) no projeto Chelsea virou um pária no Reino Unido, com bens congelados e o clube castigado por punições.
Dono da 157ª maior fortuna do planeta, segundo o ranking da Forbes de fevereiro, com US$ 13 bilhões, Abramovich goza há quase três décadas de um poder que transcende as cifras. O dono do Chelsea é o rosto mais célebre de um grupo de empresários que ficaram conhecidos no noticiário como “oligarcas russos” — uma trupe de endinheirados com aura de vilões hollywoodianos.
Em comum, todos eles apresentam biografias com pontos obscuros, vinculados a crimes e corrupção. Uma parte desses poderosos decidiu se instalar luxuosamente em Londres há algumas décadas, durante muito tempo contando com a benevolência das autoridades. Hoje, eles veem a fortuna e a liberdade ameaçadas. Abramovich foi um dos sete magnatas alvos de rígidas sanções anunciadas pelos britânicos (leia ao final do texto). Mais do que a amizade com Putin, paira sobre o oligarca a suspeita de contribuir efetivamente para a máquina de guerra russa.
Adeus, Londongrado
Desde a última semana, Abramovich lida com a proibição de negociar com pessoas e empresas do Reino Unido, além de não poder transitar pela Inglaterra. De quebra, o governo interrompeu o processo de venda do Chelsea, anunciado pelo russo dias antes, além de barrar a cessão do controle administrativo para a fundação de caridade ligada ao clube.
“Quando impuseram as sanções, o governo do Reino Unido divulgou que Abramovich estava intimamente ligado a Putin e que a empresa siderúrgica em que ele tem grande participação esteve envolvida na fabricação de tanques para a invasão da Ucrânia”, afirmou Matt Barlow, jornalista que acompanha o Chelsea desde 1998, ao jornal britânico Daily Mail. “Foi o sinal verde. De repente, todos no país começaram a dizer o que sempre suspeitaram sobre Abramovich, porque o governo diz ter provas.”
O dono do Chelsea é apenas um dos nomes de uma lista de fortunas russas que se instalaram na capital britânica desde o fim da União Soviética. Durante um tempo, o número de bilionários russos era tão expressivo que a capital britânica passou a ser chamada de Londongrado, em piada local sobre os novos habitantes.
Mas, afinal, quem são esses oligarcas?
Trata-se de um grupo de hábeis empresários que soube tirar proveito de situações na transição administrativa depois do fim da União Soviética. Um clube seleto que se associou ao poder numa relação em que todos ganharam. Durante os anos 1990, a Rússia apressou a venda de boa parte da máquina estatal, privatizando empresas de setores estratégicos, como petróleo e gás.
Antes de completar 30 anos, Abramovich era somente um empresário do ramo de brinquedos de plástico, com mais ambição do que dinheiro. Mas desde cedo o futuro oligarca apresentou vocação para criar conexões com poderosos. Foi através da amizade com a filha do ex-presidente Boris Yeltsin que o jovem começou a ganhar espaço no Kremlin.
Sócio virou inimigo e morreu na banheira
Quem conhece a trajetória de Abramovich sabe que a associação-chave de sua escalada aconteceu quando ele conheceu o já estabelecido empresário Boris Berezovsky, igualmente próximo de Yeltsin. Juntos, eles compraram a maior parte das ações da Sibneft, uma das maiores produtoras de petróleo do mundo, então colocada à venda na desestatização russa por cerca de US$ 250 milhões.
Abramovich vendeu de volta a companhia ao governo russo em 2005 por US$ 13 bilhões. Antes, rompeu com Berezovsky, que não teria caído nas graças do novo presidente Putin. O passo seguinte foi o mais desafiador, quando, no virar do milênio, o precoce magnata conseguiu entrar na administração da Rusal, segunda maior empresa mundial de alumínio.
