Reduzido, cada vez mais, à situação de um tribunal de varejo, que em vez de discutir questões essenciais sobre a Constituição virou um escritório de advocacia especializado em atender as miudezas da aglomeração descrita como a esquerda nacional, o STF está sendo acionado novamente pela sua clientela de sempre. É muita gente — os clientes da nossa Suprema Corte de Justiça, hoje em dia, vão de Lula ao cantor Pabllo Vittar. É esse Vittar, a propósito, o caso da vez. Ele mostrou um pedaço de pano com o rosto de Lula, seu candidato para as eleições de outubro, num festival de música em São Paulo. Não pode, decidiu o Tribunal Superior Eleitoral, o braço do STF que dá ordens na campanha; no seu entendimento, isso é propaganda antes da hora permitida. (Já tinham mandado retirar da rua um outdoor dizendo que Lula é ladrão; se não pode ser contra, parece achar o TSE, também não pode ser a favor.) O festival recorreu. A esquerda achou um escândalo: é a favor da intromissão do TSE nas eleições, mas só para agir contra o adversário. Foram correndo, então, reclamar ao seu protetor preferido — o STF.
Até aí, é o roteiro de sempre. O PT, os partidinhos que usa como seus serviçais e a “sociedade civil” passam o tempo todo, há anos, no cartório do STF, pedindo “explicações” sobre as coisas mais extraordinárias. Por que o filho do presidente foi à Rússia na comitiva do pai? Por que Bolsonaro não usou máscara em sua ida a Caixa Prego do Fim do Mundo? Por que baixou o IPI? Por que deu aumento para os professores? Por que o Exército Nacional está na Amazônia? Mas desta vez o queixume em torno do cantor e seu cartaz de apoio a Lula mexeram com a linha de montagem onde o STF fabrica, dia e noite, suas instruções para o Brasil: a respeito deste assunto, pensem assim; a respeito daquele assunto, pensem assado. (Se não obedecerem, a gente chama o ministro Alexandre de Moraes e a sua delegacia de polícia, e aí vocês vão ver o que é bom.) Desta vez quem ficou agitado foi o ministro Edson Fachin, o mesmo que anulou quatro ações penais contra Lula, inclusive as que o condenaram por corrupção e lavagem de dinheiro, em três instâncias e por nove juízes diferentes. O pai da candidatura Lula, agora, mostrou-se indignado com a proibição do tal cartaz no festival — ou, pelo menos, foi isso o que deu para entender. Quis levar o caso do cantor ao plenário do Supremo, com urgência, como se fosse uma questão vital para a sobrevivência da República. Segundo Fachin, “o histórico” do STF é de “defesa intransigente da liberdade de opinião”, e por conta disso deveria intervir no episódio. Mentira dele. O STF, ao contrário, é hoje o maior inimigo da liberdade de expressão que existe neste país. Os ministros ficam excitados quando a opinião é do cantor Vittar, mas têm horror de opiniões diferentes das suas — principalmente quando alguma dessas opiniões é sobre eles mesmos. Aí, se não gostam, pode dar cadeia. O que Fachin deveria ter dito, para não se perder tempo com essa mentirada, é o seguinte: “Nós aqui somos defensores intransigentes da liberdade de opinião — salvo em todos os casos em que somos contra, e esses casos estão aumentando cada vez mais”.
O STF é contra a liberdade de expressão, que é garantida por escrito no artigo 5 da Constituição, porque comete atos de agressão contra ela o tempo todo, de forma permanente e deliberada. A prova disso está nos fatos. O ministro Alexandre de Moraes e o seu inquérito perpétuo contra os “atos antidemocráticos” e as “fake news” perseguem furiosamente o jornalista Allan dos Santos, que para escapar da prisão foi para os Estados Unidos; Moraes pede, sem sucesso, a sua captura e extradição pela Interpol. O jornalista não cometeu nenhum crime contra a Lei de Segurança Nacional, ou qualquer outro que esteja definido no Código Penal Brasileiro; aliás, seus advogados até agora não foram informados legalmente que delito, afinal, ele teria praticado. Por que a obsessão do ministro, então? Porque Allan dos Santos desce o porrete no STF e na esquerda em geral; ao mesmo tempo, para piorar consideravelmente a sua situação, é a favor do governo Bolsonaro. Se fazer uma caça dessas não é ser agressivamente contra a liberdade de expressão, o que seria? Não só proíbem o jornalista de falar, cassando suas comunicações nas redes sociais; querem meter o homem na cadeia. O mesmo STF proibiu o YouTube de pagar a Barbara Destefani, apresentadora do programa Te Atualizei, o dinheiro que lhe deve pelos anúncios publicados em função de suas apresentações. Não conseguiram lhe cassar a palavra; foram então atrás dos seus meios de subsistência. O objetivo declarado dessa aberração legal é criar dificuldades financeiras para Barbara — uma ação particularmente abjeta. Não estão agredindo só a liberdade de expressão; agridem também o direito ao trabalho. O programa é contra Lula e a esquerda? Sim, e muito contra. É a favor do governo? Sim, e muito a favor. Pela lei, e pelo amor “intransigente” à liberdade ora declarado por Fachin, deveriam deixar a moça em paz com as suas opiniões. Na vida real o STF a trata como uma inimiga mortal na nação, que tem de ser destruída a qualquer custo.