Em 2011, Abramovich foi levado a um tribunal de Londres por Berezovsky, que alegava ter sido chantageado a aceitar um pagamento bem inferior ao valor de mercado para ceder sua participação na Sibneft. O caso foi arquivado, mas o dono do Chelsea saiu com a reputação arranhada ao dizer que pagou US$ 10 milhões a um funcionário do Kremlin, que ajudou no processo de privatização.
Boris Berezovsky, apontado pelo Ministério Público brasileiro como o principal investidor entre 2005 e 2007 da MSI, empresa ligada ao Corinthians, foi acusado de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha no Brasil. Acabou encontrado morto em seu apartamento em Londres, em 2013. O russo estava trancado por dentro da residência e morreu enforcado na banheira de sua mansão. A investigação oficial tratou o caso como suicídio.
“Você vai matar ele?”
Assim que o novo rico Chelsea começou a empilhar troféus, a dupla de escritores ingleses Dominic Midgley e Chris Hutchins decidiu vasculhar a vida pregressa do dono do clube. De cara, foram desencorajados, ao ouvir que “ninguém na Rússia ousaria falar de Abramovich”.
Mais do que desencorajados, na verdade, como contou Hutchins. “Um amigo mútuo perguntou a Abramovich no camarote presidencial do Estádio Stamford Bridge se ele me mataria”, disse o escritor. “Ele respondeu: ‘Ainda não’”.
Mas a persistência levou a investigação até amigos de infância, vizinhos e ex-professores de Roman, num esforço que culminou no livro “Abramovich: The Billionaire from Nowhere” (“Abramovich: o Bilionário que Veio do Nada”), de 2004.
“Uma vez que uma pessoa em que ele confia falou conosco, outras passaram a nos atender”, afirmou Hutchins. “Falei com muitas pessoas que trabalharam para ele, mas algumas disseram: ‘Não diga quem te contou isso’.”
Conheceu-se então o passado de Abramovich, um órfão que perdeu cedo a família mais próxima — a mãe morreu envenenada, enquanto o pai foi esmagado por um guindaste no trabalho. O futuro oligarca passou a infância na remota Ukhta, perto do Círculo Polar Ártico, entre a casa de um tio e orfanatos. Em 1987, ganhou um presente de casamento dos pais de sua primeira mulher. A quantia de 2 mil rublos lhe permitiu ampliar a gama de produtos que vendia para desodorantes e perfumes.
Era o começo modesto de um império, que hoje inclui participações no gigante do aço Evraz e na mineradora Norilsk Nickel. De quebra, Abramovich é o maior acionista da Bolsa de Londres.
Nos anos de privatização do governo Yeltsin, conquistou a confiança do presidente, a ponto de ganhar um quarto dentro do Kremlin. O livro que conta suas origens assegura que o jovem empresário foi consultado pelo presidente na transição de poder e então indicou o nome do ex-agente da KGB Vladimir Putin para a sucessão.
A Presidência mudou de líder, mas Abramovich seguiu frequentando o principal gabinete do Kremlin. O livro dos escritores Midgley e Hutchins relata que o oligarca foi designado por Putin para entrevistar os candidatos a ministros.
Se os iates são numerosos, também são os filhos. Ao todo são sete herdeiros, frutos de três casamentos
O dono do Chelsea é uma autoridade sem cargo, mas exerceu funções políticas oficiais por um período. Depois de uma breve passagem pela Câmara Baixa da Assembleia Federal da Rússia, o empresário foi eleito governador da Região Autônoma de Chukotka, a mais oriental do país e também uma das mais pobres, entre 2000 e 2008. Depois dessa fase, priorizou os negócios, espalhando influência russa pelo mundo e gastando muito dinheiro.
Entre as excentricidades que uma fortuna bilionária pode bancar, Abramovich direcionou sua atenção ao mar. O russo construiu uma pequena frota de iates suntuosos. Entre eles, o Eclipse, avaliado em € 370 milhões.