O Supremo protege as ações, no Brasil, do grupo estrangeiro “Sleeping Giants”, que pressiona abertamente as empresas a não publicarem anúncios em publicações brasileiras cujo conteúdo consideram conservador. Prendeu o ex-deputado Roberto Jefferson por ter falado mal do STF — coisas pesadas, mas pura e simples opinião. Prendeu o deputado Daniel Silveira em pleno exercício do mandato, quando a Constituição diz com toda a clareza do mundo que nenhum deputado pode ser punido por manifestar seu pensamento — não pode, simplesmente, sem nenhuma exceção ou qualquer ressalva do tipo “desde que”. Mais: está absolutamente claro, pela lei, que um deputado só pode ser preso em flagrante delito e por crime inafiançável. Silveira não foi preso em flagrante, nem cometeu nenhum crime inafiançável — o que fez foi insultar os ministros, mas isso não é motivo legal para prender ninguém, e muito menos um deputado protegido por imunidades parlamentares estabelecidas na Constituição brasileira. Num momento de demência jurídica, aliás, que perdura até hoje sob a aceitação passiva ou a cumplicidade dos colegas, Moraes criou a aberração do “flagrante perpétuo”, coisa que não existe em lugar nenhum do planeta, para decretar a prisão de Silveira. Ele foi preso dias depois de ter falado o que falou, mas o ministro inventou que em casos assim flagrante não significa o momento, no relógio, em que o crime está sendo cometido, mas o resto da vida. Ou seja: o sujeito fala mal do Supremo hoje e, segundo os poderes que Moraes deu a si próprio, pode ser preso em flagrante daqui a dez anos. Liberdade de expressão?
Os jornalistas, enfim, são hoje os mais ativos militantes em favor das medidas de controle da liberdade de opinião
Na verdade, todo inquérito sem fim, sem limites e sem legalidade alguma do ministro Moraes contra as “fake news” e os “atos antidemocráticos” é um ataque direto contra a liberdade de expressão. A desculpa é que seria proibido publicar notícias falsas, pois elas ameaçariam a sobrevivência do país — embora não exista nos 10 milhões de leis brasileiras nenhuma que proíba a publicação de qualquer notícia, falsa ou não. O ministro, por conta dessa proibição que não existe, persegue há três anos seguidos jornalistas, comunicadores e políticos de direita, ou aliados do presidente Jair Bolsonaro. “Notícia falsa”, para o STF, é tudo o que vai contra as posições políticas e os interesses pessoais dos ministros — das urnas eletrônicas à impunidade judicial dos corruptos, das “terras indígenas” aos efeitos da cloroquina. É a arma mais moderna, mais utilizada e mais perversa contra a liberdade de opinião que existe hoje na praça — uma censura que não é praticada pela polícia política do governo, mas pelo aparelho judiciário, pelos partidos e grupos de esquerda e, finalmente, pelos próprios jornalistas e os donos dos veículos de comunicação, a maior parte dos quais se tornou militante ativa de um dos lados que dividem o campo político no Brasil.
“Defesa intransigente da liberdade de expressão?” Que piada. Não no STF, com certeza, como se vê por tudo o que está dito acima e por mais um oceano de evidências. O fato é que essa liberdade, junto com muitas outras, se tornou um artigo barato no Brasil. Lula diz, em público, que vai criar o “controle social dos meios de comunicação” se for eleito — ou seja, só vai ser publicado o que o PT permitir. Ninguém acha nada de errado com isso — a começar pela mídia. As classes intelectuais acreditam, cada vez mais, que a liberdade de opinião tem de ter “limites”. Políticos, analistas e os 50 tons disponíveis de liberais acham que as liberdades “individuais” não podem estar “acima” dos direitos “coletivos”. A elite que quer pensar por todos os brasileiros insiste em dizer que a liberdade de expressão tem de se subordinar aos interesses maiores da “defesa da democracia”. Todos eles estão nos ensinando, aparentemente, que para haver democracia é preciso diminuir a liberdade. Os jornalistas, enfim, são hoje os mais ativos militantes em favor das medidas de redução e controle da liberdade de opinião — são, curiosamente, os principais adversários da imprensa livre. O ministro Moraes, para todos eles, é um herói na guerra em favor da democracia; Fachin e o resto do STF são uma fortaleza que nos protege das colossais ameaças que representam Jefferson, preso em sua casa, o jornalista refugiado nos Estados Unidos e a Barbara do Te Atualizei. É uma falsificação em massa, uma das maiores em circulação no momento. Também é a realidade.
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