O brinquedo de 170 metros de cumprimento conta com 24 cabines de hóspedes, duas piscinas e uma discoteca. O Eclipse costuma ficar aportado na costa da Argélia, enquanto o Solaris, com 30 metros de extensão a menos, fica na Turquia. Em 2020, o dono do Chelsea foi considerado pela publicação The Conversation o bilionário mais poluidor do mundo, superando Bill Gates e Elon Musk.
Se os iates são numerosos, também são os filhos. Ao todo são sete herdeiros, frutos de três casamentos. Uma delas é Sofia, que no começo da invasão da Ucrânia afirmou nas redes sociais que faz oposição à guerra. O próprio oligarca chegou a anunciar que cederia o lucro da venda do Chelsea às vítimas do conflito, antes de as autoridades britânicas vetarem o negócio. Não deu para usar a promessa como propaganda de benfeitor.
Durante os anos de abundância financeira do Chelsea, uma faixa da torcida ficou famosa, estampando o rosto de Abramovich sobre as cores da bandeira russa e trazendo os dizeres, em inglês, “The Roman Empire” (“O Império de Roman”). Ela foi vista no Estádio Stamford Bridge no último fim de semana. Num momento em que outras equipes do país vêm entrando em campo com jogadores abraçados a bandeiras ucranianas, parte dos fãs do Chelsea segue entoando o nome do controverso mecenas.
Mas a realidade é outra. Nas últimas semanas, o Chelsea perdeu £ 170 milhões (mais de R$ 1,1 bilhão) em acordos de patrocínio envolvendo a empresa de telefonia móvel Three e a montadora sul-coreana Hyundai. O clube tem uma licença especial até 31 de maio para cumprir seus compromissos, mas valores de contrato em vigor foram congelados. Até os cartões de crédito corporativos foram suspensos e nem operações como venda de ingressos podem ser exploradas neste momento, com exceção para torcedores que compraram bilhetes para a temporada inteira — cerca de 28 mil pessoas.
Os números não são abertos, mas estima-se que a folha salarial do elenco gire entre £ 28 milhões e £ 33 milhões (entre R$ 188 milhões e R$ 221 milhões). Jogadores consagrados, como o brasileiro Thiago Silva e o belga Romelu Lukaku, conduzem o time na briga por mais um título europeu, mas sem saber se o salário vai cair.
“O Chelsea é um clube atrativo, ninguém duvida que uma hora vai aparecer algum bilionário norte-americano ou do Oriente Médio para comprar o clube”, diz Matt Barlow, do Daily Mail. “Mas o drama é a curto prazo. Se fosse uma empresa, teria de fechar as portas diante das sanções. Ninguém sabe se no dia 1º de abril eles vão conseguir pagar os jogadores e de onde virá o dinheiro. Existe o medo de que, sem concessões por parte do governo, o Chelsea não consiga chegar até o final da temporada.”
Antes de o cheque de Abramovich comprar o Chelsea, em 2003, o clube havia conquistado só um campeonato inglês, em 98 anos de história. Depois do russo, o troféu da Premier League foi cinco vezes para o time do sul de Londres, que ainda arrebatou dois títulos europeus e um mundial. Hoje, sem dúvida, é uma marca global do futebol.
Impedido de movimentar dinheiro, o Chelsea teme ver seu império desmoronar. Para Abramovich, o imperador dos negócios que veio dos confins da Rússia, a prioridade do momento é a autopreservação. Encurralado por sanções, o velho parceiro de Putin ainda não sabe onde poderá aportar seus iates com tranquilidade. Agora deverá passar a encarar a vida com alguns bilhões a menos na conta. A depender da duração e das consequências da guerra, no entanto, o futuro do oligarca pode ser ainda mais complicado.
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Ótimo artigo. Parabéns.
Os bens bloqueados do governo russo e dos seus parceiros deverão atender à indenizações das vítimas ucranianas e reconstrução de tudo que está sendo destruído no solo ucraniano.